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Fotografia: Rui Palma
Publicado a: 05/12/2022

Um desabrochar inevitável.

Surma: “Este álbum foi uma experimentação louca em estúdio. Diverti-me muito a fazer o alla

Fotografia: Rui Palma
Publicado a: 05/12/2022

Pensemos um pouco na palavra “vulnerabilidade”. Definição: “Qualidade de vulnerável” – pelo menos é isso que indica o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Mas o que é exactamente isso?

Em alla, o segundo disco de Surma (nome artístico da leiriense Débora Umbelino), lançado no passado dia 11 de Novembro pela sua casa de sempre, a Omnichord Records. No sucessor do muito aclamado Antwerpen, a compositora, intérprete, produtora e performer propõe-se a abraçar a sua vulnerabilidade, desconstruindo, no processo, o universo sonoro que poderíamos esperar vindo de si, as suas próprias relações – não é toa que o disco é recheado de colaborações, de Selma Uamusse até Angelica Salvi – e, acima de tudo, da sua própria identidade. 

Se a Surma de Antwerpen, editado em 2017, era mais recatada, a de alla tem bem assente a coragem para mostrar realmente quem é, tanto a nível pessoal como também a nível artístico. Em palco, durante a digressão que se aproxima deste alla – arranca dia 6 de Dezembro em Leiria, no Teatro José Lúcio da Silva, e termina dia 17 de Dezembro, na Culturgest, em Lisboa, com passagens extras por Braga (10), Porto (11) e Aveiro (16) –-, a artista irá encarnar uma personagem, apresentando-se em formato trio pela primeira vez com a ajuda de João Hasselberg e Pedro Melo Alves.

Após oferecermos as primeiras impressões sobre este alla, o Rimas e Batidas sentou-se à conversa, num final de tarde a tornar-se noite num pequeno parque em Benfica para entendermos mais sobre o que se passou durante estes cinco anos de interregno entre discos e de como nasceu todo o universo em torno deste seu novo longa-duração.



Passaram-se cinco anos entre Antwerpen e este alla. Que diferenças existem entre a Surma que lançou este novo disco e a Surma que lançou Antwerpen em 2017?

É totalmente diferente, não tem nada a ver. A Surma que lançou o Antwerpen era um bocadinho retraída, era uma pessoa muito insegura, com medo de arriscar e de ser ela mesma. A Surma de agora está muito mais relaxada no que toca a ela mesma. Aceita-se como ela é – e isto de estar a falar em terceira pessoa está a ser incrível [risos]. Mas é um bocadinho o tirar de uma máscara que estava a ser usada há muito tempo e acho que “vulnerabilidade” é a palavra que define este álbum a 100%. Na altura do Antwerpen, achava que [vulnerabilidade] era uma palavra que definia fraqueza e não era boa, mas agora acho que é uma palavra que define força, persistência. E é bom ser vulnerável! Não nos podemos esconder que é isso que nos traz insegurança e o medo, e é bom falar das coisas e não criar um tabu à volta disso. Ser vulnerável é incrível! [Risos]

Acho que há duas palavras para definir o alla: a primeira é vulnerabilidade e a segunda é disrupção. 

Wow, ok! De certo modo, sim, de várias temáticas. Acho que com este álbum queria dar um bocadinho aquela mensagem de força às pessoas que passam, infelizmente, por muitas dificuldades, como discriminação, bullying, racismo, de tentar passar por esses obstáculos de uma forma positiva e sem rancor. Mas, sim, eu sempre quis que Surma desse uma mensagem positiva e um bocadinho impactante às pessoas. Com este álbum, quero dar essa mensagem de força e esperança, de não estares sozinho no mundo. Acho que essa é a mensagem principal que quero passar com o álbum e, acima de tudo, uma mensagem de força e não de pena, porque apesar de ter passado por várias fases menos boas, isso fez-me a pessoa que eu sou hoje, e costumo agradecer aos bullies porque, se não fossem eles, eu não era a pessoa que sou hoje, não tinha a força que tenho hoje. É um bocadinho essa casca de tartaruga que quero passar às pessoas.

Uma vez numa sessão de terapia a minha psicóloga perguntou-me sobre isso e eu fiquei a pensar no assunto. Por um lado, sentia-me triste, mas, por outro lado, senti algum conflito: se não passasse por aquilo, talvez não seria a pessoa que sou hoje.

Exacto! É óbvio que foi horrível e traz muitos traumas, e é horrível os miúdos passarem por isso, mas – e falo por experiência própria – eu vejo as coisas de uma maneira completamente diferente. Às vezes, quando a vida te dá aquelas situações mais pesadas e menos boas, penso muito nessas fases da minha vida e ganho força. Não sei, é estranho! E obrigada, bullies, no hard feelings! [Risos]

O alla acaba por ser um disco muito introspectivo mas muito expansivo em sonoridade, e isso está-me a deixar pensar: nos últimos cinco anos, qual é que foi o momento que te fez ter essa perspectiva que te levou até este alla?

Acho que foram os cinco anos em conjunto, foi assim um processo de maturação enquanto artista e enquanto pessoa. Acho que se estivesse lançado este álbum dois anos depois do Antwerpen, não seria a mesma coisa de todo. Eu não gosto de trazer o assunto pandemia aqui à baila, mas esses três meses de paragem completa também me deram essas crises existenciais, esses sistemas na minha cabeça que eu queria aqui falar há imenso tempo, mas que, na altura, não tinha maturidade suficiente. Trabalhar também com várias áreas artísticas, como por exemplo, o teatro, a moda, o cinema, a dança, também me trouxe muitas inspirações no que toca à arte e como ver a arte num todo, e isso trouxe-me uma recriação de uma persona que eu já queria trabalhar há imenso tempo. Mas acho que não houve um switch específico para acontecer isso, foi um amontoar de situações ao longo deste cinco anos que me fizeram ver as coisas de um outro modo para este álbum.

Não gosto muito também de falar da pandemia porque todas as entrevistas que fiz no último ano esse tema acaba por surgir! Mas uma das razões que acabei por encontrar relacionamento com o alla foi porque me levou a pensar na minha própria experiência durante a pandemia. Tinha começado terapia há pouco tempo e passei esse período a explorar a minha identidade. Por isso, queria-te perguntar: achas que este alla tem um certo valor terapêutico para ti?

Sem dúvida, tanto que o single [“Islet”] foi esse mesmo processo terapêutico em estúdio. Foi uma conversa de horas e horas com o Rui [Gaspar], que é o meu partner in crime e produz os álbuns juntamente comigo, em que nos sentamos e ele convenceu-me que essa música tinha de ser um hino, tinha de ter ler e falar de uma situação especifica da minha vida, e aquilo fez um switch na minha cabeça e pensei: “Não, tem de ser mesmo porque esta música toca-me de uma maneira muito especial a nível de instrumental”. Eu sou muito sortuda por estar neste meio e acho que tenho uma voz activa e é o meu papel dar essa voz às pessoas que, infelizmente, passam por situações mais infelizes. E, então, pensei que ia ter mesmo que criar uma letra de uma situação específica da minha vida e ir para a frente com isto. E falamos e falamos e falamos, até que demos por esta situação e que acabou por dar nesta letra fortíssima, para mim, porque quero também dar esse lado mais terapêutico às pessoas e essa mensagem positiva e, lá está, não de pena, mas de força. Foi essa música que abriu o futuro do álbum e foi aí que percebi este álbum iria ter uma mensagem muito mais forte que o Antwerpen, muito mais impactante no que toca a essa área de não nos fecharmos em nós, que isso é péssimo. Comecei a fazer terapia também recentemente e tem-me ajudado muito. Não devemos ver isso como um tabu. Aliás, devemos ver isso como uma coisa a ser feita e que é bom para nós. Mas, sim, foi a “Islet” que abriu muito esse caminho, de querer dar às pessoas um bocadinho de mim.

Isto faz-me pensar quando existem séries e filmes com temáticas queer, tendem a ser sempre histórias tristes!

Tristíssimas! E era isso que eu queria também dar um bocadinho a volta. São histórias muito más e é mesmo deprimente ver essas séries e eu não queria isso. Queria que fosse uma mensagem feliz e que as pessoas que ouvissem aquela música ficassem bem com elas mesmas, que ficassem mais leves, que percebessem que estamos juntos nisto, que não estamos sozinhos. Eu descobri isto ao longo do tempo que podem passar 5, 10, 15 anos, tu vais encontrar as tuas pessoas, que te querem bem e vice-versa, porque isso acontece, e quero dar a conhecer isso às pessoas de um modo feliz e não desse modo mais triste ou mais depressivo. Nós não somos isso. Acho que o mundo é tão bonito e cheio de pessoas tão bonitas que pensar isso de um lado negativo não é bom. Este álbum quer passar uma mensagem muito positiva e com muita luz [risos].

Sobre essas questões da diversidade de género, vais fazer parte daqui a 2 dias [26 de Novembro] do painel de uma das talks inseridas como parte do programa do Super Bock em Stock sobre esse mesmo assunto. Por isso, pergunto-te: como é que a música pode servir como plataforma para a diversidade de género no contexto português?

Wow, pergunta incrível. Eu espero que tenha muito tempo de antena, mas acho que ainda temos um caminho muito grande para percorrer em relação a esse assunto. Com este álbum, também quero dar um bocadinho essa diversidade de não estarmos num só rótulo ou definires-te numa só pessoa ou de um só género, que eu acho que isso nos bloqueia tanto a nível emocional e é horrível. Acho que em Portugal ainda há um caminho muito grande a ser percorrido, mas tenho muita esperança nos músicos de hoje em dia. Tenho muitas conversas com colegas meus, e apesar de ainda haver uns que acham que isso não é tema, que acham que são coisas que não devem ser faladas… Mas têm de ser faladas! É importante hoje em dia, e acho que a música traz essa liberdade de expressão, de sermos 100% aquilo que queremos ser e traz essa voz às pessoas que ainda não conseguem encontrar o seu rumo. A música e não só! Acho que a nível das artes, no geral, temos essa liberdade inacreditável de dar esse modo positivo e de não nos fecharmos num só género para todas as pessoas que nos ouvem e consomem arte. Acho que é caminho longo, mas que está em bom caminho — espero eu.

Há uma cena em que às vezes penso: quando falamos de música queer, em Portugal, geralmente fala-se ou compara-se tudo a um só nome, o de António Variações.

Ah, sim, sempre, exacto. 

As pessoas comparam sempre um grupo como as Fado Bicha ao Variações.

Exato! É como o Conan Osíris — Variações. Percebo perfeitamente isso. Claro que está lá, mas lá está, acho que nós, nessa época, o que é que tínhamos de queer em Portugal? Que representasse tanto a nossa comunidade? O Variações era se calhar dos únicos a representar isso sem medo algum, e era uma altura horrível em Portugal para se ser queer. Ainda hoje – e nem vamos por aí –, passamos por fases horríveis. Mas acho que hoje em dia temos tantas pessoas incríveis a fazer música equalitária e que fala sobre esses temas. As Fado Bicha são um exemplo vivo disso, o Conan, a Odete. Tantos artistas que por aí andam, tantas pessoas inacreditáveis que temos no mundo da música. E não só na comunidade queer, mas também em pessoas que não são da comunidade queer e que tentam puxar esse tema para as músicas. Acho que estamos num caminho totalmente positivo no que toca a esse aspecto. Mas tens razão, o Variações é sempre o ídolo, e com todo o mérito e adoro o Variações, mas na altura, se calhar, não tínhamos mais ninguém.

O problema é que, talvez, desde aí não apareceu ninguém-

Exactamente, com a presença que o Variações teve e ainda tem, hoje em dia. Mas sim, foi um acto de coragem para ele, mesmo, pôs-se mesmo a 100% sem qualquer barreira. “Estou aqui, é isto que eu sou”. Não gostam, não gostam. E é isso que nos falta ainda.



Acho que isso nos leva de volta ao alla — tu colocaste-te ali a nu.

[Risos] Sim, é um bocadinho isso, de certa forma. Foram aqueles cinco anos que me deram esse switch para assumir aquilo que tu és, honestamente, sem falsidades por trás. 

Sobre as questões do desenvolvimento que falaste há bocado, é de certa forma também essa tua capacidade de te abrir mais que permitiu expandires a palete sonora que se pode escutar neste alla?

Nunca tinha pensado nisso nesse aspecto, mas sem sombra de dúvida que me influenciou muito. Este álbum foi uma experimentação louca em estúdio. Ir buscar sintetizadores cheios de pó, sem pilhas, e tentar ver o que é que podia fazer com aquilo, tocar com um tubo de plástico e tentar passar ar de um lado ao outro, ver o que é que aquilo dava na música, e foram esses instrumentos que não dávamos um euro por eles na música que uniram o álbum do início ao fim e criaram uma narrativa muito especial no que toca a essa experimentação. Nós temos uma música com, sei lá, 100 faixas de bateria, porque nós não sabíamos tocar bateria mas experimentávamos tudo e mais alguma coisa. Talvez tenha sido esse switch também que me abriu essa liberdade de criar. Diverti-me muito a fazer este álbum – muito mesmo.

Em comparação com o Antwerpen?

Sim, sim. O Antwerpen foi mais trabalho de produção mesmo, dentro do computador e sintetizadores já pensados para aquela música. Neste não, não tinha nada pensado. Foi chegar lá e “bora fazer tudo e mais alguma coisa”. Tinha só umas demos construídas em casa, muito secas, e levei aquilo para estúdio para as produzirmos os dois [ela e o Rui Gaspar]. Bora divertir, bora tocar guitarra, bateria, apesar de não saber tocar nada fluentemente. Bora pôr-nos nisto sem medo! E foi incrível, foi uma libertação inacreditável.

Engraçado que falas nisso do computador. Quando o Antwerpen saiu, muita gente comparou o disco com Björk, mas esse disco também tem o seu quê de Grimes lá.

Percebo! Ok, wow! Primeiro, compararem-me com Björk é sempre incrível e sinto-me mesmo: wow. Ela é minha professora, é minha inspiração, e Grimes foi sempre uma música que também me inspirou muito, a nível estético e musical. Por isso, não sei. Se calhar, fui buscar várias ambiências que levam um bocadinho ao mundo das duas. Mas eu percebo essa referência à Björk porque o Antwerpen tem muitas ambiências que vai buscar à Islândia, aquelas texturas mais nórdicas-

Que também estão no alla.

Exacto! Não consigo desligar da Islândia.

Gostava muito de visitar a Islândia!

Vai, vai, é mágico! Mas poupa muito antes de ires. É horrível. Ficas pobre logo no primeiro dia, esquece! [Risos]

O Antwerpen recebeu bastante aclamação quando saiu. Isso colocou-te de alguma forma pressão extra ou insegurança para criares um sucessor que fosse tão bem recebido como o Antwerpen?

Ui, sim! Muita, muita. Eu tive de ser quase despachada do estúdio [risos] porque estava com medo de lançar este álbum. O Antwerpen também estava com muito medo, mas neste foi: “será que as pessoas vão gostar?” Porque é totalmente o oposto do Antwerpen, no que toca a sonoridades, no que toca à estética, a tudo. E tive muito esta conversa com o Rui, de como é que as pessoas iam reagir ao álbum. “Será que isto vai correr bem? Será que não vai?”, e houve uma altura em que eu pensei em “bora só lançar o álbum, estou felicíssima com o resultado final e logo se vê”. E pronto. Está a correr muito bem e está a ser incrível, mas houve muito essa pressão, sim. Tentei não focar muito nisso durante a composição do álbum e abstrair-me disso quando entrava em estúdio, mas estava sempre a pensar: “Será que isto está a correr bem? O que é que eu posso fazer que vá mais de encontro…?”. Mas depois comecei a ver que isso era a maneira errada de pensar. Não tinha que ir ao encontro do outro álbum, eu tinha era que ir ao oposto do outro álbum, e acabou por acontecer muito fluidamente, sem pensar muito no género que queria. Aliás, nem pensei em nada, foi só: “Bora só fazer música”. Foi isso que me também ajudou a sair um bocadinho desse modo de ver as coisas um bocadinho de tentar fazer uma coisa parecido ao outro, que eu não queria de todo fazer um álbum parecido ao primeiro. Mas sim, sempre teve lá muita pressão no meio [risos], sempre.

Estás a falar aí da música de alla e isso parece que foi um exercício de caos e desconstrução, mas depois o disco tem uma narrativa coesa. Como é que essa convergência acabou por acontecer?

Olha, lá está, não te sei bem explicar ao certo. Acho que foi tanta experimentação e tanta partilha com músicas e amigos que já me são tão queridos há imenso tempo que acabou por criarmos uma atmosfera muito única para o álbum. Costumo dizer que se não entrassem metade dos colaboradores, o álbum não ia ser a mesma coisa, e isso acabou por criar uma narrativa muito especial e muito única, porque se ouvirmos as músicas separadamente não têm a mesma narrativa que se ouvirmos o álbum inteiro. E não te sei explicar ao certo como é que isso aconteceu, porque não foi pensado de todo. Acho que foi tão genuíno o processo de composição que acabou por dar nisso, e acho que quanto menos pensarmos nas coisas, melhor, porque as coisas criam o seu rumo naturalmente e acho que foi isso que aconteceu no alla. Foi não pensar muito na narrativa enquanto músicas conjuntas e só estar em estúdio com amigos e criar coisas que nos saíssem, porque acabou por ser muito genuíno e muito puro. Acho que isso se nota muito a ouvir o álbum. Está lá muita amizade!

Há dois dias, jantei com uma amiga minha e ela perguntou-me como funcionava o meu processo de escrita e nunca me tinham perguntado aquilo! Mas depois de pensar e lhe responder, concluí que não pensava muito. Começava e logo via onde ia parar.

É isso! Flui, não é?

Sim! Eu sinto que os textos que tenho mais dificuldades em fazer são aqueles em que penso mais.

Vês? Exactamente! Isso aconteceu-me em duas músicas do álbum, em que eu estava a pensar demasiado. Empacamos ali durante meses e meses, e depois foi: “Olha, bora fazer o que quer que seja”. E pronto, fechámos as músicas por esse pensamento. Às vezes, bloqueia-nos muito pensarmos nas coisas durante muito tempo, em loop, e não aproveitamos as coisas a 100%. Mas é isso mesmo, vês? Incrível. Que fixe.

Voltando agora a esse período de cinco anos entre discos, visitastes muitos sítios diferentes, destes muito concertos. Há alguma experiência que possas contar desses momentos que te marcou particularmente?

Essa é sempre muito difícil! Todos os países a nível cultural são muitos diferentes e todos eles incentivaram o meu modo de pensar, o meu modo de criar. Conheci pessoas incríveis! Ljubljana em específico foi um sítio muito interessante de estar. As pessoas vinham ter comigo, já conheciam a minha música. Em Ljubljana, qual é que era a probabilidade de as pessoas virem ter contigo e já conhecerem a tua música? E foi um sítio que me senti com amigos. Apesar de não conhecer essas pessoas, senti-me muito em família. Foi muito estranho. Mas Ljubljana acho que foi um dos sítios mais interessantes onde eu já estive enquanto música. Mas todos os países onde eu já estive foram incríveis. Deram-me coisas tão boas, tão bonitas e tão especiais que eu não consigo escolher um em específico. Mas Ljubljana foi um dos momentos mais especiais que tive.

Isso fez-me pensar: com tanto concerto dado em tanto país diferente, notaste alguma particular diferença entre os públicos desses países e o público português?

Olha, senti… quer dizer, nós somos um público muito caloroso. Somos um público incrível, mas essa pergunta é interessante porque, em todos os países que fui, tive sempre muita sorte no público e sempre me senti muito em casa. Foram sempre muito acolhedores, também. É óbvio que em Portugal estás em casa e estás no teu país, não é? Mas lá fora também foi muito… nunca tive uma má experiência, agora que falas nisso. Mesmo quando toquei para poucas pessoas, essas pessoas estavam lá a 100%, o que foi incrível. Incrível essa pergunta, porque agora que penso nisso foi sempre muito acolhedor em todos os países que eu fui. Mesmo na China que tem aquela coisa de serem frios, [não o foram] de todo, de todo. O público asiático foi muito incrível. Mas acho que todos os países foram muito acolhedores comigo, Na Alemanha, que também têm aquele estereótipo de mais frios, mas não, de todo – muito bom.



Há uma experiência recente tua que me chamou à atenção: tu conheceste a St. Vincent, que sei ser uma das tuas artistas favoritas. Como é que isso aconteceu?

[Risos] Sim! Olha, foi dos momentos mais incríveis da minha vida. Eu fui de propósito vê-la a Oxford, que ela teve uma tour europeia, e queria ir a todos, mas só consegui ir a esse e conheci lá – e ainda hoje são muito amigos meus, até vieram cá a Portugal há um mês atrás e ficaram cá em casa – um grupinho de três pessoas que estavam também sozinhos e criámos uma ligação incrível. A St. Vincent tem isso mesmo, liga as pessoas de um modo muito humano. E fui ver o concerto, houve muitos olhares [risos] – estivemos muito looking uma para a outra, foi incrível – e depois saímos, esse tal grupinho-

Morria se isso me acontecesse.

Eu morri mesmo! E depois estávamos ali cinco pessoas, estávamos muita pouca gente à espera, e ela sai com o manager – não sei bem quem era –, e ela é muito tímida, ou seja, é uma pessoa completamente diferente em palco. É um animal em palco e quando sai é uma pessoa muito tímida, e ela disse “olá!” Eu fique estática no meu sítio, não saí de lá, e o grupinho foi ter com ela, e ela olha para mim e diz: “Hey, cutie!” e eu fiquei só a pensar: “Hmm, tu estás a falar comigo?!”. Fiquei parada na mesma [risos], e depois veio uma menina chamar-me porque eu estava mesmo a pensar se aquilo estava a acontecer. E, pronto, tivemos uma química muito engraçada, ainda falamos para aí durante cinco minutos e tal. Cantamos as duas uma música do Beck quando eu disse o meu nome, “Hh, Débora”, [imita as harmonizações da “Debra”], e harmonizámos as duas. Foi uma química muito bonita! E depois foi incrível, porque ela estava, “ah, tu pareces espanhola” e eu “portuguesa!” e ela “ah, adoro Portugal”, e tivemos uma conversa enorme sobre Portugal, que ela adora vir cá. Foi incrível. Ela é também é assim um bocadinho socially awkward. Depois baixámo-nos as duas sem qualquer explicação, ficámos a falar assim corcundas [imita a pose], não sei porquê, [risos]. Foi do outro mundo, mas é das melhores histórias e dos melhores momentos da minha vida. Foi muito cómico, mas depois não me lembro de mais nada a partir daí. Foi: “Ok, wow. Isto aconteceu!”. Mas ela é uma pessoa incrível, muito simpática, fala muito com as pessoas que estão lá. E eu disse-lhe que era música muito graças a ela, e ela “ah, wow!”. Mas, pronto, foi wow. Ainda está aqui guardado [aponta para o coração]. Foi muito bonito! [Risos] Tens que a conhecer, ela é incrível.

Há uma cena que sempre tive curiosidade em perguntar-te: de onde é que surgem os nomes das faixas?

Isso é um processo que gosto muito, de explorar palavras e gosto muito da vertente da linguística — até já pensei em tirar um curso de linguística, que eu gosto muito da origem das palavras e de perceber de onde é que elas vêm. E penso muito na vibe que cada música me traz e tento explorar várias palavras que me trazem esse sentimento na música em várias línguas. É um processo que acho muito engraçado e muito divertido. E muitas das faixas deste álbum foram muito inspiradas em livros que li e que faziam todo o sentido em estar naquela música. Mas é um processo de exploração de glossários e dicionários que gosto muito, tentar perceber que atmosfera ou que cor esta música me traz, e tentar explorar um bocadinho esse modo mais teórico, que eu acho muito interessante. Acho muito piada a isso. 

Acho engraçado o contraponto entre gostares muito de palavras mas depois-

Não tem letra! [Risos]

É um adorno estético.

Exactamente. É fonético! Eu gosto muito desse contraste porque quando vou para estúdio e meto letra nas músicas não faz de todo sentido para mim e não sinto qualquer ligação com a música. Por acaso aconteceu na “Islet” e mais duas, mas é raro isso acontecer. Muito raro.

Na entrevista que deste ao jornal i, li que irias assumir uma personagem no teu espectáculo ao vivo durante a digressão deste alla. Dado o quão vulnerável e sincero é o disco, porque é que sentiste a necessidade de incorporar uma personagem para o apresentar em palco?

Wow! Incrível. Porque essa vulnerabilidade deu-me a força para tentar sair um bocadinho do meu corpo e desafiar-me a outras coisas. Sempre quis criar uma persona ao vivo, mas não tinha maturidade suficiente ou não sabia muito bem o percurso para onde eu queria ir. Mas essa pergunta é incrível. Mas não sei, sinto que estou num momento da minha vida em que eu quero explorar várias personagens que tenho em mim que se calhar ainda estão um bocadinho retraídas, mas quero pô-las ao vivo, sem qualquer pressão e sem qualquer medo. A Tilda Swinton é uma pessoa que sempre me inspirou muito nesse aspecto!

Oh meu deus, i love her!

I love her too! Ela é incrível. E essa parte da androginia que ela também tem muito presente, quis muito dar essa vida à persona, que, diariamente, não tenho muito essa coragem de assumir, mas, ao vivo, quero muito assumir essa personagem. Essa vulnerabilidade que sinto hoje em dia deu-me a liberdade de sair um bocadinho de mim e desafiar-me a elevar-me um bocadinho mais enquanto pessoa. É um bocadinho por aí. E a Tilda, pronto, foi a minha inspiração para isso. 

Já tens uma estética definida para a personagem?

Já, já. Ainda não arranjei um nome para ela, mas vou arranjar. Mas já tem tudo definido, sim.

Estou muito curioso para ver isso.

Também eu não sei também! [Risos]

Agora estou a pensar em momentos icónicos da Tilda Swinton!

[Risos] Opá, tantos, tantos!

Lembro-me do remake do Suspiria, do Luca Guadagnino, e na altura não me apercebi logo que ela fazia de várias personagens.

Sim, sim! Faz, exactamente! É exactamente isso. Elevares-te a um outro espectro da tua pessoa. Eu adoro isso. E ela é a rainha disto tudo. [Risos]



Durante a digressão, vais-te apresentar em formato trio, com o João Hasselberg e com o Pedro Melo Alves. Como é que vai ser o desafio de transpor as canções do alla para palco?

Olha, está a ser ainda! Está a ser mega intenso. Só para teres noção, nós na primeira semana de ensaio estivemos uma semana inteira, das 10 da manhã até às 8 da noite, a tentar fazer uma anatomia de cada música e tentar perceber quem é que toca o quê. Porque apesar de sermos três em palco agora, nós vamos ser um bocadinho polvos cada um. O Pedro vai tocar electrónicas e percussão e bateria, o Hassel[berg] vai tocar guitarra, baixo, contrabaixo, electrónicas, eu igualmente. Ou seja, estamos a tentar pôr este álbum o mais live possível, o mais banda possível, e o menos backing track e coisas lançadas, o que vai ser um bocado complicado. Mas eu sinto essa parte, sinto falta disso, de tocar live e ter aquela química de banda e dinâmica de banda, e quero que este álbum seja o mais orgânico possível ao vivo. Está a ser um processo ainda, vai correr bem, vai acontecer. Mas está a ser muito complexo, porque cada música tem fases específicas ou tem instrumentos específicos e estamos ainda a tentar desmistificar quem é que vai fazer o quê, mas acho que temos uma química inexplicável os três quando estamos juntos. São duas pessoas incríveis e dois músicos incríveis, que já os conheço há quase oito anos e já queria fazer isto há muito tempo com eles. Aliás, o Hassel foi meu professor de contrabaixo, o que é irónico [risos], mas temos mesmo uma relação de amizade muito bonita e acho que queria transpor isso para palco e queria dar às pessoas um bocadinho esse amor em palco que nós os três temos. Mas está a ser um processo muito bonito de fazer os três juntos.

Vão haver canções do Antwerpen actualizadas para esse formato ao vivo?

Vão. Vão existir entre três a quatro. Mas, lá está, vão ser um bocadinho mutadas mais para dentro desta temática do alla e também vai ser um desafio para os três tocar ao vivo. 

É uma conversão, de certa forma?

Sim, acho que é um bocadinho essa a palavra. Por exemplo, a “Maasai”, estou muito curiosa para ver o que é que ela vai ganhar ao vivo. A “Hemma” igualmente, e mais duas ainda, que ainda estamos a ver quais é que serão. Mas vão ser muitos diferentes ao vivo, sim.

Para além da digressão que se segue, que podemos esperar da Surma no futuro?

Não gosto de pensar nada nisso! Acho que é levar as coisas com calma, um dia de cada vez, e nunca gostei muito de pensar o que é vou estar a fazer daqui a cinco anos. Até daqui a um ano! Nem sei o que é que vai ser amanhã. Logo se vê. Eu acho que é ir com calma. Lá está, pensar demasiado nas coisas nunca dá bom resultado.

Para terminar: Leiria existe?

Eu acho que sim! Aliás, eu vim de lá hoje e está viva [risos]. Mas por acaso não sei de onde é que veio esse rumor.

Acho que foi do Reddit, mas não tenho a certeza.

É? Não me lembro de onde é que isso veio. Já foste lá [a Leiria]?

Já fui ao Bussaco, por isso tecnicamente

Ah, ok, então é ali arredores, mas tens de ir mesmo a Leiria. 

Um ganso já me comeu um rissol no Bussaco.

[Risos] Incrível. O Bussaco é muito lindo. Mas Leiria existe, malta, check, e está de boa saúde.


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