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Fotografia: Ana Viotti
Publicado a: 29/06/2022

A ferramenta de vingança que é a sedução (e ser-se feliz).

Trypas Corassão: “O normativo não nos interessa em nada. Não comove, não causa paixão, não seduz”

Fotografia: Ana Viotti
Publicado a: 29/06/2022

Cigarra é DJ, produtora, editora e label manager. Cresceu na cena underground de São Paulo, é mestre em rodas de sample e há mais de seis anos que organiza festas que estão a transformar a noite de Lisboa. Tita Maravilha é atriz, performer, cantora e palhaça. Formada em Artes Cénicas pela Universidade de Brasília, encontrou em Portugal um terreno fértil para a sua afirmação como artista, criadora e pensadora de arte. Juntas são as Trypas Corassão, uma dupla que cruza as linguagens da música e da performance, espalhando ruído, cremosidade, beleza e comoção em todos os lugares que vêm conquistando. 

Depois de vários espetáculos ao vivo, acabam de editar o seu álbum de estreia, cujo título, Beleza Como Vigança, é todo um programa estético-político. Uma viagem sonora, íntima, ritmada e ruidosa cujo primeiro mandamento é o de que se quebrem todas as fronteiras. Desde logo as de género, desafiando as estruturas patriarcais, binárias e cisheteronormativas, que continuam a impor a sua moral dominante. Mas também as fronteiras artísticas, propondo-nos uma insurgência sonora e estética contra as regras que definem o que é belo na música, na arte e nas ruas. 

Beleza Como Vingança é um álbum em que a estrutura do baile funk se funde com os mais diversos universos eletrónicos globalizados, com a pop, com o brega e com um discurso performático poderoso e desafiante. Uma música que tanto assume uma forma narrativa, como emerge de colagens de samples que, nas palavras das criadoras, precisam de ser redistribuídos. Desafiando todos os binarismos e convocando outros corpos e subjetividades, este é um trabalho que aposta tudo no calor que nasce da crise e da fricção. As armas são apontadas aos pastores do normal, mas a mensagem nunca é bélica porque, como aqui nos explicam, o que as move é a sedução. A beleza está a passar por aqui. E a revolução também. 



Para quem não conhece o vosso trabalho, podiam falar-nos um pouco de onde vocês vêm, como se conheceram e de que lugar partiram para este processo de criação conjunta entre a música e a performance? 

[Tita Maravilha] A gente se conheceu aqui em Portugal. É a história de duas brasileiras, uma de São Paulo e outra do interior de Goiás, que se encontram numa festa. Eu estava performando e a Cigarra tocando [no réveillon de 2018 para 2019]. Então ela tocou um remix da Linn da Quebrada e na hora eu tirei a roupa e subi na caixa de som. Daí a gente já percebeu que seria por aí o caminho. Eu tinha vindo do Brasil com sede. Tinha acabo de me formar, escrevi um projeto para uma primeira peça e entendi que ela seria a pessoa perfeita. É aí que surge o nome da Trypas Corassão. Foi o nome do primeiro espetáculo: Trypas Corassão: Espetáculo em 2 atos, com apoio do Self Mistake e o do Festival Alkantara. A gente apresentou na Latoaria e foi uma pequena explosão no centro de Lisboa, foi o que a gente sentiu. 

[Cigarra] Foi um espetáculo entre a música e a performance e já desconstruindo todas essas barreiras. Quem ia assistir ao espetáculo ficava meio atordoado sem saber se aquilo era música, se era teatro, se era performance. A gente borrou todas essas fronteiras desde o começo.

Como surgiu o nome Trypas Corassão? 

[Tita Maravilha] Eu tinha uma coisa com a Agatha [Cigarra] em que os nomes dos espetáculos não aparecem nos espetáculos, mas este aparecia uma vez no primeiro ato: “Eu já te dei tudo. Absolutamente tudo. Eu já te dei tudo o que eu tenho, menos o meu vestido que eu comprei em Vila Franca de Xira. Já te dei tudo, para você eu fiz das tripas coração”. Foi a explosão de primeiro espetáculo de nós duas, uma entrega quase excessiva. Essa história de dar o corpo ao manifesto. 

A música e a performance são linguagens artísticas que se construíram de forma distinta, mas que vocês trabalham de forma misturada e conjugada, como uma coisa só. O que é que a linguagem da música acrescenta à linguagem da performance e, inversamente, o que é a linguagem da performance pode acrescentar à linguagem musical? 

[Cigarra] Na prática para a gente isso já está muito relacionado. A gente trabalha na desconstrução da pop, com música experimental, e com uma performance que também dialoga com a pop. Essas duas dinâmicas do que é comercial e não é, do que é experimental e não é, para a gente combina muito e casa muito. Essas duas criações estão muito relacionadas. O que parece que fica distinto é quando o sistema pede dois formatos diferentes. A gente joga com todas as ferramentas e linguagens, desde gravar um álbum até trabalhar uma performance de arte contemporânea. A música e a performance têm muita relação porque é como a gente se expressa e como a gente vive. Não tem muita diferença do que é Trypas Corassão e do que é o nosso quotidiano. Nós falamos da gente o tempo inteiro. Não estamos ali a construir uma personagem, mas atuando como Tita Maravilha e Cigarra. Estamos falando de nós mesmas o tempo inteiro. 

[Tita Maravilha] No percurso do nosso trabalho sobre o que é performance e o que é música, a gente foi rasgando dentro desses dois espaços. Quando a gente criou o espetáculo, as pessoas pediam um enquadramento do que era. Teatro, performance, música? Quando a gente fala dessa desconstrução de género também é importante pensar essa desconstrução enquanto linguagem. Para mim foi importante a gente ter comprado as nossas coisinhas, a gente foi estudando e pensando o futuro também. Quando vem para o caminho da performance a gente pensa muito também. Então é essa instrumentalização dos dois lados: do pensamento, do que a gente quer propor enquanto arte contemporânea, o que a gente joga para o mundo; e a nossa profissionalização dentro disso também. Onde é que entra o nosso equipamento dentro disso? Como se faz a manutenção? Somos pensadoras em arte, mas esta é também uma profissão.

Quando vi o vosso espetáculo parecia que o projeto de Trypas Corassão era um show pensado para acontecer ao vivo. Um projeto para ser efémero, no sentido em que tinha que acontecer ali, naquele lugar, com aquela gente, para quem o experienciava. Um álbum é outro tipo de registo. É um objeto que fica marcado no tempo, registado, que pode ser usado de mil formas que não controlam porque a música circula. O que é que muda da linguagem ao vivo, corpo a corpo, para a linguagem gravada, de estúdio, que perdurará muito para lá das nossas existências? 

[Cigarra] A gente está descobrindo isso agora. Foi o primeiro desafio e foi um desafio muito único. Os nossos concertos eram uma mistura de várias coisas, adaptadas ao espaço e ao momento. Quando a gente começa a fechar as nossas músicas, a fechar o refrão, a descobrir que a gente tem um refrão [risos], a repetir as estruturas, isso tudo foi como um novo brinquedo. Como é que a gente se vai divertir agora em cima disso? Claro que a princípio a gente vai nessa confiança, dessa estrutura repetida que também é bom, tem dado uma formatação do nosso concerto que fica um pouco mais vendável e mais reconhecível para quem está ouvindo e pode cantar junto. A gente agora tem uma resposta do público que não tinha antes. Sempre foi uma resposta apaixonada, mas agora é uma resposta que o púbico está junto com a gente. A gente tentou também trazer isso para o álbum com essa última música [“de4DECÔ MEGAMIX”], que tem sete minutos, e é justamente para tentar trazer um pouco da experiência do que a gente faz ao vivo, para mostrar que a gente tem essa experimentação que é vista no concerto. A gente quis marcar isso com essa última track para trazer o que é essa performance que você diz, em que parece que o show é para acontecer naquele momento. Mas enfim, colocando isso num álbum, a gente está descobrindo como é que vai funcionar. Se a gente vai enjoar, se vai largar mão, se vai desconstruir isso tudo, a gente precisa de mais tempo para mastigar essa ideia. 

[Tita Maravilha] A gente aproveita o registo para lembrar. A coisa se desenvolveu muito nesses três anos, desde esse primeiro espetáculo. Foi um espetáculo de improviso, de onde surgiu essa demanda da noite, e a gente entendeu como esse espetáculo também era um grande concerto que a gente adaptou para esse show da Beleza Como Vingança. Quando a gente fala sobre beleza, é um conceito que nos interessa, porque é um conceito super movediço, é um conceito perigoso. O que é que nós duas estamos tentando trazer? De que na música, nas nossas identidades, na nossa criatividade, e na nossa conceção enquanto mulheres latino-americanas, a beleza não é branca, magra e cisgenéra. A beleza pode ser ruidosa. O nosso álbum vem de uma experiência performativa com pessoas. A gente experimentou muito antes de ir para estúdio. Esse momento de tomar decisões para colocar no registo é outra coisa. Esse álbum fica eternizado desse jeito que está agora, mas eu realmente sinto que ele é um desejo de estar ao vivo, sabe? Está no mundo para as pessoas estarem com a gente fisicamente. A gente gosta mesmo é da ideia de festa, da ideia de encontro. 

Quando ouvi o álbum senti que a música e o discurso trabalham sobre ideias que muitas vezes são apresentadas como dicotómicas, paradoxais ou conflituantes, mas que no vosso trabalho aparecem profundamente conjugadas e articuladas. Estava a pensar, usando palavras vossas, na ideia de “cremosidade” e de “ruído”, mas também nas ideias de “agressividade” e “sensualidade”, “medo” e “potência”, “comoção” e “provação”, “beleza” e “vingança”, “prazer” e “revolta”, “fragilidade” e “empoderamento”. Ou seja, mundos que muitas vezes se apresentam de forma dicotómica, mas que vocês trabalham num diálogo conjunto. Faz sentido para vocês este tipo de leitura? 

[Tita Maravilha] Por acaso gostei de ouvir você falando e trazendo isso porque eu não gosto dessas sensações binárias. Sempre vêm duas ideias, mas eu gosto de trazer esses impactos duplos, triplos, quádruplos e por aí vem. Quando a gente foi criando, a gente queria que realmente pudessem vir sensações múltiplas, para se confundir também, como que num jeito de pegar as nossas referências. 

[Cigarra] Eu acho que quando se coloca essa binariedade em ponto de oposição, quando você coloca entre o ruidoso e o cremoso, por exemplo, se você coloca que as duas coisas são a mesma coisa, você já está criando um novo conceito. Então você desfaz um pouco a cremosidade, desfaz um pouco o ruído, para chegar nesse meio, mas que contenha tudo dentro de uma mesma coisa. Então não são necessariamente dois polos, mas são vários. O caminho que você faz para ir de um polo ao outro é o que interessa. É esse meio, é essa fricção. Qual é o calor que a gente cria dessa nossa fricção? Isso acontece muito em quem somos, em que somos na rua e quem somos entre nós duas. Para mim foi a primeira vez em que estive a fazer uma parceria com alguém assim a sério. E aí o aprendizado foi exatamente isso: “Uau, como é bom sair de dentro de mim simplesmente e ir a um lugar, que não é totalmente dentro dela, mas que é o que a gente cria juntas”.  



Vocês definem o disco como uma “insurgência sonora e estética contra as regras que definem o que é o belo”. Quais são essas regras que vocês acham que temos de desconstruir e enfrentar? E porque é que para vocês ainda faz sentido disputar o conceito de beleza? Estou a pensar, por exemplo, nos conceitos de norma ou de normalidade que vocês abandonam, abraçando a ideia de monstruosidade. A normalidade é um conceito que não vos serve, mas a ideia da beleza sim. Porque é que é uma palavra importante de ser disputada? 

[Tita Maravilha] Vou citar o último espetáculo que eu fiz que é o Outra Língua. Toda a vez que a gente diz uma palavra, a gente está disputando o significado dessa palavra no mundo. Por isso a gente pensou muito sobre o conceito de beleza como vingança. Nós não queremos reformular o conceito de beleza, mas talvez ampliar esse conceito que pesa tanto na história, na sociedade, nos nossos corpos ou dentro da arte.  É interessante você perguntar se ainda vale a pena disputar esse conceito. Sinceramente não sei. Mas é esse contra-ataque. A vingança, na verdade, é ser feliz. Isso eu vou tentar. Ser bonita no que der, manter-me viva e ser feliz. 

[Cigarra] Eu acho que esse conceito de beleza tem a ver com a norma. A gente abandona o normativo, porque o normativo não nos interessa em nada, só traz um nada, um estado do mesmo. E isso não comove, não causa paixão, não seduz. Quando a gente traz o lance da beleza é para falar da sedução. Essa beleza pode ser monstruosa porque a gente se apaixona por monstros também. A gente fica naquele espacinho para ver aquele monstro outra vez. É aquela sedução que a gente tem por um cheio ruim, por um sabor esquisito, por uma pastilha amarga, por alguma coisa estranha. Tudo isso tem a beleza de uma sedução e aí a gente viu nessa sedução uma ferramenta de vingança. No final do concerto, ou desse álbum, vocês estarão completamente apaixonados, isso é uma vingança. Não diria que esse ato é bélico, porque é contrário disso. Não é ninguém contra a ninguém, é uma sedução mesmo. É uma comoção, uma forma de trazer para o nosso mundo, de fazer o povo acreditar realmente em tudo o que existe de contagiante, de comovente no que fazemos, e a gente vai usar as armas mais sujas para isso. Por isso a gente vai brincar com o apelo da pop e o apelo do ruído. E fazer as pessoas perguntar: “Porque é que eu gosto desse incómodo?” Ser inesquecível tem a ver com essa desconstrução de um belo normativo. O belo não tem nada de normativo para mim. Tem a ver com paixão.

No álbum vocês misturam várias linhagens sonoras, do baile funk à pop, do brega à house e ao techno, da música romântica à música experimental. E há também um trabalho muito interessante em que nos convidam a seguir um certo ritmo e envolvimento, como se os corpos começassem a ganhar um certo ritmo padronizado, mas que logo é interrompido e baralhado. Quando gravaram o álbum, a forma de construção sonora aconteceu também como uma espécie de performance, com o microfone ligado e com as gravações a irem sucedendo, ou escreveram as letras e a música antes de as gravarem? 

[Cigarra] Eu sou totalmente do sample e do mundo digital. Comecei a experimentar algumas coisas mais analógicas vindas da necessidade de criar este álbum. Queria alcançar coisas que não tinha conseguido alcançar antes. Para mim foi uma grande realização porque estava habituada a composições mais pré-prontas e neste álbum tive oportunidade de trabalhar com instrumentos e com a voz da Tita. Mas ao mesmo tempo é tudo muito digital. Eu me enfio na minha cama, com os meus fones de ouvidos e crio coisas e vou partilhando com a Tita. Quando pensava na narrativa do álbum, veio essa vontade de ter esses ritmos todos. Eu entrava em cada mundo desses e pensava: “Ok, agora é preciso construir dentro da linguagem do brega, como é que vou construir isso?” Ia ouvindo muita coisa, puxando um elemento daqui, outro elemento dali, e construindo alguma coisa minha. Mas sempre militando na ideia de apropriação dos samples, agora muito micro e muito referentes. Ir puxando uns tons de cada coisa para construir a nossa coisa. Nas músicas a gente vai entrando nessa coisa ritual que para nós é muito importante também, talvez até de uma celebração ancestral que a gente traz. Mas também é importante a quebra disso porque a gente também não está completamente dentro desse ritual. Estamos num contexto muito mais urbano, caótico, então a gente também sai e desconecta, conecta e desconecta e conecta de novo. Tem sempre essa conjugação e disjunção do ritual, do experimental e do disruptivo também. 

[Tita Maravilha] Disruptivo é uma palavra boa. Tentar colocar tudo junto foi um desafio. O funk tem de estar pontuando o tempo todo e aí um desafio do álbum é realmente conjugar tanto sample, tanta coisa realmente… roubada não é a palavra…

[Cigarra] Apropriada? 

[Tita Maravilha] Redistribuída! Redistribuída! [risos] A gente alterou tanto que depois que se transformou em nosso. Este álbum é para quem se disponibiliza a se emocionar com a gente, mas sem pressão nenhuma.

Em relação às pessoas convidadas no álbum, querem falar um bocadinho delas e porque foram importantes na construção deste objeto?

[Tita Maravilha] A gente optou por três parcerias que não estão em Portugal. Surgiu logo a ideia da Lola Bhajan, que é uma gata da argentina com quem a Cigarra já tinha feito um som e é uma voz que realmente despertou magia. Na hora já associei com a minha amiga Iêda, com quem fiz minha transição logo de início, e que tem aquela voz… ENANA a gente conheceu em Berlim, numa roda de sample, eu com o microfone, ele com microfone, e já surgiu ali uma coisa muito fucking interessante na hora. E aí também o R Vicenzo.

[Cigarra] O Vicenzo é um parceiro meu de longa data, um grande brother de S. Paulo que trabalha comigo há muito tempo. Os outros dois convidados [Mandacaru no trompete e Vinícius BigJohn na sanfona] vieram de uma vontade do próprio instrumento. A gente pensava: “Quais são os instrumentos que combinariam com esta linguagem?”; “O saxofone?”; “Clama, saxofone é brega de mais!” [risos]; “O trompete?”. De facto, essa é a linguagem de sopro que mais tem a ver com essa enunciação. E a sanfona que traz aquela coisa bastante romântica, da cultura popular brasileira que eu e Tita partilhamos muito da nossa formação na música desde crianças. A minha avó era sanfoneira. Foi muito emocionante ter uma sanfona junto. 

Queria também perguntar-vos algo sobre os vossos concertos e performances ao vivo. A festa, a noite e o clubbing, podem ser experiências super libertadoras, mas ao mesmo tempo podem ser experiências muito violentas. Apesar de tudo, a noite de Lisboa continua a ser uma noite misógina e com problemas que vão desde a gestão da porta, às pistas, ao respeito pelo espaço das outras pessoas. Vocês que são pessoas de festa e de clubbing, como sentem que está a noite de Lisboa? E que preocupações é que acham que é preciso afirmar para termos uma noite menos normativa e excludente? 

[Cigarra] Enquanto Trypas Corassão, a gente acha importante estar em todos os lugares, atravessar pessoas que não imaginávamos estar atravessando, mas também temos muita preocupação sobre se esse espaço vai conseguir abraçar o nosso público e com nós mesmas e os nossos próprios corpos. Às vezes é violento, porque estão usando dos nossos corpos para tentarem fazer da programação uma forma de melhorar aquele espaço do ponto de vista do curador, mas que não é necessariamente alinhado com o ponto de vista da produção do próprio espaço, da gerência e daquele público. A gente acha importante estar em todos os lugares, mas não é a nossa obrigação. A gente tem que pensar primeiro nos resguardar também porque nossos corpos são passíveis de violência. E o nosso público é a mesma coisa, o nosso público é de mulheres, trasvestis e pessoas dissidentes como um todo. Eu enquanto Cigarra, produzindo os eventos, sinto que há um contínuo. É sempre uma construção, é sempre uma adaptação, naquele respeito extremo da escuta do público que nos diz onde estão os problemas. As parcerias que não estiveram comigo, que não quiserem melhorar comigo e abrir a escuta, não são parcerias que nos interessem. Se está melhorando? Está melhorando. Temos espaços? Temos. Mas esses espaços estão a ser tomados. Também há espaços a tentar construir coisas novas e temos de pensar em campanhas de como melhorar a formação de seguranças. Tem espaços que estão com a gente nisso e eu acho que o público está-se empoderando estando junto. A quantidade de imigrantes que foram chegando de vários lugares marginais, que estão em fuga das suas cidades ditadoras, e se reuniram aqui e juntaram as forças para estar nessa front, para estar na pista junto com a gente, eu acho que isso por si só foi a maior potência. É a maior potência na transformação desses espaços, porque a gente cuida um do outro, a nossa comoção é feita pelo afeto. Quando a gente está junto está-se sempre contactando e olhando um pelo outro, isso já é uma vitória da nossa presença em clubbing e em todos os locais. 

[Tita Maravilha] Têm rolado algumas explosões, principalmente Lisboa, também no Porto e outros lugares em que fui passando. A gente está percebendo como vai mexer nas estruturas da mente e do país. Gosto muito de pensar em formação de público. E tenho pensado sobre isso nos meus espetáculos e nos lugares onde passo. Acho que têm rolado essas explosões, as pessoas estão tentando e é importante que se abra o pensamento para pensar junto. As regras dos espaços não nos cabem, é desconfortável. Ao mesmo tempo, a gente já foi tão bem acolhida… Posso citar nomes como Tremor, para a gente foi um luxo. E aí vai estar borrando o que é underground e não é. A gente pode-se pensar como rainhas do underground, mas estamos escavando outros lugares. É um caminho árduo que a gente está fazendo. 

Uma última pergunta, e pensando no trabalho de uma atriz e criadora que é nossa amiga comum, a Mariana Ferreira, ela fez um espetáculo chamado Home, de que a Cigarra também participou, onde se pensa e trabalha muito sobre as ideias de casa e de lar, e do que essas ideias significam para cada uma de nós, com as nossas vidas, histórias e identidades. Neste percurso que têm feito nos últimos anos, Portugal tem sido uma boa casa para vocês?

[Cigarra] Citando Home também, e tudo o que desenvolvi com a Mariana, talvez não exista esse conceito da “boa casa”. Existe o conceito de casa. E o lar é onde a gente se sente no lar. Não é necessariamente um espaço traumático, mas pode ser um espaço de muita crise e que nos faz querer mover para outros lugares, querer mover o próprio espaço. Para mim Portugal é realmente muito uma casa. Eu vim com família, com a minha filha, que é portuguesinha também, tem toda uma construção que fui criando junto com ela. Mas ao mesmo tempo eu percebi que aqui era um terreno fértil. Quando cheguei vi que tinha uma potencialidade de faíscas muito bonitas acontecendo, potências querendo surgir, querendo crescer, um terreno pronto para receber sementes. Foram anos tentando desconstruir o que significa a “lusofonia”, que na verdade não existe. Era sempre a gente entrando em contexto “lusófono”.  A gente nunca usou esse termo, fora de Portugal não é usado esse termo, é um termo colonial, então era esse campo de batalha. Eu tentei trabalhar sementes aqui, experimentando um conteúdo que era querido aqui e ao mesmo tempo lutando para que não fosse engolido completamente pela cultura daqui. A ideia era que fosse uma nova coisa que construíamos junto. Não era um campo batalha, mas uma tentativa de construção coletiva para destruir uma ideia anterior do exótico que vinha para cá. Ao contrário de outros países que vi que não havia muito diálogo, aqui há um diálogo entre toda essa PALOP, a gente prefere falar desse lugar. Quando vou para Alemanha, França, tem outras conexões, mas não é um diálogo tão direto, mas mais com o “outro”. Então não tenho muito o que brigar lá. Aqui gente conseguiu fazer ambiente de crise e esse ambiente de crise cria ambiente de revolução. É isso que me interessa, não é ir para lugar onde seja muito fácil, muito bonito e muito confortável. 

[Tita Maravilha] Uma das primeiras decisões que tomei em Portugal foi não conversar sobre processos anticoloniais no bar. Eu acho que todo o mundo está tentando ao mesmo tempo, mas é um processo difícil e complicado. Portugal tem sido excelente comigo, Lisboa tem sido uma maravilha, é um novo momento. É o primeiro momento em que consigo trabalhar com arte. Vou citar Jota [Mombaça] no último livro dela [Não nos vão matar agora], que tem um dos capítulos com o título: “Carta para as que vivem apesar do Brasil”. Acho que é um pouco nesse sentido. O Brasil não me aceitou também. Portugal é mais ou menos violento, são outras violências. Eu tenho de estar preparada para esse lugar de combate, mas ao mesmo tempo buscando descanso. Em Portugal também busco em jeito de descansar. Faço arte, mas também tento-me manter viva. Num processo anticolonial para o futuro, tem muita gente tentando e muita gente massa no caminho começando a entender realmente como vão ser esses encontros para o futuro, o que é essa ideia do lugar de fala. Algumas pessoas me dizem: “Tita, estás em todas!” [risos]. Eu não estou em todas porque fui convidada para tudo não. A gente se infiltra em alguns lugares, nem tudo foi convite, inclusivamente o início não foi convite. É importante entender como a estrutura opera. Eu acho que nós somos duas gatinhas que estudaram o sistema para poder ser antissistema hackiando. Não criei muito no Brasil, não tive dinheiro, e aqui já consegui tirar o meu pé-de-meia porque realmente a dívida histórica só será restituída com spa! [risos]. 

[Cigarra] Em sempre fico pisando em ovos a falar sobre isso. Eu sou suspeita porque sou apaixonada, gosto mesmo de estar aqui. Mas ao mesmo tempo tento colocar essas questões problemáticas que permeiam isso tudo: “O que é que é estar apaixonado?” É estar doente pela coisa também. Aqui não é tudo perfeito, pelo contrário. Aqui existe a crise, e no meio muita beleza e muita sedução. Então detesto quando aparece em que ’tou elogiando Portugal, não é o caso. Nunca é o caso. Porque não se elogia países, ou uma nação. É só realmente o reconhecimento do nosso trajeto, como tem sido viver aqui e como é construir um lar nosso dentro desse lugar. É também viver apesar de Portugal, mas aqui. É importante trazer isso que a gente está construindo sobre esse lugar. Não é mérito de ninguém, é uma construção realmente coletiva.


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