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Fotografia: World Academy
Publicado a: 21/12/2020

Entre sistemas que abalaram o hip hop tuga e fachadices em sítios incomuns, celebrou-se o talento nacional nos dias 17 e 18 de Dezembro na Altice Arena, em Lisboa.

Juntou-se a fome à vontade de comer no Rádio SBSR.fm Em Sintonia

Fotografia: World Academy
Publicado a: 21/12/2020

Ser o primeiro a subir a palco num evento com muitos nomes envolvidos é uma tarefa bastante ingrata — e imaginem que, ainda por cima, isso acontecia a uma quinta-feira. Foi este o cenário que Ivandro (acompanhado por Marcus Costa, nas teclas, e FRANKIEONTHEGUITAR, na guitarra, pois claro) encontrou no primeiro dia do Rádio SBSR.fm Em Sintonia, entrando logo a pés juntos com “Não É Fácil”, baladão em que pôs logo à prova o seu aparelho vocal, aparelho esse que se ressentiria no restante reportório — no dia anterior, disse-nos, houve criação musical intensa e isso não lhe permitiu estar a 100% no seu primeiro concerto em muito tempo. Para além de faixas já editadas (“Porta” e “Mais Velho”), covers (“Talvez se eu Dançasse”) e estreias (“Trovador”), houve tempo para Bispo subir a palco para acompanhar um dos seus protegidos em “Essa Saia”, uma apresentação que terá sido certamente estranha para a dupla que foi encontrando por esse Portugal fora plateias atrás de plateias a cantarem todas as palavras do hit. Mesmo num cenário diferente, o duo mostrou-se confiante, deixando ainda uma mensagem de força para os próximos tempos. “Cabeça erguida”, palavra de Mais Antigo

A vontade de tocar notava-se à distância, mas também a leveza com que encararam a bem composta Sala Ermelinda Freitas. A electricidade dos Hause Plants foi sentida na sua actuação e reacendeu uma chama na vontade de ver concertos por parte da audiência também. As interacções entre a banda intercalaram pequenos rasgos desleixados de performance que não se faziam sentir na coesão colectiva. O quarteto percorreu uma quantidade de fantasias dream pop, que vão beber ainda ao pós-punk e ao shoegaze, banhadas a chorus, phasers e distorções, recorrendo muito pouco a ideias que passam por computador. A duas vozes, os primaveris Hause Plants reavivam um indie nostálgico e sonhador, que não deixa de ser físico e enérgico. Para rever numa altura em que estar sentado é uma opção e não uma obrigação. 

É, facilmente, uma das mais interessantes figuras do r&b/soul a nível nacional na actualidade, mas AMAURA tem, no entanto, um percurso a solo relativamente recente. O seu EmContraste, editado no ano passado pela Mano a Mano, levou-a rapidamente aos ouvidos de fãs deste género. Em tempos de pandemia, a cantora soube voltar a entrar nas casas portuguesas com DENSO. Mantendo-nos no Palco Ermelinda Freitas, a intimidade de alguns instrumentais, encaixou na sala enquanto ouvíamos bem instalados em cadeiras. Mas dançar não caía mal neste groove, obviamente. A própria artista incentivou ao movimento possível nas cadeiras em “Saber Viver”, acompanhada por Pedro Braula Reis na guitarra, e por TNT, que soltava instrumentais, backs e até algumas barras, como em “Saber Quem Sou”. O guitarrista acrescentou acordes e reforçou esta intimidade que ligou os beats à voz infalível (no que toca a expressão sentimental inata à sua música) de AMAURA. Felizmente, os seus concertos vão além da muito comum necessidade de puxar por um público sedento por energia e músicas festivas. Há profundidade, melancolia e isso poder transparecer nas actuações é mais um dos pormenores que assenta na sua impressão digital, distinta e única no panorama português.

Fenómeno cibernético de popularidade, o intempestivo Chico da Tina era um dos nomes que nos suscitava mais curiosidade para ver em acção ao vivo. No final da actuação, percebemos porquê: era praticamente impossível adivinhar (só que iríamos ouvir faixas como “Ronaldo”, “Freicken” ou “Põe-te fino”) aquilo que acabaríamos por ver no palco principal do evento. Feiticeiro do trap, trapstar minhoto, crooner auto-tunizado ou Quim Barreiros do trap são alguns dos epítetos que nos passaram pela cabeça durante um concerto que envolveu doutores, Lil Noon e Tripsy Hell, interpretações em cima de plataformas de step, revelações que envolveram relicários e muito mas muito caos. Apesar de precisar de rodagem/estrada e afinação de alguns pormenores, o espectáculo de Francisco da Concertina tem tudo para vingar… nem que seja num circuito de festas universitárias. 

O fecho da primeira noite ficou a cargo de ProfJam & benji price, dupla que montou, pela primeira vez ao vivo, o SYSTEM no maior palco da Altice Arena. Sentados lado a lado, os rappers “cuspiram” de fio a pavio um álbum que, segundo os próprios, nunca pensaram transportar para concerto — mas ainda bem que o fizeram. E se Mário Cotrim já não surpreende – quem o viu a cantar em carne e osso pôde testemunhar a sua energia e capacidade técnica acima da média–, o mesmo não se pode dizer de João Ferreira, que saiu do estúdio para mostrar que é, muito provavelmente, um dos mais hábeis rappers-produtores da sua geração. Da ida ao “Tribunal” ao incendiário “#24” que pede mosh pits com urgência, passando pela procura pela “Perfection” ou um pequeno momento de celebração familiar com uns parabéns cantados em uníssono para a mãe de benji, a prestação terminou com “Imortais” e a constatação que “existe um antes e depois da Think Music” na história do rap português. Só ouvimos verdades…

Nascida na Rússia e a viver em Portugal, IAN, projecto da produtora Ianina Khmelik, ocupou o Palco Santa Casa no início do segundo dia de concertos, e apresentou temas do seu mais recente trabalho, RaiVera. O palco era adequado para a arquitectura abismal e avassaladora dos instrumentais de Ianina, que traziam algum techno industrial melódico, mas também batidas e texturas que se apoiam em ideais do trip hop, tudo bem engendrado num plano perfeccionista entre a electrónica, a voz e o violino – no qual é virtuosa, chegando, simbolicamente, a interpretar “Fire” de Jimi Hendrix (do qual admitiu ser fã). Há alguma variedade nos ambientes que procura, mas sempre seguindo uma direcção estética muito clara. Talvez sejam essas valências e o foco na melodia que a tenham levado a ser nomeada como compositora do Festival Eurovisão da Canção.

Acid Acid, como o próprio nome indica, transportou-nos para um universo cheio de influências do rock progressivo e psicadélico. Há, no entanto, um experimentalismo na música de Tiago Castro que se revê na electrónica actual. E, claro, para o nome nos guiar ainda mais em direcção a um universo ácido, tudo isto ressoa com as luzes caleidoscópicas na performance meditativa do músico e radialista português no Palco Ermelinda Freitas. Segundo aquilo a que já nos habituou na sua discografia, esperava-nos uma actuação com um rumo contínuo, de limites e passagens esbatidas. O foco da actuação estaria no seu trabalho lançado em 2020, dedicado ao realizador chileno Alejandro Jodorowsky. Um drone criado por um arco de violino — qual Jimmy Page qual quê — deu início à sua performance a solo e, embora o disco tenha a participação de figuras como Violeta Azevedo, Rui Antunes e Pedro Morrison, o artista decidiu tocar Jodorowsky enquanto controlava sozinho a guitarra, com a qual explorou vários timbres e ideias diferentes com delay, arpejos e melodias mas também sintetizadores e teclados.

Dessa névoa inicial surgiu uma melodia que é imediatamente harmonizada, e assim uma estrutura apareceu da sonoridade mais abstracta do lado A do álbum, que de tantas camadas se compõe, a estruturar-se principalmente quando o ambiente se intensifica a partir o peso de um loop de bateria ritualístico. Há o onírico e surrealista na sua música, mas, no meio dos sonhos, há também lugar para alguma confusão, criada pela tensão das dissonâncias. Não sei se vamos a tempo de encontrar Jim Morrison a tomar mescalina no deserto… mas que alguns destes sintetizadores podiam ter sido encontrados embalsamados algures desde os 70s não parece uma ideia totalmente descabida. É dessa estética que ACID ACID parte, mas não é aí que termina.

Só um ano completamente fora da norma como foi 2020 poderia trazer o reclusivo B Fachada para o palco principal de uma das maiores salas de espectáculos do país. Bem ao seu estilo, o autor de Rapazes e raposas, disco que lançou em Julho passado, foi rebatendo com humor esse desfasamento entre a ideia de onde devemos encaixar o seu som e o espaço onde estava a tocar, atirando pequenas graçolas sobre o ambiente intimista, por exemplo, e desfazendo enganos com um à-vontade desconfortável (pode ser difícil entender, mas acreditem que é possível). Se, no geral, as canções do novo álbum fariam mais sentido num auditório pequeno, a verdade é que há força e imaginação em “Lambe-Cus”, “Padeirinha”, “Trad-Mosh” ou “O Anti-Fado” para “fundar um país à porrada” e para mexer (com o corpo e com a cabeça) daqueles que marcaram presença na plateia do Altice Arena. 

No mesmo sítio, e a fechar o capítulo ReB no Rádio SBSR.fm Em Sintonia, Papillon não desistiu do formato banda que era habitual nos seus concertos, e voltou a provar que não deve fazê-lo. A força da bateria, a guitarra a dialogar com os instrumentais e a voz do artista acrescentam camadas que vivem sem repetir a versão de estúdio — e isso é um argumento a favor na hora de se decidir se se compra um bilhete para ir a um espectáculo seu. 

Assim, acompanhado por DJ X-Acto nos pratos, Luís Logrado na bateria e Miguel Solano nas seis cordas, o membro dos GROGNation voltou a justificar a sua presença em cartazes de eventos e, claro, em palcos grandes, com um crowdwork notável. Com Deepak Looper, que já data de 2018, na base do repertório, Rui Pereira aproveitou para acrescentar os seus mais recentes singles à lista. Foi assim possível revisitar material do seu álbum de estreia a solo — “matar saudades”, nas suas palavras — com temas como “Imbecis”, “1:AM” (tocada no sentido inverso: primeiro o seu final, depois a sua primeira parte), “Impec” (cantada em uníssono por uma audiência sedenta de interação), “Metamorfose, pt.2”, “Impasse” e “Iminente”. Sempre com a sua energia e presença inesgotáveis, o artista apresentou com a mesma motivação e proximidade com o público os seus temas “frescos”  como “AAA” (com a qual abriu o concerto), “Fala Bonito 00”, “Sweet Spot”, “Camadas”. Tudo sem deixar uma única vez a actividade de “cuspir” barras com técnica e entrega invejáveis. Afinal, nada que não esperássemos de Papillon. Pelo meio, e num momento que seria digno de nota pela coragem de sair do seu registo habitual, fica a sua versão de “Crazy” de Gnarls Barkley, na companhia de Solano, como passagem para “’In”. 

A cultura pode ter sido abalroada pela pandemia, mas os artistas portugueses mostraram que a vontade, a inventividade e o talento existem e devem ser apoiados. Melhores dias virão, algo mais fácil de acreditar depois destes dois dias de celebração em que se esqueceu, por momentos, o que se passou nos últimos meses.


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