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Ilustração: Riça
Publicado a: 28/09/2021

A KPM (e não só...) tem vindo a expandir o seu catálogo graças aos contributos de uma série de criativos do presente, da dupla Smith & Mudd a Steve Moore, o homem dos Zombi que tem já sólida carreira como autor de bandas sonoras.

Oficina Radiofónica Extra: a library music também é som do presente

Ilustração: Riça
Publicado a: 28/09/2021

Não é difícil compreender o fascínio exercido pela library music: o facto dos formatos físicos não serem originalmente de ampla circulação – normalmente, os discos prensados em vinil, primeiro, e em CD, mais tarde, eram fornecidos mediante assinatura a potenciais interessados, tais como produtoras de cinema e publicidade, estações de rádio e TV, etc. – apelava a quem por alguma razão buscava rodelas raras de vinil (por exemplo, para samplar: um disco de prensagem limitada teria menos probabilidades de ser descoberto por quem eventualmente procurasse cobrar direitos associados); por outro lado, para os artistas, e por paradoxal que pareça, criar música com parâmetros muito específicos – trechos curtos para serem usados em publicidade, peças mais longas com carácter evocativo que pudessem funcionar como bandas sonoras em filmes ou documentários de vários géneros – poderia espicaçar a inventividade e ser um autêntico exercício de liberdade já que permitia não ter que ceder a expectativas de mercado ou a tendências dominantes. Passar a vida a gravar em estúdio, para muitos músicos, também teria vantagens que a tradicional vida na estrada não ofereceria. Nem todos poderiam ou quereriam ser estrelas. Esta indústria proporcionou, por isso mesmo, uma excelente plataforma a quem, em certos países onde esta actividade estava implementada (sobretudo os que possuíam fortes indústrias de produção televisiva e cinematográfica, como os Estados Unidos, Inglaterra, França, Itália ou Alemanha), tenha procurado fazer profissão da música sem ter que lidar com as pressões típicas das diferentes cenas musicais (o palco, a fama, etc). O baterista Brian Bennett, que produziu diversos títulos de culto para etiquetas como a KPM ou Themes e Bruton é um bom exemplo: integrou os Shadows, andou na estrada com Cliff Richard, mas depressa optou pela mais recatada vida nos estúdios londrinos.

Entre o hip hop, a electrónica e algum rock mais, digamos, laboratorial (Stereolab ou Broadcast serão referências óbvias nesse campo), muitos são os músicos que na última década receberam ampla influência dos terrenos da library music já que, felizmente, muitos desses catálogos acabaram por ser alvo de reedições de forma a satisfazerem a crescente procura pelas rodelas originais. Etiquetas como a KPM, Bruton, Themes, Conroy, Music De Wolfe, Bosworth e selos italianos de referência como a Cam, Carosello, Cometa Edizioni Musicali, Usignolo, etc foram alvo de alargadas campanhas de reedições em etiquetas como a Trunk, Finders Keepers, Four Flies, Cinedelic, Schema e outras. Mais do que natural, portanto, o aparecimento de projectos com nítida influência do vasto universo da library music: editoras modernas como a Ghost Box ou a Clay Pipe, por exemplo, na sua exploração das marcas hauntológicas do passado e na sua vertigem referencial de uma certa memória televisiva (já que muitos dos documentários, filmes e séries que ainda assombram os sonhos de uma certa geração eram, precisamente, ilustrados com música pescada em vários catálogos de library) acabam por produzir uma versão actualizada desse tipo de música. E bandas como os Heliocentrics, Vanishing Twin, Natural Yogurt Band, Group Modular, Public Service Broadcasting ou músicos como Matt Berry, Soul Supreme, Lorenzo Morresi, Jon Brooks, Luke Vibert e Sven Wunder, para dar apenas alguns exemplos, têm lançado nos últimos anos projectos altamente devedores da estética veiculada pela library music entre meados dos anos 60 e o início dos anos 80. E até entre nós há o caso de bandas como Beautify Junkyards ou projectos mais experimentais como Folclore Impressionista que incluem nas suas respectivas fórmulas saudáveis doses de inspiração retirada do universo da library music. E não se pode esquecer o clássico Música Exótica Para Filmes, Rádio e Televisão que os Cool Hipnoise lançaram no já distante ano 2000, provavelmente o primeiro trabalho em solo nacional a reclamar a influência directa da library music.

Natural, portanto, que etiquetas de “production music”, como também é por vezes referenciada a library music, começassem a abordar estes artistas no sentido de contribuírem para catálogos que continuam a expandir-se. E se é provável que haja, sobretudo nos campos do hip hop e da electrónica, muitos produtores de renome que nos últimos anos possam ter cedido material de arquivo não usado em edições para este tipo de catálogos de forma mais ou menos anónima, é também certo que outros entendam como factor de orgulho o seu contributo para o catálogo de etiquetas que aprenderam a admirar ao longo dos anos.

A editora Be With começou em 2014 a reeditar material licenciado a grandes catálogos, sobretudo clássicos de funk e soul de nomes como Leon Ware, Letta Mbulu, Andy Bey, Willie Hutch e tantos outros respondendo assim à crescente procura desse tipo de material no universo pós-Record Store Day. Em 2018, a Be With conseguiu garantir junto da histórica KPM uma licença que lhe permitiu relançar uma série de clássicos da famosa Série 1000 correspondente a música lançada entre 1966 e 1981, precisamente a golden age da library music: Voices in Harmony de Keith Mansfield e John Cameron (o único original à venda neste momento no Discogs está listado a 770 euros!), Distinctive Themes / Race to Achievement  de Nick Ingman (o original mais barato no Discogs está listado a mais de 100 euros), Hot Wax de autores reverenciados como Alan Hawkshaw, Brian Bennett e John Fiddy (originais a partir dos 75 euros), Big Business / Wind of Change de Mansfield, Hawkshaw e David Snell (há uma cópia disponível no Discogs por cerca de 230 euros), Piano Viberations do pianista de jazz belga Francis Coppieters (originais no Discogs começam nos 95 euros) e Synthesis da dupla Bennett-Hawkshaw (originais a partir dos 120 euros) completaram a primeira fornada focada no catálogo da KPM. 

Mas nessa mesma leva de reedições de material de library – datada de 16 de Novembro de 2018 – a Be With disponibilizou também quatro álbuns de outro cobiçado catálogo de production music, neste caso a Themes International: The Sound of Soul, com material de Alan Parker e Mike Moran (originais no Discogs começam nos 125 euros), The Voice of Soul da dupla Alan Parker-Madeline Bell (o mais barato original no Discogs está listado a 350 euros), Mystery Movie de James Clarke (originais a partir de 200 euros) e Synthesizer and Percussion uma vez mais da dupla Hawkshaw-Bennett (uma cópia em bom estado pode custar 350 euros). Ou seja, 10 álbuns que nas versões originais poderiam implicar, a preços correntes, um investimento de cerca de 2300 euros passaram a estar disponíveis por cerca de 250 euros. Percebe-se dessa forma a importância destas reedições que tornam bem mais acessível o que antes estava apenas ao alcance de carteiras fundas ou de diggers com muita sorte.



Igualmente interessante, no entanto, foi a edição por parte da Be With nessa mesma leva de finais de 2018 do álbum Full Circle de Alan Hawkshaw e Brian Bennett, uma vez mais. Ao contrário de todos os outros títulos mencionados, no entanto, e apesar do crédito pertencer a dois dos mais admirados nomes do universo da Library Music, não se trata da reedição de um clássico da série 1000 da KPM, antes de uma gravação contemporânea em que a dupla expõe toda a sua experiência. O disco inscrito no catálogo digital da KPM, mereceu também edição física na Be With, abrindo a porta a que outra matéria do catálogo moderno e digital do histórico selo merecesse igualmente prensagem em vinil.

Em 2019, a editora londrina prosseguiu na sua aventura de recatalogação de títulos clássicos da KPM colocando no mercado The Road Forward de Alan Hawkshaw (a única cópia do original de 1977 disponível no Discogs está listada a 100 euros), o mega-clássco Afro Rock da dupla Alan Parker/John Cameron (este disco já em 2007 tinha merecido reedição na Tummy Touch de Tim “Love” Lee, mas ainda assim o único original listado no Discogs continua a ter preço exigido de cerca de 740 euros), Jazzrock também de John Cameron (originais começam por volta dos 70 euros) e outro cobiçado título da Série 1000, Beat Incidental da dupla Hawkshaw/Mansfield (um original de 1969 pode custar por volta de 200 euros).

Em 2019, numa terceira ronda dedicada, sobretudo, à KPM e à Themes – e onde se incluíram reprensagens de Visual Impact de autores como John Scott ou Johnny Pearson (no Discogs, originais começam nos 100 euros), The Hunter (Drama Suite) / Adventure Story com créditos de Steve Gray ou Brian Bennett (originais a partir de 85 euros), The All American Powerhouse dos Alans Parker, Hawkshaw e Tew, entre outros (original mais barato no Discogs a 230 euros), Breath of Danger, com a maior parte dos créditos a pertencerem a David Lindup (há um original disponível no Discogs por 700 euros) e ainda The Now Generation (Percussive Underscores), disco da Library Coloursound da autoria de Peter Ludemann e Pit Troja (o original mais barato passa os 200 euros) e ainda Japan de Victor Cavini, originalmente lançado em 1983 na alemã Selected Sound (há originais disponíveis a partir de 60 euros) – surgiu o primeiro original contemporâneo a cargo de uma dupla de produtores que sempre reclamou influência da Library Music: Tea With Holger foi uma homenagem a Holger Czukay dos Can assinada pela dupla Smith & Mudd.

Na mais recente “fornada” de reedições, já com data de 2021, a Be With colocou no mercado mais uma série de importantes peças vindas dos catálogos da Themes, KPM e da italiana Carosello: Percussion Spectrum da dupla Barry Morgan/Ray Cooper (originais de 1979 a partir de 50 euros), Vivid Underscores e também Contempo, ambos de Keith Mansfield (originais a partir de, respectivamente, 23 euros e 80 euros), e ainda o “cromo” mais raro, o ultra-cobiçado Feelings da dupla Jay Richford e Gary Stevan, trabalho que já mereceu reedições anteriores atribuídas a Stefano Torossi  e que já se vendeu no Discogs por 5 mil euros (há um original neste momento disponível pela bem mais módica quantia de 3 mil e 800 euros).

É importante referir que estas reedições da KPM têm sido feitas a partir de masters originais, pelo que são obviamente de elevadíssima qualidade, com cortes de acetato assegurados por Simon Francis, renomado engenheiro com sério currículo.

Abaixo, uma visão sobre as entradas contemporâneas no catálogo da KPM (e não só…) dadas à estampa pela Be With desde 2020:



[Smith & Mudd] Tea With Holger (KPM – KPMS22)

Sobre este álbum, escreveu-se, aqui mesmo no Rimas e Batidas:

“Paul ‘Mudd’ Murphy criou a Claremont 56 em 2007 e a editora, que além de música de Smith & Mudd editou também discos de Sean P, Mark Seven, Lexx e outros artistas, tornou-se o último porto de abrigo para o lendário Holger Czukay, baixista dos Can e autor de uma reverenciada discografia a solo. Além de relançar o álbum A Good Morning Story, a Claremont 56 ainda reeditou material clássico avulso de Holger Czukay, enquadrando as suas visionárias produções numa série de maxis lançada entre 2009 e 2012.

Após terem sido desafiados pela KPM para criarem um álbum de library music com tons baleáricos, Ben Smith e Paul Murphy não hesitaram em torná-lo numa homenagem ao cúmplice Holger Czukay, falecido em 2017. Este álbum que a Be With se prepara para lançar em vinil deve o título, Tea With Holger, às infindas horas que a dupla passou com o músico alemão no estúdio Inner Space dos Can, muitas delas passadas a ouvir histórias e a beber chá de vários cantos do mundo. Desses encontros nasceu ainda o projecto Bison em que além de Smith, Mudd e Cuzkay participava também Ursa Major, a mulher do malogrado membro fundador dos Can.

‘Olhando para trás, foi incrível podermos passar parte das nossas vidas com o Holger num dos sítios mais mágicos que conhecemos, o Inner Space Studio. Temos as nossas memórias e, claro, o álbum de Bison que fizemos com ele. Mas para honrar o tempo que passámos ao seu lado, quisemos dedicar-lhe um álbum chamado Tea With Holger. Os títulos das faixas são uma homenagem a esse tempo’, escreve-se na apresentação do álbum na página oficial da Be With, citando a dupla.

Gravado ao longo de vários anos em Londres, Margate e Gorthleck, um lugar nas Highlands escocesas que, aliás, deu título ao mais recente álbum da dupla, este trabalho inclui participações de Mike Piggott, que tocou com a lenda Bert Jansch, nos arranjos de cordas e no violino, e de Sam Creer no violoncelo. Muita da música, explica o duo, resulta de improvisos, método que Czukay também usava com frequência. Smith & Mudd descrevem o álbum, à boa maneira library, como contendo ‘temas baleáricos, incluindo brisas soul, melodias cheias de sol, pianos quentes e cordas arrebatadoras’.”



[Sehawks] Island Visions (KPM – KPM 2127)

Seahawks é o projecto de Pete Fowler e Jon Tye, uma das cabeças da Lo Recordings, etiqueta que deu à estampa a série Nuggets, compilações focadas em Library Music. O duo, activo desde 2010 e bastante prolífico, assume a sua dívida à estética mais exploratória da Library Music num disco que nasceu de um convite da KPM, mas que, na sua sonoridade electrónica, mais parece ser uma pérola esquecida do catálogo dos anos 80 de uma etiqueta como a Bruton. Cadências baleáricas e fantasias “quarto mundistas” tocadas como se os Kraftwerk fossem de Honolulu em vez de Dusseldorf, usassem camisas havaianas e criassem odes a praias tropicais em vez de hinos para auto-estradas e caminhos de ferro.



[Ocean Moon] Crystal Harmonics (KPM – KPM 2188)

Outro projecto de Jon Tye,Crystal Harmonics é mais uma entrada no catálogo moderno da KPM. Mais electrónica, desta vez em modo mais “new agey” e planante, num disco que parece pensado para apoiar aulas de ioga ou para ilustrar documentários que explorem a beleza misteriosa das auroras boreais.



[Maston] Tulips (Phonoscope – FNOSCP – LP001)

[Maston] Darkland (Phonoscope – FNOSCP – LP002)

Frank Maston é um produtor de Los Angeles, fundador da etiqueta Phonoscope e um claro apaixonado por uma certa música europeia, a declinação mais “soft” de uma pop levemente psicadélica e orquestral que surgiu em bandas sonoras da segunda metade da década de 60 e, pois claro, alvo de incontáveis “tratados” em discos de Library Music, sobretudo francesa e italiana. Nas notas de (re)lançamento da Be With menciona-se aliás a forte inspiração recolhida em trabalhos de Ennio Morricone ou Piero Umiliani. De elegantes arranjos e com uma dimensão quase barroca a nível textural, Tulips foi uma auto-edição de Maston na sua Phonoscope em 2017 pensada e apresentada como se de uma peça perdida da era dourada da Library Music se tratasse, com grafismo à altura de tal pretensão e tudo. O disco extremamente limitado rapidamente se tornou cobiçada peça de colecção (já trocou de mãos no Discogs a 150 euros), mas a Be With em boa hora o reeditou. Darkland é, muito literalmente, mais do mesmo (elogio): material das mesmas sessões que ficou de fora do alinhamento de Tulips. Curiosamente, ambos os discos foram prensados a 45 rotações, mas são igualmente audíveis a 33, para efeito ainda mais lisérgico. Ambos poderiam também ter saído com carimbo da britânica Ghost Box, tal a sintonia estética derivada da sua ligação a uma memória inventada de uma era que não se viveu, mas que certamente se investigou a fundo no YouTube.



[Steve Moore] Analog Sensitivity (KPM – KPM 2164)

Steve Moore, músico que é metade dos Zombi e que há muito o ReB acompanha, falou-nos sobre este projecto para a KPM em entrevista publicada no passado mês de Fevereiro:

Trabalha bastante para cinema e esse tipo de trabalho deve algo à library music que editoras como a KPM andaram a lançar nos 70s e 80s. Diria que essa música o inspirou de alguma forma?

Absolutamente. Sou um grande de fã de library music antiga, tenho a certeza que ajudará a informar a minha música para filmes. A library music é muito importante para mim e para o Tony (Anthony A. Paterra), o meu baterista de Zombi, estamos sempre a partilhar coisas que encontramos. Antigamente, eu passava tempo, todos os dias, a procurar MP3s de antigos discos de library nos blogues. Tenho um disco rígido cheio disso.

Ter o seu nome inscrito num catálogo em que se está ao lado de pessoas como Alan Hawkshaw, Brian Bennett ou até David Vorhaus deve ser entusiasmante…

Bennett e Hawkshaw são os reis. Eu amava tentar trabalhar em algumas faixas mais cheias de acção como as coisas que eles costumavam fazer. O meu álbum na KPM é, no geral, mais gentil e misterioso. Mas sim, é uma grande honra fazer parte da família KPM.

Analog Sensitivity mereceu ainda atenção na coluna Oficina Radiofónica:

Não há um tempo para um disco como este Analog Sensitivity: as ferramentas usadas colocam-no algures numa era pré-MIDI (portanto pré-1985) e referencialmente estamos em terrenos explorados em etiquetas como a KPM e Bruton que entre finais da década de 70 e inícios dos anos 80 do século passado aproveitaram as possibilidades tecnológicas emergentes para lançarem no mercado discos com música que se prestava a genéricos de telejornais, a ilustrar documentários, para publicidade. Música funcional, algo discreta, mas profundamente eficaz a traduzir novas ideias: um novo mundo ligado electronicamente, indústria, ciência, laboratórios, comunicações. O espaço sideral!

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