pub

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 17/05/2022

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #96: Albert Ayler

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 17/05/2022

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Albert Ayler] Revelations / INA-Elemental Music

O que inicialmente foi amplamente saudado como uma iniciativa de indiscutível carácter nobre, rapidamente se tornou um turbilhão de intenções comerciais mais ou menos vorazes. De certa forma, essa é a dinâmica habitual do capitalismo: quando os primeiros espaços “alternativos” abrem em bairros negligenciados, toda a gente aplaude porque é difícil, no meio da “poeira” das obras de requalificação, ver o rolo compressor da gentrificação a aproximar-se ao longe. Foi exactamente assim com o Record Store Day (RSD), evento que nasceu em 2007, momentos antes do colapso económico que teve impacto devastador no ecossistema das lojas de discos, com o intuito de voltar a levar pessoas aos espaços onde a música sempre foi celebrada. Nesses primeiros anos, eram sobretudos artistas e editoras independentes a retribuírem a esse circuito o apoio recebido durante décadas através da criação de edições especiais que efectivamente levavam clientes – e muitas vezes novos clientes – até esses espaços. Claro que o RSD não tardou a desvirtuar o seu propósito inicial, com circuitos de distribuição com maior poder – grandes cadeias de lojas que muitas vezes nem sequer tinham na música o seu negócio exclusivo – a apressarem-se a capitalizar no revival do vinil enquanto a imprensa mais distraída ia alimentando o “monstro” com inúmeros artigos sobre o “renascimento” de um suporte que, na verdade, nunca tinha chegado a morrer. E dessa forma — e para concluir o raciocínio –, nos últimos anos o RSD tornou-se aquele lugar onde edições coloridas de Barbra Streisand e Dire Straits vão morrer.

Este ano, porém, e como tivemos o cuidado de apontar aqui através da sempre arguta “caneta” de Pedro João Santos, o RSD, entre as várias centenas de títulos com que procura assaltar carteiras globais, acertou algumas vezes no alvo, confirmando o velho adágio que sabiamente indica que até um relógio parado está certo duas vezes ao dia. Revelations, caixa que reúne as gravações integrais dos concertos que Albert Ayler assinou na Fondation Maeght, em Saint-Paul-de-Vence, em França, em finais de Julho de 1970, alguns meses antes da sua misteriosa morte, compensam largamente todos os anos de desnorte do RSD e confirmam que, por vezes, ainda vale a pena espreitar as longas listas de lançamentos porque pérolas como esta podem surgir inesperadamente.

Em 2002, há precisamente 20 anos, portanto, adquiri as reedições da Water dos dois volumes que a Shandar lançou originalmente 30 anos antes: Nuits de La Fondation Maeght foi um título aplicado a gravações não apenas de Albert Ayler, mas também de Sun Ra (outros dois magníficos volumes) e Cecil Taylor (há três volumes, neste caso), mas só os discos do saxofonista é que mereceram essa reprensagem na Water. E essas já foram, claro, uma verdadeira revelação que me levaria, um par de anos mais tarde, até à magnífica caixa Holy Ghost lançada pela Revenant de John Fahey.

Meio século depois da edição original na Shandar, eis que o material que Albert Ayler gravou naquelas que seriam praticamente as suas últimas apresentações ao vivo – ainda existe documentado um concerto em Springfield, no Massachusetts, antes do desaparecimento do músico em Novembro de 1970 – vê finalmente a luz do dia na sua forma integral. Os dois volumes dados à estampa na Shandar resultavam de uma selecção do escritor e artista Daniel Caux, curador destas noites musicais na Fundação Maeght, que deixou de fora dos álbuns lançados em 1972 metade do material registado nas noites de 25 e 27 de Julho de 1970. Zev Feldman, produtor e investigador muitas vezes referenciado como um verdadeiro “jazz detective” (é ainda o responsável por outra das importantes edições deste ano do RSD: Mingus – The Lost Album From Ronnie Scott’s), explica nas profusas notas – que rendem um precioso booklet de 16 páginas na limitadíssima edição em vinil (só se prensaram 1200 exemplares, individualmente numerados) ou de 100 páginas na edição em CD – que descobriu estas gravações feitas pela rádio ORTF (ou seja, uma gravação diferente e de qualidade superior da que já se conhecia) em 2015 quando inventariava material existente nos arquivos do Instituto Nacional de Audiovisual (INA) de França: “Foi verdadeiramente revelador quando percebi que havia duas horas de material inédito e que eram misturas estéreo. Agora, e pela primeira vez, poderíamos apresentar estes concertos históricos na exacta forma como aconteceram, do início ao fim. Comparo isso à experiência de encontrar uma obra-prima”, garante Feldman.

Jeffery Lederer, saxofonista e co-produtor desta edição juntamente com o investigador Zev Feldman, sublinha também nas notas que acompanham o lançamento que “estas gravações eram certamente já excepcionais de várias perspectivas”: “Representam as penúltimas actuações de Albert Ayler e do seu grupo (houve mais uma apresentação em Springfield, Massachusetts, antes da morte prematura de Ayler em Novembro desse ano, com um grupo que incluía o violinista Leroy Jenkins); representam Ayler expandindo as canções que ele co-criou com a sua parceira criativa e de vida Mary Maria Parks para as edições finais na Impulse, mas expandindo-as com a visão improvisada e mais dilatada das suas anteriores gravações para a ESP; e representam as gravações substanciais finais de um gigante musical, apenas três meses antes de um final trágico para a sua vida”. Ou seja, nada mais, nada menos do que um tesouro.

A primeira evidência, quando se mergulha sem reservas na música reunida nestas 5 rodelas de vinil (ou 4 Cds…), é a da profunda espiritualidade que emana do som – do tom! – do saxofone tenor de Albert Ayler. A resposta entusiástica do público, aliás, reforça essa ideia: é o êxtase que comanda as emoções colectivas. Allen Blairman, o baterista nesta sessão que infelizmente faleceu no passado dia 22 de Abril, na véspera deste lançamento, recorda na entrevista que concedeu para o booklet de Revelations essa dimensão sobre-humana da experiência que Ayler conduziu na Fundação Maeght: “Ele tocou-me espiritualmente, e você não pode pôr isso em palavras… É como Coltrane com Elvin. Sim. Se perguntasse ao Elvin sobre Coltrane, ele diria, ‘É como se eu tivesse sido tocado por um anjo’. Era como se eu estivesse na presença de um anjo’. E foi isso que eu senti com Albert, pelo que ele estava a fazer e por aquilo para que ele abriu a minha mente”.

Steve Tintweiss, o contrabaixista nestes concertos, também foi escutado para estas notas e revela um dado tão curioso quanto importante para a compreensão da música aqui reunida: “Albert chamou-nos para [ir] lá fora para termos uma pequena reunião rápida antes de começarmos….Não havia partitura. Eu não tinha ensaiado nada. Ele apenas me disse, ‘Você começa com o baixo e eu entro, e nós tratamos disso a partir daí’. Era só isso”. Simples.

Além de Blairman e Tintweiss, estas gravações incluem ainda (apenas na segunda noite devido a entraves na alfândega que atrasaram a sua chegada) o pianista Call Cobbs que teve aqui igualmente uma das suas últimas prestações documentadas – o músico que tocou frequentemente com Ayler entre 1964 e 1970 (sobretudo piano e cravo) foi vítima de atropelamento e fuga em Nova Iorque a 21 de Setembro de 1971. O seu pianismo de pendor mais discreto e tradicionalista faz a ponte com as mais fundas referências de Ayler, os blues e as marchas militares, oferecendo um reverso para uma medalha que brilha com libertária luz.



A outra figura presente no palco da Fundação é a de Mary Maria, sobre quem Ben Young, uma das maiores autoridades mundiais na vida e obra de Ayler, escreve no booklet de Revelations: “Maria Maria, como era profissionalmente conhecida, era a confidente de Ayler e colaboradora de gravações de Ayler quando ele começou a explorar novos territórios. Quer fosse uma espécie de figura Dido, Medeia ou (para analistas contemporâneos) Yoko Ono, ela foi a presença mais importante nos últimos três anos de vida de Albert. Ela foi a sua companheira dentro e fora da música, por vezes produtora de concertos, sua agente e gestora e, eventualmente, co-estrela. Eles casaram-se em 1969”. Mary Maria, que habitualmente emprestava a sua voz à música que Ayler tocava, como se escuta por exemplo no profundíssimo “Music is the Healing Force of the Universe”, também se faz ouvir num seguro saxofone soprano, que, por exemplo, se faz sentir em “Masonic Inborn”, logo na primeira noite, um inesperado contraponto para o bem mais expansivo e expressivo tenor do seu companheiro, mas ainda assim uma válida contribuição, tal como o seu trabalho de voz, alvo de uma certa desvalorização ao longo dos anos, facto que não deixa de reflectir uma perspectiva crítica dominada essencialmente por homens.

Albert Ayler era um nativo de Cleveland, Ohio, que primeiramente aprendeu saxofone alto com o seu pai, Edward Ayler, um músico semi-profissional que apresentou o seu filho ao circuito devocional das igrejas baptistas, experiência que o marcaria profundamente. Mas a música secular foi igualmente importante para o saxofonista que ainda adolescente deu por si a tocar profissionalmente com o truculento Little Walter, cantor de blues e celebrado tocador de harmónica que gravou para o selo de Leonard Chess. Seguiu-se o exército, altura em que Ayler mudou para o tenor, experiência que lhe deu a oportunidade de tocar com músicos como o saxofonista Stanley Turrentine e até o futuro compositor Harold Budd, que tocava bateria na mesma banda militar. Quando deixou de trabalhar para o Tio Sam, Ayler estabeleceu-se em Nova Iorque tocando com gente como Cecil Taylor e aproximando-se gradualmente da Fire Music que então iluminava os espíritos mais modernos e aventureiros. My Name is Albert Ayler marcou a sua estreia como líder em 1963 e, no ano seguinte, o saxofonista teve o seu mais prolífico período tendo gravado e lançado trabalhos como Spirits, Spiritual Unity ou Ghosts. A segunda metade da década de 60 do século passado ficou marcada pela sua entrada na Impulse, etiqueta em que, certamente sob pressão, Ayler procurou aproximar o seu som de uma versão mais palatável, com tangentes ao R&B, facto bem exposto em títulos como Love Cry, New Grass ou Music is the Healing Force of the Universe, lançados entre 1967 e 1969. As críticas então recebidas por tal “cedência” e os problemas de saúde mental do seu irmão Donald Ayler fizeram desta recta final da década um período muito difícil para Albert Ayler que recebeu de bom grado o convite de Daniel Caux para tocar nos jardins da Fundação Maeght, sob uma cúpula geodésica construída especialmente para receber este tipo de eventos, e entre obras escultóricas de vultos da modernidade, como Alberto Giacometti.

Esse, vá lá, novo fôlego, impulsionado certamente pela bem documentada hospitalidade europeia, pela beleza do local e pela recepção do público e dos media locais, sente-se perfeitamente no vigor com que Albert Ayler se apresentou em cada uma das noites. Nas edições curadas por Caux, muitas das prestações de Mary Maria ficaram de fora, tendo o francês escolhido material mais abrasivo, talvez para evidenciar o carácter vanguardista da sua programação e da própria instituição para que trabalhava. Mas as duas horas de material inédito deixam claro que Ayler seguiu em diferentes direcções ao longo daquelas duas noites, combinando música do seu período mais exploratório com matéria mais “contida”. Há igualmente uma série de improvisos, apropriadamente titulados “Revelations” (e são 6 ao todo) que são um vívido documento das capacidades do saxofonista, verdadeiramente capaz de deixar tudo no palco e de guiar quem o ladeava até ao mesmo ponto de estratosférica liberdade.

E na abordagem fresca a material de toda a sua carreira – além de “Music is the Healing Force of the Universe”, que abre o primeiro set e encerra o segundo, escutam-se peças de Spirits, Spiritual Unity, Spirits Rejoice, da primeira fase da sua carreira, mas também dos registos mais tardios gravados para a Impulse – sente-se um Albert Ayler em topo de forma, de plena posse de todos os seus poderes musicais, em perfeita sintonia com uma audiência vibrante que devolve em energia tudo o que recebe em abundante matéria sónica. Algures entre o puro júbilo devocional e religioso que era algo muito real em Albert Ayler e uma mais orgânica e tradicional visão herdada das marching bands de Nova Orleães e das velhas formas de blues, nascia a torrente a que ele mesmo gostava de chamar “free spiritual music” e que aqui se escuta em toda a sua maravilhosa glória. E isso dá-nos um vislumbre de um futuro que não chegou a acontecer para Ayler, uma ideia da direcção em que o seu som poderia ter seguido na década que então começava. O seu corpo foi encontrado a flutuar no East River, em Nova Iorque, semanas depois de ter sido visto pela última vez, a 25 de Novembro. Um final inglório para Albert Ayler que poderia certamente ter ocupado o espaço deixado vazio por John Coltrane. Num dos depoimentos recolhidos para o booklet que acompanha Revelations, o colosso Sonny Rollins diz tudo: “Ele era como um relâmpago e depois desapareceu…. Tenho a certeza que ele tinha uma grande visão sobre como fazer a música evoluir, e ele tinha dentro a energia e o esclarecimento que tornaria isso possível”

Este álbum está disponível na Jazz Messengers, em Lisboa.

pub

Últimos da categoria: Notas Azuis

RBTV

Últimos artigos