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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/05/2022

De outro mundo.

Uma breve análise sobre a exploração alienígena de qebrus: ainda há lugar para a inovação no espectro da música electrónica?

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/05/2022

O fosso existente entre a música pop e a música underground ou alternativa estreitou-se nos últimos anos, e a Internet facilitou esse processo, pois o que antes era desconhecido e aplicável a um determinado contexto, isto é, as músicas que existiam nos subúrbios e eram parte da vida urbana, associada a um estilo de vida e a um contexto social específico, disseminaram-se por toda a parte. Contudo, a vida em sociedade não está passível de excepções, e parte do postulado teórico-científico formulado por Karl Popper incide sobre esse aspecto, afinal basta existir um cisne negro para invalidar um pressuposto teórico previamente estabelecido. Ou seja, a observação, seja ela científica ou do foro individual, jamais pode assumir uma verdade como algo absoluto e definitivo. E é nesta imprevisibilidade e excepcionalidade inefável que surge qebrus, artista francês de seu verdadeiro nome Thomas Denis.

Para quem não esteja por dentro dos meandros da música electrónica experimental, nas vertentes da IDM, glitch, breakcore, drill & bass, intelligent techno e demais variantes, talvez seja um nome desconhecido. No entanto, para os apreciadores e admiradores dos estilos supracitados é um nome quase incontornável, uma referência, um epítome da música disruptiva, vanguardista, que desafia qualquer determinismo pré-concebido e barreira estilística.

Várias referências do movimento IDM e do glitch mencionam o génio e o espírito inovador de qebrus. O próprio Aphex Twin na sua entrevista à Crack magazine, teceu fortes elogios ao seu trabalho, proferindo as seguintes palavras: Really alien sounding music”. A frase, apesar de curta, não poderia ser mais esclarecedora relativamente ao espírito inovador de Thomas, que sempre desafiou os trâmites e os cânones das electrónicas exploratórias. Os elogios não se cingem ao caso particular de Aphex: Richard Devine, Venetian Snares e Otto Von Schirach são outros nomes mais sonantes do radar da música electrónica alternativa que lhe dirigiram digníssimos elogios. O último artista mencionado, Otto, pelo qual Thomas nutria grande admiração, chegou mesmo a colaborar com o próprio em Ottobrus, lançado postumamente em 2021. O irreverente e heteróclito Venetian Snares disse o seguinte relativamente à sua obra: “qebrus was on his own shit, he was making some really out there music, his music was incredible. If you like crazy weird music, you would his stuff.”



É possível encontrar grande parte do seu trabalho em editoras indie que fogem ao grande consumo de massas, embora sem pretensiosismos e snobismos assumidos. A sua encorpada discografia encontra-se disponível em editoras como a Detroit Underground, Love Love Records ou Serendip Lab.

Pela Love Love, Thomas presenteou-nos com um álbum de 30 minutos, intitulado ᐔ ᐌ ᐂ ᐍ ᐚ, lançado em Janeiro de 2017. O sound design que percorre o disco do início ao fim é detalhado e minucioso, com recurso a uma panóplia de efeitos sonoros, como vocoders, delays, reverbs, bitcrushers, comb filters, resonators, entre outros. No entanto, estes efeitos são utilizados de uma forma musical: mais do que cumprir um propósito em específico, a sua conjugação resulta em texturas concretas e bem detalhadas. Atente-se por exemplo na faixa 1, que começa com uma introdução que parece tirada de um filme futurista e apocalíptico e que é construída através de sons dissonantes que varrem todo o espectro, com modulações de pitch em crescendo, tudo isto combinado com filtros dissonantes e sons percussivos metálicos filtrados, encurtados e minuciosamente trabalhados. De seguida, o ouvinte é confrontado com uma convulsão rítmica que combina glitch music, breakcore e dubstep e nesta parte os padrões rítmicos são completamente imprevisíveis, fugindo ao padrão do 4/4 — esta riqueza rítmica é devidamente acompanhada por texturas que nos sugerem a derrocada de uma espécie de nave espacial; temos drones, texturas cobertas de ressonância, comb filters a disparar em múltiplas direcções e os beats vão continuamente mudando de direção numa espécie de frenesi indecifrável. A faixa 2 segue a mesma linha da anterior, envolta em texturas ressonantes e agudas, com modulações de pitch em diversos momentos — o beat desta vez surge-nos em reverse, embebido em vocoder e comb filters, devidamente combinado com o uso do reverb; aos 8:28 somos confrontados com uma quebra celestial, que lembra pequenas criaturas alienígenas a emitir um coral de drone e as frequências aqui surgem-nos dissonantes, sobrepostas e contínuas, mas cheias de musicalidade e direção, contrastando com a propulsão rítmica evidenciada no momento anterior. A última faixa, a 6, não é menos frenética que as anteriores: os beats ainda são mais disruptivos e a dissonância melódica continua a emergir; a percussão é metálica, concebida com recurso a síntese sonora em combinação com efeitos múltiplos, como bitcrushers, vocoders, delays, reverbs, bandpass filters e modulações de pitch. Estilisticamente é difícil classificar esta última faixa, o ritmo está propositadamente off the grid e no meio desta “desordem sonora controlada” somos presenteados com linhas melódicas minimalistas e dissonantes, sintetizadas com recurso a ondas dentes de serra, com detune, reverb e filtros ressonantes. Talvez este seja um dos discos em que qebrus consegue evidenciar toda a sua mestria no recurso ao sound design, sem nunca descurar a coerência estética que o define, tudo soando verdadeiramente alienígena e futurista. Há momentos de belezas melódicas que podiam perfeitamente integrar uma versão pós-futurista do 2001: Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick. 

Não obstante, o autor francês também se desafiou a trabalhar com a banda jazzística brasileira Entrevero Instrumental e em colaboração lançaram: ▁ ▂ ▃▗ ▘ ▙ ░ ▒ ▓ ╩╦├─┼⊕. Numa nota deixada no SoundCloud, disponível na página dos últimos, lê-se que esta é a terceira e última versão dos discos que integram o projecto Entrevero Instrumental +. Nesta última versão foram utilizadas como ferramentas camadas electrónicas geradas em tempo real pelo software de programação Pure Data, sons acústicos manipulados, reeditados e nalguns casos afinados em escalas microtonais. E claro que o artista francês é mencionado como participação especial. Aqui, a estética alienígena cruza-se com a improvisação jazzística, contudo é possível decifrar o contributo do artista francês nas texturas rítmicas frenéticas que vão percorrendo o disco. O primeiro tema arranca num frenesim total, a bateria de Filipe Maliska surge-nos manipulada, fragmentada, desenhando compassos imprevisíveis e, pelo caminho, é possível ouvir momentos de guitarra, de acordeão e de vocais curtos processados. Já no segundo tema a presença de Thomas torna-se mais evidente e aí somos confrontados com a sua estética singular surgindo drones, sons reverberados com modulação de pitch; a a faixa vai-se desconstruindo até ao reaparecer da bateria, da guitarra e do acordeão, num retorno à essência jazzística, mas sem nunca se desligar da tal estética. Nesta fase, os instrumentos convencionais surgem processados e a música cumpre um propósito de desenho sonoro e de texturas imprevisíveis que varrem todo o espectro. Por último, temos o sétima tema, que arranca num compasso desconcertante e imprevisível; a bateria de Maliska evidencia-se permanentemente inquieta, acompanhada pela guitarra acústica, de Arthur Boscato e pelo acordeão multiprocessado de Diego Guerro, que surge praticamente irreconhecível. E, como não podia faltar, também somos presenteados com as texturas de Thomas, que se intersectam com todo este caos inquietante e surpreendente, resultando numa perfeita combinação entre a música avant-garde e o free jazz mais experimental. 



Como se pode perceber, a obra de Thomas é extensa e prolífera. Contudo, pouco se sabe sobre o artista francês. A sua história sempre esteve envolta numa aura de misticismo, o que contribui para a reificação de um certo imaginário alienígena, que se associa idiossincraticamente à sua obra. A música de Thomas é mistério, indefinição, futurismo e criatividade, tudo devidamente conjugado numa perfeita simbiose sónica e cósmica, que se expande pelos confins do universo. Se na última década houve alguém que elevou a música underground a um patamar de excelência, quebrando as barreiras estéticas e conceptuais previamente estabelecidas, esse alguém foi o artista francês. A sua música tem tanto de mágico como de incompreensível, evocando organismos vivos, semitransformados, semifeitos, em que o hermafroditismo é um conceito amplamente trabalhado ao longo da sua extensa obra.

Para além disso, a obra de qebrus surge quase como inevitavelmente embebida num forte sentido de humor; há a alusão a corpos metamorfoseados, viscosos, imperceptíveis, e mundos que nos parecem oníricos, feitos de aço, metal, vísceras, ossos disformes e cartilagens. Há tanto de palpável como de impalpável, de tangível como de inefável, isto se tentarmos definir por conceitos e palavras a sua música. Há ainda o uso de enigmas, de códigos linguísticos (de provável origem alienígena?) que nos surgem como indecifráveis, e referências a criaturas exóticas, sem um sexo definido, hermafroditas que se dão pelo nome de Egnamis. Todo este universo concebido por Thomas tem tanto de misterioso, como de mágico, a indefinição transborda pelas planícies indeléveis do universo desconhecido, sem limites pré-definidos, num qualquer metaverso ou realidade digital inacessível, mas que nos parece vívida, orgânica e palpável através dos sons que nos indicam a movimentação de corpos sejam eles feitos de carne ou de metal.

O trabalho de Thomas continua a soar inusitado, mesmo depois da sua precoce partida em Fevereiro de 2018. Talvez o artista continue a fazer a sua música num universo distante, rodeado de criaturas vivas, misteriosas e transcendentes, num qualquer resquício de alma a viajar pelos confins do universo inexplorado. Se continua a existir algum lugar para invenção no que compete à linguagem da música electrónica, o produtor, com toda a sua ousadia e mestria, mostrou esse caminho, que continua a inspirar tanta gente que procura um ponto de refúgio na música experimental e exploratória. 


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