pub

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 24/11/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #71: Especial International Anthem

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 24/11/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos. Antes que o ano se esgote, edição especial para dar conta dos últimos lançamentos no catálogo da International Anthem: cinco discos que, não por acaso, possuem todos clara dimensão política.



[Jaimie Branch] FLY or DIE LIVE

Quando, ao apresentar ao microfone o tema “prayer for amerikkka pt. 1 & 2”, durante um concerto gravado em Janeiro de 2020 (lembram-se?…) no clube Moods, em Zurique, Jaimie Branch esclarece que “não é apenas um tema sobre a América porque há muitos outros lugares onde as coisas estão f*didas. E este não é o tempo para se ser neutro, percebem o que quero dizer?”, a trompetista não está apenas a expor toda a carga política do seu discurso, mas também a espetar uma farpa bem no coração da Suíça. E entrar assim a pés juntos num país que a acolheu para tal ocasião não é apenas sinal de coragem, é também uma clara demonstração de integridade. E isso, a música de Jaimie possui de sobra. Bem como verve. Alma. Panache.

Acompanhada por Lester St. Louis no violoncelo (e ainda vozes e pequeno címbalo), Jason Ajemian no baixo (e ainda vozes e egg shakers) e Chad Taylor na bateria (e, uma vez mais, vozes e também mbira), Branch viaja aqui pelos dois capítulos da sua aventura Fly or Die, mantendo a intensidade no nível máximo, a única forma que parece conhecer de estar em palco.

O concerto arranca com o que soa a uma evocação do quarto-mundismo de Jon Hassell, só que em vez da exótica digital passível de se extrair dos transístores do Yamaha DX7, é com uma mbira (por cá também chamamos a este “thumb piano” kalimba) que Taylor oferece a planante base ao delicado e poético trompete de Branch. A calma, antes da tempestade. Os 15 minutos seguintes servem então para esse pungente retrato da América (e mais além…) contemporânea, com Jaimie a expor as suas entranhas, mergulhada no grande lago dos blues, toda ela alma e sangue. As exclamações que o seu microfone capta vindas da audiência, ainda que submersas no som áspero e rugoso do seu trompete, dão bem conta de como esta música tem o poder de nos atingir como um verdadeiro murro no estômago. E nem é necessário esperar pelos momentos em que ela vocifera ao microfone, o seu trompete basta para nos agitar.

Claro que a banda, que soa densa como lava e tão incandescente quanto, é parte do segredo de toda esta intensidade, com Chad Taylor a destacar-se muito naturalmente como o verdadeiro mestre do tempo que é. Podemos estar próximos do Inverno e as temperaturas podem já ser condizentes com lareiras acesas e casacos mais pesados, mas é impossível não sentir a elevada temperatura que certamente se atingiu naquela provavelmente ainda mais fria noite de Janeiro em Zurique, quando Jaimie e os seus companheiros de Fly or Die soltaram os “nuevos róqueros estéreo” que têm dentro deles. Poderoso.



[Angel Bat Dawid] Hush Harbor Mixtape Vol. 1

Na capa (a edição física, entretanto já esgotada, é em cassete, com capa longa) uma ilustração de Escrava Anastacia, uma santa popular reverenciada no Brasil, mas, obviamente, não reconhecida pelas igrejas convencionais. O título, “hush arbor”, referencia os lugares secretos onde, no sul dos Estados Unidos, os escravos se podiam reunir para praticarem os seus rituais religiosos, garantindo a sobrevivência de parte da sua identidade). Este trabalho é, obviamente, um manifesto.

Angel Bat Dawid é uma artista de integridade sólida, uma miitante que encara a sua música como uma forma de resistência, de afirmação, de comentário sobre o mundo que a rodeia. Este lançamento foi realizado em Junho passado, quando a América negra assinala o Juneteenth, ou 19 de Junho (“june nineteenth”), como uma forma de lembrar também que a luta pela emancipação continua longe de terminar.

Aqui, Dawid, em modo solitário, assegurando ela mesmo as bases instrumentais com pequenas percussões, sintetizadores, samples e demais recursos, bem como as partes vocais e, pois claro, o clarinete (além da gravação e mistura do projecto final), explora o longo legado de espirituais e blues para expor uma tocante meditação sobre a negritude, a luta contra a servidão, pela dignidade e a afirmação da liberdade e da beleza da cultura negra. Nas encantatórias e fundas melodias do seu clarinete, mas também da voz quando manipulada por vocoder, adivinham-se exploratórios ecos da África subsaariana, servindo os blues como a ponte que liga o sul dos Estados Unidos ao continente negro, sobretudo aos países de cultura muçulmana. E há também espaço para a partir dos lamentos de trabalho, Angel desenhar uma intrincada tapeçaria harmónica sobre a qual expõe o seu distinto pensamento no clarinete. Trabalho tocante e intemporal, ainda que motivado por um momento tão específico como o Juneteenth.



[Dos Santos] City of Mirrors

Percebe-se melhor a declaração conceptual que sustenta City Of Mirrors – e que começa com “este álbum é uma montagem… / … vislumbres de tradição / …reflexões sobre o nosso presente colectivo / …ecos luminosos entre amor e solidão. / esperança e absurdo. / euforia e lamento.” – quando se descobre que o líder dos Dos Santos, Alex Chávez (vozes, teclados, guitarras), é um académico etnógrafo e professor assistente de antropologia em Notre Dame com trabalho publicado sobre práticas musicais das montanhas de uma zona particular do México. E a música é, afinal, bagagem que pesa pouco quando carregada na memória daqueles que procuram superar muros e fronteiras.

Este City of Mirrors, apesar do charmoso balanço latino que o percorre, não deve ser por isso ser encarado de ânimo leve, como “mera” música de baile (embora dançar possa ser um acto de resistência), mas antes como uma expressão de ancestral identidade e, por isso também, uma forma de fazer política.

Com produção de Elliot Bergman (músico que também assegura saxofone nesta gravação e que tem no seu currículo passagens por bandas como His Name Is Alive ou Wild Belle) e contando com músicos de ampla experiência como Martín Perna (Antibalas), este é um álbum feito de profunda sofisticação e de tangentes a um pulsar psicadélico, sempre com a elevação da canção como objectivo primeiro. Escute-se “Palo Alto”: tudo certo, entre a cadência dolente, a mistura, o arranjo, as vozes envoltas em reverb no coro que pontua a linha vocal principal e que soam como o clamor vindo de uma capoeira lá no campo. E não se deixem enganar: quando começarem a dançar ao som da cumbia imparável de “Cages and Palaces” tomem um momento para ponderar no título, mesmo que se deixem levar pelo flutuante Farfisa que carrega a melodia. “A fronteira”, dizem ainda Dos Santos, “divide e define espaços, sim. Mas é igualmente um espaço em si mesmo – uma terra de fronteira. E é nesse lugar proibido que vagueamos”. Mais claro seria impossível.



[Irreversible Entanglements] Open The Gates

É com uma urgente batida a cargo de Tcheser Holmes que abre este poderosíssimo Open The Gates. E antes da entrada em cena da ultra-carismática voz de Camae Ayewa, aka Moor Mother, para exigir a abertura dos portões que travam a evolução, a linha de baixo de Luke Stewart, claramente reminiscente de “Theme de Yoyo” dos Art Ensemble of Chicago, sublinha a ligação desta música a uma longa tradição do jazz como expressão comunal de resistência.

Este é já o terceiro álbum do colectivo que além de Ayewa, Holmes e Stewart conta ainda com os préstimos de Aquiles Navarro no trompete e sintetizador e Keir Neuringer em saxofone, sintetizador e percussão. Sucede aos fantásticos Irreversible Entanglements (2017) e Who Sent You? (2020), ambos lançados igualmente com carimbo International Anthem. E embora a continuidade seja clara, há a sensação de que neste Open The Gates se vai ainda mais longe na missão de criar arte que agita, move, transforma.

É a voz da artista, poeta, pedagoga e activista que o mundo também conhece como Moor Mother que oferece o principal lastro a este projecto, algo que aliás acontece em todos os contextos em que vai deixando prolífica presença, do noise rock de Moor Jewelry aos desvios por terrenos hip hop que tem feito ao lado de rappers como Billy Woods ou Pink Siifu. As suas palavras são obviamente aguçadas, significantes e ressoantes, feitas de poética, mas dura verdade, palavras que ferem porque são justas, mas é a sua voz, grave, séria, que não esconde cicatrizes emocionais, que as torna ainda mais acutilantes, soando tanto como instrumento quanto os sopros de Aquiles e Keir, aqui em intenso de feérico registo livre, sempre a impulsionarem a música para a frente, ainda que, como se começou por explicar, soem igualmente como prolongamentos dos ensinamentos de outros colectivos que procuraram no fogo do som o caminho da mais pura liberdade.

O som geral deste novo álbum é o de não compromisso: há espaço para groove que sublinha a condição imersiva e hipnótica deste som (como na já mencionada faixa de abertura), mas há sobretudo vastas oportunidades para implodir fronteiras, cruzando o espaço (aural e literal) que separa o noise do dub, como na espantosa e ultra extensa “Water Meditation”, peça que se alarga por duas dezenas de minutos, que começa como uma meditação conduzida por Navarro, e que depois leva Camae a dizer “water me, water me / If you know a woman / then you know a thing under the water”. Tão intenso que chega a ser arrepiante. “The water teaches”, garante a Mother, num prelúdio poético que leva a banda a embarcar depois numa viagem até território não cartografado, com o contrabaixo de Stewart a debater-se com os disparos de um sintetizador que vai ganhando relevância dentro do espectro sonoro até envolver o tema numa densa névoa de frequências electrónicas que nos encapsula dentro de um universo ruidoso e sombrio. Quando o espaço se abre para a entrada dos sopros, parece ser à própria luta pela sobrevivência que estamos a assistir, com o botão da intensidade de entrega colectiva rodado até ao máximo.

Quando se chega ao final da viagem, com “The Port Remembers”, há uma sensação de travessia, a noção de que os portões se abriram de facto, permitindo a chegada a um mundo novo, real e musical, um lugar onde o som é livre para se espraiar e as palavras não conhecem mordaças. “I remember a nightmare”, confessa Camae, enquanto vai falando de “ritual fire” e de “Congo caves” numa peça tão concreta quanto abstracta, Quando os mais de 70 minutos se cumprem, é difícil ter a pulsação numa média regular, é difícil não nos sentirmos ofegantes. Esta é música que prende e exige antes de libertar e oferecer. Aceitá-la é cumpri-la, portanto.



[Ben LaMar Gay] Open Arms To Open Us

A palavra a Ben LaMar Gay que, melhor do que ninguém, nos explica sobre o que versa o seu novo e incrível trabalho, Open Arms To Open Us: “Crescendo, passando verões no Alabama, uma das minhas tarefas favoritas era alimentar os porcos que estavam nas terras da minha tia-avó Lola. Por vezes, no caminho para as terras de alimentação, a tia Lola e eu ficávamos parados e ouvíamos juntos. Tomávamos imediatamente consciência de ventos que se aproximavam através de pinheiros ondulantes, canções de codorniz e a tagarelice de primos distantes mesmo ao cimo da estrada”.

E as memórias prosseguem, desenrolando o novelo do significado desta nova obra: “Uma vez ela disse-me que durante uma certa altura do dia ela podia ouvir o seu pai a martelar no campo perto da velha casa onde ela cresceu. Embora o seu pai tivesse falecido há muito tempo, ela conseguia ouvir claramente o ritmo e sentir a sua presença”.

Memória, ritmo, identidade, felicidade, liberdade. É o que se depreende destes retratos que LaMar Gay apresenta no sucessor de Downtown Castles Can Never Block The Sun, a compilação de material disperso que deu à estampa na International Anthem em 2018. Para este novo capítulo da sua pessoalíssima história, Ben LaMar Gay, que é um artista altamente individual, mas igualmente um espantoso agregador de energias, ou não tivesse ele sido parte da histórica Association for the Advancement of Creative Musicians, reuniu um vasto elenco: Angel Bat Dawid traz as suas “lembranças de Louisville”, Tomeka Reid contribui com “violoncelo, voz” e ainda, e assim mesmo em português, “luz”, mas também Tommaso Moretti (bateria, xilofone, percussões e coisas), Matthew Davies (tuba e trombone), Johana Brock (violino, viola e, desta vez em ingl~es, “light”), Rob Frye (flauta, percussão e, entre outras coisas, ouvidos), Adam Zanolini (sax soprano, oboé e “swang”, assim mesmo com “a”…) ou, entre vários outros colaboradores pontuais, sobretudo em vozes, Ayanna (voz, baixo eléctrico e, uma vez mais, luminosidade).

Além da sua corneta, órgão, balafon sintetizadores e “templo”, Gay contribui com a sua voz que, curiosamente, aqui adopta um registo que em certos momentos nos relembra Bill Callahan, uma tranquila forma de dizer que soa tão desligada quanto emocionalmente empenhada. E isso atravessa música que parece apostada em, mantendo-se sempre centrada no ritmo, tocar nas margens do hip hop, acercar-se de alguma harmonia rica brasileira, não temer modos mais pop, viajar livremente pelo mundo como se lhe aprouver e ignorar regras quando tem que ser. O seu instrumento e os seus solos soam sempre contidos, revelando o suficiente em termos técnicos para que se perceba que poderia voar até às estrelas se lhe apetecesse (como se pressente, de forma muito subtil e breve, no final da curta “I Once Carried a Blossom”), mas que manter-se de pés bem firmes na terra é a sua opção neste momento. E por isso, Lamar Gay esclarece que, aqui, “a música é para dançar, reflectir, celebrar, gritar, berrar, estimular, focar e decifrar mensagens de entes queridos, aqui e além”. “Foi o espaço entre o som do martelo do meu bisavô que me fez compreender que, aconteça o que acontecer, Nós vamos ganhar”, conclui. Ou seja, esta é também música de fé e de esperança. Música de crença absoluta no futuro. A que mais interessa, na verdade.

Os discos da International Anthem estão disponíveis na Jazz Messengers, em Lisboa.

pub

Últimos da categoria: Notas Azuis

RBTV

Últimos artigos