pub

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 22/01/2021

Um ancião que ainda tem cabeça e mãos para gerar dois discos num ano.

Kahil El’Zabar: “No início da minha carreira, havia uma gravidade que me puxava para o futuro”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 22/01/2021

Conversar com Kahil El’Zabar é um privilégio e escutá-lo é permitir que os nossos ouvidos se liguem de forma directa à história. Em 2020, o músico veterano, nascido em 1953, em Chicago, onde ainda reside, lançou dois incríveis trabalhos: Spirit Groove, álbum em que divide créditos de líder com David Murray, e o ambicioso America The Beautiful, fresco com dimensão orquestral que se impõe como um vívido retrato da América do presente: um país ferido, mas que retém a esperança no futuro que o mestre percussionista sempre sentiu a puxá-lo.

A carreira de El’Zabar está intrinsecamente ligada à Windy City: frequentou a liberal e progressiva Lake Forest College, testemunhou o nascimento da Association for the Advancement of Creative Musicians, instituída por músicos lendários como Muhal Richard Abrams ou Phil Cohran, projecto em que, aliás, assumiu um cargo directivo logo em 1975. No seu singular trajecto cruzou-se com inúmeros gigantes, de Dizzy Gillespie e Nina Simone a Stevie Wonder, Pharoah Sanders ou Paul Simon, construindo um distinto, variado e aventureiro currículo que atesta bem as suas sérias capacidades artísticas.

A sua carreira discográfica teve início em 1980 com a participação no clássico de culto Live Without Fear, solitário trabalho auto-editado do projecto Infinite Spirit Music que em boa hora a Jazzman relançou em 2019. A estreia do seu Ethnic Heritage Ensemble aconteceu logo no ano seguinte, com Three Gentlemen From Chikago, álbum que marcou o arranque da discografia desse colectivo que soma já duas dezenas de títulos e que continua a expandir-se até aos dias de hoje: Be Known: Ancient / Future / Music foi lançado pela Spiritmuse em 2019! Já o Kahil El’Zabar’s Ritual Trio, em que hoje milita Junius Paul mas que em tempos contou com os préstimos do lendário Malachi Favors, começou a lançar trabalhos em 1985 e permanece igualmente activo até aos dias de hoje.

Numa ligação via Zoom, em que o lendário músico muito literalmente nos abriu as portas para o seu loft, El’Zabar revelou-se um conversador generoso, sempre disposto a elogiar os seus pares, cuidadoso na forma como explica os seus processos criativos e como integra a música que faz numa cultura mais vasta de que sabe ser simultaneamente herdeiro, guardião e educador para as próximas gerações.

Consciente de que está prestes a chegar aos 70 anos e que os instrumentos que escolheu são provavelmente dos que maior exigência física apresentam, Kahil El’Zabar revela-nos as suas intenções para o futuro, esse lugar que ninguém conhece, mas que o músico acredita continuar a ser a sua casa.



Isso são tudo discos? Uau…

Sim, este é o espaço em que guardo boa parte da minha colecção e onde trabalho, escrevo, faço as entrevistas. E por falar nisso, muitos parabéns: sei que faz anos hoje. Lamento ter que o fazer trabalhar, poderíamos ter guardado esta conversa para outro dia.

Sem problema algum. Muito obrigado. O trabalho faz-nos lembrar porque vivemos, por isso está tudo bem.

Obrigado. Permita-me que comece por questioná-lo sobre o novo rumo em que a América vai agora embarcar. Como está o seu ânimo?

Bem, sinto-me feliz por saber que não haverá um novo mandato de Donald Trump, uma pessoa egoísta, com um ego gigante, mesquinha, que nunca mostrou qualquer tipo de empatia pelos seres humanos em geral. Que ele tenha comandado o país estes anos foi uma verdadeira tragédia. E saber que isso chegou ao fim aquece-me a alma porque sei que esse período de tirania terminou.

Muito bem, falemos de America The Beautiful. Depois de um álbum em quarteto, este último trabalho impressiona pela amplitude orquestral que apresenta. O ensemble que montou para este projecto implicou ir em busca de músicos específicos ou pensou apenas nos instrumentos quando escreveu o material?

Bem, para mim é muito importante pensar em músicos específicos que eu sei que são muito competentes nos seus respectivos instrumentos, mas a quem reconheço igualmente uma certa sensibilidade para com a música em geral e igualmente para com o meu trabalho, a minha visão. Músicos que eu sei que serão capazes de entender a minha linguagem, a minha pedagogia, se quiser. Por isso mesmo, tinha que ter aqui ao meu lado o Corey Wilkes que é um incrível trompetista, um fantástico solista que já trabalhou comigo no Ethnic Heritage Ensemble por cerca de 15 anos, e que é como um irmão mais novo: estudou na Berklee School of Music, poderia ter até ingressado na orquestra do Lincoln [Center] com o Wynton [Marsalis] porque tem as capacidades técnicas exigidas, mas fiquei muito feliz por a seguir à universidade ele ter preferido trabalhar antes com o Ethnic Heritage e por isso tudo é natural que ele seja o solista principal ao longo de America The Beautiful. As primeiras quatro faixas foram criadas para um filme, America The Beautiful 3, de Darryl Roberts, sobre a indústria de venda do sexo na América. Fui eu que criei o score e no “America The Beautiful Theme” eu tinha a Tomeka Reid, o Hamiet Bluiett, o Corey (Wilkes), claro, o Dennis Winslett, todos estes músicos incríveis e depois no início do ano [2020] estive envolvido na escrita e produção de música para um outro filme que há-de ainda sair e que foi produzido pelo actor Will Smith. Só depois terminei as outras cinco canções que estão no America The Beautiful. Acho que esses temas são um detalhado retrato do momento que o mundo atravessava e eu tinha ao meu lado os músicos perfeitos para isso: o James Sanders que é grande violinista clássico e de jazz, um grande solista, que tem um quarteto de cordas com o qual pude trazer a sensibilidade sinfónica para o projecto. Isso permitiu-me escrever arranjos para as cordas, mas ao mesmo tempo ter no James um grande improvisador que era igualmente capaz de conduzir as cordas. E claro, ter o [Hamiet] Bluiett no tema “Freedom March”, com todo aquele seu poder e força, e saber que essa foi a sua última participação numa gravação, com aquele típico bravado do seu grande saxofone barítono – foi o veículo perfeito para ele. O Dennis Winslett é um grande saxofonista alto de Kansas City, sempre gostei dele, e esta foi uma oportunidade perfeita para trabalharmos. O Dennis, é importante que se diga, aprendeu alto com o mesmo homem que ensinou o Charlie Parker, e também é de Kansas City, e eu queria esse tipo de sensibilidade no “Express Yourself”: um groove funky, mas com fraseados de be bop na improvisação, um contraponto entre a energia do groove e a abstracção. No “Jump and Shout (For Those Now Gone)” tenho aquela linha de baixo mortífera do Joshua Ramos, que é o contrabaixista do Ramsey Lewis Trio. Eu queria ter alguém capaz de impor aquele groove para os solos do Corey [Wilkes]. Tenho ainda a tomar conta de algumas percussões o Ernie Adams que tocou com os Weather Report e montes de outras pessoas, o grande percussionista africano Babu Atiba e eu mesmo para criarmos aqueles orquestrações de percussão. Não apenas a minha “earth drum” ou a minha kalimba, mas muito mais: acho que fiz para aí umas 20 pistas ou mais de detalhes de percussão para os temas “Sketches of an Afro Blue” e “Jump and Shout” – dá para sentir aquele grande som. E para isso eu tive ao meu lado os músicos certos para fazer com que esta música acontecesse, para levar a missão a bom termo.

Sabe, estive recentemente a escutar umas até aqui inéditas gravações para rádio de 1969 de um músico e arranjador britânico chamado Alan Wakeman. Ele explica que na época seguiu de perto a ideia professada por Duke Ellington de que os “músicos fazem a música”, algo que eu interpreto como o compositor a dotar as suas peças de espaços livres para que os músicos possam aí deixar a sua marca pessoal. Ouvindo-o falar agora, tenho a sensação de que essa é uma ideia que lhe diz muito também.

Sem dúvida. Sem dúvida alguma. Quando se pensa nas grandes bandas do passado, sejam as big bands de Duke Ellington ou de Stan Kenton, ou ensembles um pouco mais pequenos, mas ainda assim dilatados, como os vários grupos de [Charles] Mingus, a Sun Ra Arkestra, quando se pensa em combos, o quarteto de [John] Coltrane, os quintetos e quartetos do Miles Davis, sabe, todos esses músicos eram indivíduos de personalidades vincadas em que o compositor depositava fé. Nesses casos, o compositor e director de banda acreditava que as capacidades musicais e técnicas de cada um seriam as ideais para transmitir as suas ideias, mas tendo as suas próprias personalidades dentro da sua ideia de maneira a criar uma expressão autêntica, real e carregada de sentido.

Há outros gestos que carregam intenção, não apenas a eleição de músicos específicos, mas também a escolha de peças musicais particulares: e abordar um hino centenário como “America The Beautiful” neste presente tem uma ressonância política…

Bem, a ideia ao escolher um hino tradicional como o “America The Beautiful”, com aquelas sensibilidades corais góticas originais, foi abordá-lo a a partir de escalas pentatónicas, ideias mais conotadas com culturas do chamado terceiro mundo, formas de aumentar o som. E sobrepor isso a uma melodia tradicional pretendeu trazer ao de cima uma forma diferente de expressão e, se tudo corresse bem, levar a que uma peça assim pudesse também ser sentida de forma diferente, talvez esvaziando parte da sua intenção original.

O tema “Express Yourself” de Charles Wright é um dos meus momentos favoritos na história do funk. Lembra-se da primeira vez que ouviu o original?

Claro!!! Claro que sim: tinha 17 anos, estava a acabar o liceu. Se me lembro bem, foi numa festa na 51st Street de Chicago, numa igreja chamada Saint Anne’s que permitia que os miúdos de liceu aí organizassem eventos. Quando entrei e ouvi aquela frase [imita o som do riff tocado pelos metais]… aquela cadência inspirava-nos mesmo a expressarmo-nos, a usarmos a nossa voz. O que eu pensei foi: numa era em que há uma super vigilância imposta ao mundo, em que as populações são manipuladas através dos media, a beleza do pensamento individual e inteligente torna-se vital para o nosso futuro e cada um de nós tem a responsabilidade de se expressar, de recusar o silêncio.



Há uns meses lançou um álbum bem diferente, na companhia do David Murray. Pode falar-me um pouco sobre esse trabalho?

Sabe, há certos músicos que são muito importantes para mim, emocionalmente, músicos com quem tenho fortes amizades. E eu, enquanto líder de banda, enquanto compositor e arranjador, tento moldar as coisas que eu acredito poderem ser um elogio às vozes desses indivíduos. Eu e o David tivemos muitas conversas acerca desta ideia de criar o projecto Spirit Groove. E isso implicou muito trabalho, partindo da nossa história passada, levando-nos a pensar se seríamos capazes de trazer a mesma autenticidade e intenção a uma ideia baseada no groove quando tantos dos nossos encontros passados exploraram mais o mergulho livre e intenso na cacofonia. Portanto pegando na ideia de, por exemplo, “Africa” de John Coltrane, com a linha de baixo, eles conseguem tocar a linha de sopros sobre o groove, mantendo-a, com a improvisação a correr por trás, e, ao mesmo tempo, olhando para o tipo de energia translúcida do groove de algo como o “Compared to What” do Eddie Harris com o Les McCann – tanto num caso como no outro, eles nunca perdem a intensidade enquanto seguem o groove. E eu perguntei ao David [Murray] se nós, enquanto veteranos, poderíamos trabalhar com jovens músicos que trazem a sensibilidade hip hop, que carregam estas noções contemporâneas de groove, como acontece com o Justin… bem quando se chega à minha idade às vezes os nomes escapam-nos… Justin Dillard, é isso. Seríamos nós capazes de pegar na nossa experiência, desmontar o que andámos anos a fazer, manter a mesma intenção, mas num sentido contemporâneo, mais ligado ao pulso da expressão rítmica actual? E a verdade é que acho que conseguimos, acertámos em cheio.

Confirmo (risos). Parte desse álbum foi gravado ao vivo, em Chicago. Imagino que por esta altura ainda esteja tudo fechado…

Sim, tinha havido uma tentativa de regresso ao normal, há uns meses, mas os números começaram a subir e tudo fechou outra vez. Em Nova Iorque, Chicago, Londres, Paris… está tudo igual. Houve espaços abertos no Verão passado, muitos dos músicos mais jovens conseguiram tocar, tiveram datas até ao Outono, mas depois voltou tudo a encerrar. Eu queria ter feito um concerto ao vivo do America The Beautiful, com streaming, para o Mixcloud, mas tive que o cancelar porque não foi possível reunir os músicos. Era suposto fazermos duas noites em Londres, no Ronnie Scott’s, o Sons d’Hiver em Paris em Fevereiro, outro concerto em Bordéus, também em Fevereiro, este com o Spirt Groove, mas penso que nada vai acontecer devido à situação. E o mesmo acontece em Chicago. Está tudo parado, mas se as pessoas se conseguirem disciplinar agora, se conseguirem revelar-se mais conscientes dos problemas levantados pela pandemia, acredito que as coisas hão-de eventualmente reabrir. Eu mal posso esperar para voltar a estar com as pessoas, voltar a tocar e a trocar ideias e sons. Essa tem sido a minha vida desde há 50 anos, por isso estes têm sido tempos muito difíceis. Mas há que ter paciência…

E aposto que nesses 50 anos nunca houve um tempo tão difícil para os músicos quanto o presente…

Provavelmemte a última vez que houve este tipo de catástrofe, com um potencial tão enorme para se contrair uma doença, terá sido com a Gripe Espanhola, numa altura em que nenhum de nós estava vivo. Mas isto deu-nos a todos, definitivamente, uma oportunidade para abrandarmos e pensarmos nas coisas. Tem graça porque o Corey [Wilkes] tem estado muito excitado por causa do interesse gerado pelo America The Beautiful, as pessoas têm falado da beleza do seu trompetismo, comparando-o a Miles Davis. O trabalho dele em “That We Ask of Our Creator” e “How Can We Mend a Broken Heart” foi muito elogiado e ele liga-me e diz: “Kahil, man, toda a gente está a falar do disco, isto vai correr bem, os próximos 20 anos vão ser espectaculares”. Ao que eu tenho que responder: “Corey, tens noção que eu terei 80 anos no fim desta década?” [Risos]. Portanto, para mim a pandemia tem sido uma oportunidade para abrandar e pensar na transição da minha vida. Se isto não tivesse acontecido, se eu estivesse ocupado como de costume, talvez não pensasse que estou num momento em que uma transição no plano físico é incontornável. Tenho que pensar em deixar de ser tão activo. Talvez tenha mais uns 10 anos, mas depois disso, carregar esta bateria e conduzir oito horas numa carrinha até uma cidade qualquer para um concerto ou apanhar um comboio… não dá para fazer isso para sempre. Portanto, preciso mesmo de pensar nesta transição e tenho já algumas boas ideias: talvez trabalhar mais como compositor, como director de projectos, como maestro… Muito do trabalho em America The Beautiful implicou que eu assumisse o papel de maestro, não foi apenas uma questão de eu fazer o meu papel como músico. De forma a atingir as nuances que eu procurava, os ângulos de expressão que eu julguei importantes, as dinâmicas, foi necessário eu assumir esse papel para atingir os resultados que eu queria. E deverá ser por aí que eu avançarei no futuro.

Tenho só mais duas perguntas, antes de o deixar ir celebrar, como, aliás, bem merece, o seu aniversário. O seu álbum com o projecto Infinite Spirit Music foi reeditado o ano passado, algo que eu apreciei caso contrário nunca teria sido capaz de comprar um original…

Olhe, nem eu tenho um original, nem poderia pagar o que pedem por ele… [Risos]

O que é que recorda desses tempos? O que é que guiava a sua música nessa altura?

Acho que havia… hum… alguma gravidade que me puxava para o futuro. Estávamos “drogados” com o espírito, não com drogas, mas com a nossa capacidade de sentir, como só os jovens conseguem. Eu acreditava nessa gravidade, na vida de entrega à arte, na forma como empenhávamos a nossa paixão em prol de algo maior. Quarenta anos mais tarde, posso dizer que esse instinto estava correcto.

Foi nessa altura que se envolveu com a AACM. Continua a ser uma instituição crucial e não apenas para Chicago, certo?

Sem dúvida. Hoje sou mais um ancião, um conselheiro de gente como o Junius Paul, contrabaixista, e o Corey Wilkes, o Justin Dillard, a Nicole Mitchell. Eles são os jovens mais activos agora. E eu adoro estar presente, testemunhar toda a incrível energia que eles investem em tudo o que fazem em Chicago. E é bom eu poder partilhar com eles o quão importante foi poder ouvir o Von Freeman há 50 anos, como foi ter escutado o Coltrane quando ele veio a Chicago, como foi ver e escutar o Thelonious Monk, ter estado no princípio da AACM, com o George Lewis, o Chico Freeman… fomos os primeiros estudantes, estive nas primeiras reuniões ainda adolescente, em 1965 e 66. Fui integrado formalmente em 1969. Portanto, quando eu falo com o Corey e com o Junius, que são quem faz coisas agora com jovens, e querem saber como era naquele tempo, sinto orgulho por lhes poder dar um testemunho directo e sem filtros sobre o que eu senti, aquilo em que escolhi acreditar e em que escolhi trabalhar. Tal qual eles fazem agora.



Os álbuns America the Beautiful e Spirit Groove estão à venda na Jazz Messengers, em Lisboa.

pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos