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Ilustração: Riça
Publicado a: 20/05/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #13: Gary Bartz & Maisha / João Almeida / Pedro Sousa e Simão Simões

Ilustração: Riça
Publicado a: 20/05/2020

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.


[Gary Bartz & Maisha] Night Dreamer Direct-to-Disc Sessions / Night Dreamer

É sempre uma ocasião especial quando um disco resulta do registo de um encontro entre gerações, entre diferentes práticas, ideias, culturas, quando documenta um momento único e projecta uma possibilidade de futuro. E o jazz está carregado desses momentos: diálogos, conversas, discursos nascidos de ocasiões e lugares específicos que depois servem de faróis ou de marcos que orientam quem realmente os escuta.

Os Maisha são um dos colectivos que têm marcado a moderna agenda jazz londrina: editaram There is a Place na Brownswood de Gilles Peterson em 2018, álbum com que sucederam a uma discreta estreia digital um par de anos antes com o EP Welcome to a New Welcome (disponível para download gratuito no Bandcamp da Jazz Re:refreshed), correram o mundo a tocar e acabaram por se cruzar com a lenda Gary Bartz num estúdio holandês para esta sessão especial da Night Dreamer, editora que busca a excelência analógica em sessões “direct to disc” (sem overdubs, sem edits ou montagens, directamente da mesa de mistura para a máquina de corte de acetato) que já receberam visitas de gente como Seun Kuti, Seu Jorge ou Etuk Ubong.

Com Jake Long assertivamente aos comandos na bateria, os Maisha contam com os valiosos préstimos de Shirley Tetteh na guitarra eléctrica (capaz tanto de acomodar fraseados fortemente apoiados na estética “fusionista” como de traduzir para o presente o pulsar staccato do guitarrismo da África ocidental), Al MacSween nos teclados (carregados de alma e fantasia, verdadeiro lago de harmonias em que todos por aqui mergulham) , Twm Dylan no contrabaixo e baixo eléctrico (ele que possui uma elegante e ondulante presença capaz de aguentar o peso de todo um colectivo, como tão bem demonstrado em “Leta’s Dance”), Axel Kaner no trompete (voz aqui mais discreta, com o espaço nobre das peças concedido sobretudo ao ilustre convidado que é Gary Bartz, mas ainda assim plena de reactiva capacidade de invenção e de segurança nos uníssonos guiados pelo sax) e, finalmente, Tim Doyle na percussão (que prova ser um alegre colorista de espaços, capaz de dançar em torno da sólida fundação erguida por Long).

Bartz é, pois claro, um mega veterano, dono de um extensa discografia plena de tesouros, um elo vivo entre o passado do bop (tocou com Max Roach ou Art Blakey), a década de 70 de efusiva procura (ele que alinhou ao lado de Miles Davis, McCoy Tyner, Pharoah Sanders, Charles Tolliver ou Mtume…) e o futuro ousado a partir dos diferentes ritmos que foram tomando conta dos clubes (do Donald Byrd de Caricatures ao Norman Connors de Take it to The Limit), servindo tantas vezes a sua original matéria como combustível de reinvenção sampladélica no hip hop e não só. E depois, importante ressalvar, foi homem do leme da fantástica NTU Troop que em 1971 nos deu o mega clássico Harlem Bush Music – Uhuru além de ter assinado em nome próprio o verdadeiro tratado jazz-funk que é Music Is My Sanctuary.

Os Maisha estavam, evidentemente, mais do que conscientes dos extensos pergaminhos de Bartz e sente-se nesta sessão que essa reverência esteve em alta no estúdio. Mas um dia de ensaios em Harleem, na Holanda, foi mais do que suficiente para que a banda e o solista convidado encontrassem a necessária sintonia cósmica a que depois se deu precioso uso em 5 temas vibrantes, que exploram uma ideia de groove com pontuais travos africanos, mas que também se sabem acercar da sinuosa elegância jazz-funk mais clássica como tão bem provado em “Dr. Follows Dance”, uma pérola para pistas que nos faz ansiar por um futuro em que os corpos possam voltar a estar próximos num pequeno clube lotado. E nos momentos finais de “Leta’s Dance”, quando a banda se remete ao silêncio e entrega o espaço sideral à alma que Gary Bartz extrai do seu instrumento, sente-se o peso da história, por um lado, a solene experiência de quem já muito tocou, mas também um sincero agradecimento à promessa de futuro que um presente bem passado sempre contém. Em entrevista ao Bandcamp Daily, Jake Long fala de um momento especial que a banda gostaria de voltar a repetir com Bartz, gravando talvez um álbum. Deste lado, dedos cruzados esperando que tal aconteça, pois claro.


[João Almeida] Solo Sessions *IIII / Edição de Autor

Com apenas 23 anos, João Almeida é um jovem trompetista em busca do futuro. Formado na escola Superior de Música de Lisboa e estudante de Peter Evans, Almeida tem sido alinhado como parte de uma nova geração de músicos (tão bem documentada na iniciativa “Cena Jovem Jazz.pt”) que partindo das vulcânicas cenas locais de jazz e música improvisada têm procurado afirmar o seu próprio lugar, conscientes do contexto que os rodeia e do passado que os trouxe até aqui, mas muito mais interessados em erguer uma realidade distinta.

Pode entender-se assim este intrigante (e entusiasmante…) Solo Sessions *IIII, um trabalho que se apresenta como se João Almeida se propusesse desmontar o som do seu instrumento até às suas mais microscópicas partículas, investigando a sua mecânica e o seu carácter sónico de forma profunda num conjunto de abstractos retratos musicais que recebem títulos reveladores (“Awkward”, “Alternate”, “Stuck” ou “Wobble” são alguns deles) e que se quedam pelo singelo 1 minuto e 46 segundos (“Membrane”) ou se estendem até uns mais ambiciosos 9 minutos e 28 segundos (“Train”). Esse desmontar do instrumento é igualmente uma analítica decomposição do próprio passado que certamente estudou, com Almeida a expor na sua “mesa de trabalho” cada peça componente do seu objecto de estudo – o trompete, o jazz, a música improvisada – olhando para elas como possíveis elementos de algo de novo. Estudar, destruir e reerguer. Não são, afinais de contas, essas as eternamente replicadas dinâmicas da arte?

“Train” é peça chave neste “manifesto” (acredito que se pode entender assim este lançamento) de João Almeida, sendo o “tema” mais longo de Solo Sessions *IIII, é também aquele em que o músico melhor deixa entrever pelo menos um lado do seu carácter, afirmando um som que não esconde a sua dimensão exploratória. E sabendo bem que essa é uma palavra usada e abusada, a verdade é que esse impulso exploratório de João Almeida é precisamente o que o conduz a lugares novos, parecendo que em cada momento em que possa parecer que a sua música resulte derivativa de alguma ideia ou prática passada logo se descarta em detrimento de uma outra que possa soar mais intrigante ou inusitada. “Train” é o comboio do pensamento do jovem trompetista, um conjunto de carruagens (técnica, expressividade, capacidade de improviso, etc) que é puxada pela locomotiva da sua íntima ambição: chegar a um lugar novo. Vai ser interessante seguir esse comboio, sem a menor sombra de dúvida.


[Pedro Sousa & Simão Simões] Tiro e Queda / Favela Discos

Pedro Sousa é um saxofonista de mão cheia e espírito de aventura pronunciado que tem gravado em diversos contextos, ladeando gente como Gabriel Ferrandini, Thurston Moore, David Maranha, Miguel Mira ou Hernâni Faustino, para citar apenas alguns dos marcos que pontuam um intenso percurso que tem excelente montra discográfica na sua casa Bandcamp.

Muito bem “mobilado” está igualmente o lar digital de Simão Simões, jovem explorador do lado mais experimental das electrónicas contemporâneas que ainda recentemente nos ofereceu um belíssimo Touchy Feely, trabalho que o confirma como protagonista de pleno direito da viciante “novela” da nova electrónica nacional.

Juntos, Sousa & Simões transformam este Tiro e Queda (título feliz que a Favela Discos também disponibiliza em edição de CD-r limitada a 50 cópias) num dos momentos musicais mais interessantes do nosso presente (e deveras estranho) calendário. Choque frontal de saxofone e electrónicas em regime de absoluta liberdade, Tiro & Queda é agreste e abrasivo, incómodo e perturbante, mas também estranhamente sedutor, envolvente e intrigante, uma jam session entre um dos robots de Forbidden Planet e um alien fã do Ascension de John Coltrane. Ou algo do género.

Aqui, cada um dos músicos bombardeia o outro com rajadas de abstracção pura, não escondendo nenhum deles estar muito pouco interessado em se alongar por discursos mais convencionalmente expositivos, optando antes por tentar sabotar o seu interlocutor com barragens de ruído, detritos de ideias e blocos de som em estado puro. Sousa é imperial no seu saxofone, um sólido improvisador, capaz de delirantes guinadas de tom, com um amplo leque de recursos técnicos que, no entanto, nunca se atravessam de forma gratuita no seu caminho. E Simões domina na perfeição as suas ferramentas, erguendo um mural de sons que se apresentam como uma orgia entre alguns computadores, um ou outro sintetizador reformado, um par de contadores Geiger e talvez uma torradeira saída das mãos de um circuit bender. Façam play. É tiro e queda, garanto.

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