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Ilustração: Riça
Publicado a: 13/04/2021

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #57: Vasco Completo / Sal Grosso / André Gonçalves

Ilustração: Riça
Publicado a: 13/04/2021

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Vasco Completo] Wormhole / Monster Jinx

Nos domínios da mais avançada física, um wormhole é um portal que liga diferentes pontos no espaço e/ou no tempo. Faz sentido que Vasco Completo recorra, para explicar ou descrever a sua arte, a um termo que traduz um conceito que ajuda a entender ideias propostas inicialmente por Einstein: é que a sua música também propõe a ligação de diferentes estados emocionais e intelectuais. Ou seja, a música do mais recente afiliado da Monster Jinx também quer pensar tanto quanto sentir, mostrar tanto quanto sugerir.

Vasco é um guitarrista com uma muito vasta colecção de referências. No seu press-release, os nomes de Burial e Jon Hopkins, Bonobo ou Croation Amor surgem como sugestões de mapeamento de um universo que é, no entanto, bem mais vasto, estendendo-se igualmente a nomes tão equidistantes quanto Pink Floyd ou Frank Ocean. De todos, o guitarrista e produtor recolhe detalhes e marcas, de gestão do espaço sonoro, de saturação do espectro harmónico, de cuidada gestão de texturas e arranjos, de assertividade melódica, de constante derrapagem orquestral bem para lá das margens conhecidas da canção pop. Detalhes cruciais quando o que se pretende é, sem recurso ao plano poético das palavras, ainda assim contar histórias ou, pelo menos, esboçar narrativas.

Nesse ponto, os seus títulos são sugestivos, funcionando cada como um pequeno portal para um mundo possível: “Forever”, “Lullaby for the Inebriate”, “35mm”, “Trauma”, “Wormhole”, “Déjà-Vu (Interlude)” e “Purple Garden”, como títulos em pinturas mais ou menos abstractas, traduzem directrizes que ajudam a guiar o nosso pensamento, surgindo como descodificadores da filigrana emocional e/ou intelectual em que o autor se embrenhou com cada tema.

Tome-se, por exemplo, a peça-chave que dá título ao álbum: no arranque, o propulsor tema rítmico imposto pela cadência de bombos, antes da entrada de outros elementos percussivos, sugere urgência, com as difusas vozes sampladas a parecerem que caem ali vindas de uma outra dimensão. Depois, a altamente processada guitarra parece ser o som da própria passagem para outro ponto, com a percussão em reverse a sugerir, talvez, um regresso no tempo. Os sintetizadores são depois a ilustração de um outro mundo ou de um outro tempo, um “lado de lá” que se imagina feito de céus límpidos e luminosos. Mas os quase 11 minutos do tema indicam que esta é uma “longa-metragem”, não uma história breve, uma narrativa que se faz de diferentes etapas, desenrolando um arranjo que nunca é repetitivo ou linear, feito de camadas de poeira cósmica, com um sound design preciso, com o intuito de nos transportar numa agitada viagem emocional.

O tema “35mm” é aqui exposto como uma medalha com verso e reverso: à versão original, instrumental, com perfil docemente melancólico traçado a notas esparsas de piano, corresponde, do lado de lá do tal portal que nos conduz a dimensões alternativas, uma versão (aqui colocada como som bónus no final do alinhamento) em que João Tamura e J-K encadeiam versos, dando corpo narrativo e poético ao “texto” invisivelmente traçado por Vasco, o que nos diz muito das possibilidades que a sua música apresenta nesse plano, revelando-se como terreno fértil para amparar rimas e vozes de diferentes cadências e vocações.

A música de Vasco Completo é, pois, assim: múltipla e complexa, detalhada e delicada, uma rede de sons que se entrelaçam e que dependem um dos outros, como numa qualquer estrutura orgânica, com a guitarra a ser um guia de vincadas virtudes melódicas, uma fonte de expansivas ideias que nunca se quedam por estruturas circulares, antes se desenvolvem em espirais que quase soam infinitas. Headphone music na mais pura acepção da expressão, música que favorece um contacto próximo e que pede olhos resolutamente cerrados para que a imaginação dê pleno corpo aos pulsares e aos ricos tecidos harmónicos, às melódicas guias e às vozes sampladas que entram e saem do espectro sonoro inteligível. Ou não: música que pode igualmente pedir, com o detalhe que bons auscultadores poderão justamente proporcionar, olhos bem abertos para se apreciarem vastas paisagens em localizações geográficas que não sejam familiares a quem as contempla – infinitos desertos feitos de luz, fiordes e vales verdejantes, calotes polares ou exuberantes selvas tropicais, planícies de sal ou de poeira, intimidantes fossas abissais e convidativos reefs tropicais de corais multicoloridos, o que seja, até onde os olhos alcancem. Com este portal musical, podemos, na verdade, ir até qualquer lugar.



[Sal Grosso] Love is Fine / combustão lenta records

A dedicatória é tão importante quanto reveladora: “este disco é dedicado ao Mark Hollis”. Repare-se no precioso detalhe: “ao” e não “a”. Um preciosismo semântico que traduz intimidade, familiaridade, real sentimento de perda.

Mais detalhes, resgatados às notas de lançamento: “Foi pensado durante muito tempo e concretizado em quatro dias de Abril no Quarto Escuro, no Porto. Tudo ao primeiro take, gravado com muito amor e um grupo inacreditável de pessoas. Era para ser ambient, mas acabou por ser livre. O nome é roubado à ‘Come Mellow, Love is Fine’, uma malha linda do twistedfreak”.

Esta vénia ao desaparecido génio que liderou os Talk Talk e que fez dos seus abismos emocionais algumas das mais belas e expressivas pinturas pop, foi composta e produzida por Sal Grosso, “entidade” que aqui assume, ao nível da execução, electrónicas, percussões e harmónica, com Ricardo Cabral (bateria, percussões, baixo, flauta e microfones) e José Miguel Silva (teclados, bateria, percussões e guitarra) a serem igualmente convocados e não apenas no plano musical, já que asseguraram igualmente a captação, mistura e masterização do projecto.

O resultado é uma viagem de pouco mais de 45 minutos, em quatro etapas, que explora um lado mais ambiental e emocional da música, com longas passagens em suspensão harmónica pontuadas por fragmentos dispersos de elementos percussivos, como quem vagueia, de facto, por um quarto escuro onde estejam dispostos alguns espanta-espíritos de madeira ou bambu que se agitam sonoramente quando, ao tatearmos para tentarmos perceber onde estamos, possamos levemente tocar-lhes.

Os drones são aqui fundos e abissais (em “Faúlha”, por exemplo), feitos de espessa massa harmónica, um viscoso líquido electrónico que escorre, tranquilo, para dentro da nossa imaginação, envolvendo-nos numa imersiva viagem de beleza extrema que convida a um deep listening sem outras distrações que não sejam as que a nossa própria imaginação possa sugerir.



[André Gonçalves] Sheer & Swerve / Ed. de autor

Seis peças que se quedam a alguns segundos de uma hora de duração, abstractas até na sua titulação simples, numeral e sequencial, que mostram o cérebro da ADDAC System a usar algumas das suas criações para, como sugere o moto da própria marca, “expressão sónica”.

André Gonçalves explica-nos nas espartanas notas de lançamento que este álbum foi gravado e editado “algures” em 2019 e masterizado em Março último com o intuito de ser apresentado no âmbito do programa Sonic Sound Synthesis do “canal” digital The Neon Hospice que tem sido “habitado” por outros ilustres navegantes dos vastos espaços sónicos electrónicos como Kemper Norton ou Ekopleekz.

Aqui, o compositor, designer de módulos e músico português apresenta uma ultra abstracta viagem a bordo da sua nave modular, feita de drones, bleeps, bloops, pulsares, ruído cósmico, nevoeiro conjurado por entre circuitos e voltagens, que nos remete para um mundo de paralelas dimensões, estranho, mas ainda assim convidativo, sem grandes pontos de referência (não há âncoras rítmicas ou codas melódicas definidas), mas (como acontece por exemplo em “III”) podendo ainda assim soar familiar na sua envolvência ambiental, com a massagem analógica dos ouvidos a resultar num eficaz e escapista bálsamo que nos eleva a um outro plano, longe das armadilhas mundanas, todo ele feito de luz que ofusca e limpa.

Música perfeita para meditação, para recarregar baterias ou para induzir o sono profundo (e isto é um elogio).

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