Há figuras que conseguem criar pontes entre gerações, cenas e geografias. Joe Kay é uma dessas raras figuras. Fundador e rosto da Soulection — um coletivo, editora e movimento que nasceu de um programa de rádio e se tornou num fenómeno global —, o norte-americano transformou a curadoria musical num gesto de identidade cultural. Ao longo de mais de uma década, ajudou a redefinir a forma como se descobre, partilha e celebra música: sem barreiras, sem fronteiras, mas com alma e muito groove.
Hoje, a Soulection é sinónimo de uma comunidade viva, feita de DJs, produtores e ouvintes que partilham um ideal de som e de atitude. “The Sound of Tomorrow”, como o batizou, é mais do que uma assinatura: é uma filosofia que pertence a um espaço onde o R&B, a soul, a electrónica, e o hip hop se encontram no mesmo horizonte. E é precisamente essa visão que Joe Kay tem levado para os palcos, agora com o seu primeiro projeto em nome próprio, o EP If Not Now, Then When, um trabalho que, apesar de reunir várias colaborações, reflete o seu olhar maduro e emocional sobre o tempo, o legado e o papel do som como ligação humana.
Em digressão pela Europa, Joe Kay regressou a Lisboa no passado dia 8 de Novembro para um concerto no LAV – Lisboa ao Vivo, onde voltou a cruzar-se com uma cidade que sempre o recebeu de braços abertos. Aproveitámos a ocasião para o entrevistar para o Rimas e Batidas.
Tens vindo a construir a Soulection há mais de uma década, desde um programa de rádio até um movimento global. Olhando para trás, que momento te fez perceber: “Ok, isto é mais do que apenas música — isto é cultura”?
Essa é uma ótima pergunta! Provavelmente diria no ano de 2012, quando começámos a fazer os nossos primeiros eventos. Conseguimos atrair um público que vinha a todas as nossas residências [em eventos]. Fizemos um evento muito intimista que depois se tornou mensal. A lotação era, talvez, de 80 a 120 pessoas, e essas pessoas apareciam todas as semanas, e por volta do segundo evento já tínhamos uma fila que dava a volta ao quarteirão. Então percebi que isto não era apenas algo online — era algo tangível, real, e havia pessoas na nossa zona que queriam vir viver esta experiência sonora. Quando estás nas redes sociais, quando fazes coisas na Internet, é um bocado como estar numa caverna. Vês apenas reações — especialmente em 2011, quando as redes sociais não eram o que são hoje. Na altura, podias publicar um flyer para promover o teu evento ou uma artwork e pronto. Não havia vídeo, não havia reels, não haviam carrosséis [risos]. Era só publicar um flyer e acabou. Tinhas de te promover e divulgar de forma diferente.
Tinha de causar uma impressão, certo?
Exatamente, isso também. E ainda bem que mencionaste isso. Ver pessoas com tatuagens [da Soulection] foi o que realmente fez tudo parecer mais autêntico. Tipo: “Uau! As pessoas estão a conectar-se tanto com isto que tatuam a nossa marca, o nosso logótipo.” E tem sido uma bênção desde então.
Já que falavas dos primórdios: a expressão “The Sound of Tomorrow” é o grande lema da marca Soulection. O que significa essa frase para ti hoje? A tua ideia do “amanhã” mudou?
Continua a ter o mesmo impacto. Na verdade, publiquei hoje algo nas minhas stories que remete para isso. Houve uma criança de sete anos que foi a um dos nossos concertos com os pais e que ouve o programa de rádio da Soulection por causa deles. Eles foram a Berlim e o miúdo ficou o concerto todo — não estava o tempo todo em frente ao palco, claro, mas esteve lá a noite toda. Fez-me pensar que há miúdos — uma geração mais jovem — a ouvir e a crescer com esta música. Já existimos há quase 15 anos. Há pessoas que ouvem desde bebés, desde a primária, do secundário, da universidade — tudo isso. Estamos a começar a ver os efeitos positivos disso, de pessoas e miúdos de várias idades que cresceram a ouvir a Soulection. Estamos a começar a ver os frutos disso, a recompensa, e a perceber como interpretaram esse som e como se tornaram grandes músicos, criativos e empreendedores. Sinto que ainda vamos ver muito mais nos próximos anos. Mas sim, tem sido ótimo. Por isso, quando penso nessa criança de sete anos no concerto com os pais, para mim isso é o “The Sound of Tomorrow”! É como se tocássemos música adulta mas ainda assim conectássemos com a juventude, percebes?
Sempre foste o curador, o conector, o tipo envolvido nos encontros e colaborações. O que te fez finalmente decidir que agora era altura de produzir o teu próprio projeto com If Not Now, Then When?. Quando e como começou?
Toda a minha vida e carreira, tenho colocado os outros primeiro. A minha equipa de gestão foi muito persistente e fundamental em convencer-me e falar comigo sobre finalmente lançar um projeto curado por mim, com artistas, produtores e escritores em quem acredito. Não é muito diferente do que fiz antes com a curadoria da Soulection — desde os artistas, produtores e DJs até aos alinhamentos que criámos. Era apenas sobre incorporar e dar poder à música que estivesse ligada ao meu nome — algo oficial, não apenas um edit, uma entrevista ou um programa de rádio com um convidado especial. Agora temos um corpo de música que viverá para sempre. Era esse o objetivo. Foi uma ideia muito inteligente. Acho que duvidei um bocado por não ser produtor musical. Pensava: “Bem, estou sempre rodeado de músicos e produtores, não quero que isto seja uma falta de respeito.” Mas acabou por ser mais um papel de produtor executivo, de curador, de tastemaker. Não muito diferente do que um Gilles Peterson ou um Zane Lowe fariam se lançassem um projeto com artistas em quem acreditam. É isso!
Percebo, boa comparação! Houve algum momento ou emoção específica que te levou a dar esse salto, além do que já referiste?
Foi uma combinação de sons. Tivemos mesmo de criar isso. Fizemos dois writing camps — um no deserto, em Joshua Tree, e outro em Los Angeles, nos Amazon Studios. Acho que foi uma mistura entre as pessoas com quem queríamos trabalhar, os produtores e o tipo de música que nos inspirava naquele momento. Teve a ver com timing, alinhamento, compatibilidade e com quem estava disponível — e também quem fez o esforço de ir ao deserto e quem foi a LA. Foi isso que o tornou tão especial, sinceramente.
Do meu ponto de vista, o EP mistura R&B com vários estilos e ritmos, mas também soa um pouco cinematográfico, muito pessoal. Estavas a imaginar histórias visuais ao produzi-lo, ou foi puro instinto emocional?
Foi um pouco dos dois. Foram criadas talvez 50 a 100 ideias, e reduzi-las a seis foi muito difícil. Mas fomos pelas músicas que fluíam melhor, que pareciam completas e cheias. Inicialmente pedíamos temas com mais andamento, com um BPM mais alto, mas acabou por sair assim e acho que resultou bem. Estou muito contente com essas seis faixas. É literalmente um projeto que se pode ouvir do tema um ao seis, de seguida. E cada um tem o seu próprio som e elementos diferentes — do R&B à soul, ao dub, reggae, um pouco de afro-fusion e mais. Acho que há uma boa variedade ali para toda a gente, o que é difícil de conseguir num projeto com seis faixas.
Agora que tens andado em digressão com o EP, primeiro na América e agora na Europa, tens notado a forma como as pessoas reagem ao teu som e não apenas às tuas seleções? Isso mudou a tua perspetiva sobre a performance?
Sim, tento tocar uma a três faixas minhas em cada set que faço, porque há pessoas a ouvi-las — e também não estão nada mal no streaming. Quase todas as faixas, só no Spotify, têm mais de um milhão de reproduções, o que é ótimo de ver. Mas às vezes é meio estranho tocar música minha, ligada ao meu nome, e pegar no microfone para dizer: “Esta é a uma faixa do meu novo EP, caso ainda não conheçam.” Porque ainda há muita gente que não sabe. E o nome da digressão, “If Not Now, Then When”, mesmo que nem todos percebam a ligação entre o projeto e o título, não é apenas um tema aleatório. Foi algo que exigiu algum ajuste. Muitas vezes toco as faixas e nem digo nada. Só observo quem no público está a cantar, quem conhece… Vejo que algumas pessoas até estão a fazer Shazam. Mas, no geral, sabe bem tocar música minha.
E se me permites, provavelmente também há uma ligação entre o título, If Not Now, Then When, e o acto de viver o momento, absorvê-lo, deixar-se levar…
Certo, isso foi uma grande parte da ideia. Pensei: “Ah, talvez possamos adiar este projeto para mais tarde.” Mas se não o fizermos agora, quando é que o faremos? Também quis escolher um título que refletisse sobre a vida — seja o que for que estejas a tentar fazer. Se não fizeres as coisas agora, vais continuar a adiar, a inventar desculpas. “Quando é que o momento certo? Há tantas coisas que quero fazer e continuo a empurrar para a frente.” Então é isso: if not now, then when?
Já tocaste em Lisboa antes — no Park e no Festival ID_No Limits. Que impressão tens da vibe e da energia de Lisboa?
Sinto que Lisboa é muito apaixonada, destemida… As pessoas são muito musicais, com um QI musical altíssimo, obviamente com os sons da batida e com as influências angolanas do kuduro. Tenho o privilégio de ter o Shaka Lion como grande amigo, não apenas na música mas na vida. Ele tem feito um trabalho incrível a educar-me ao longo dos anos, a apresentar-me a produtores locais e artistas de Lisboa que são praticamente os fundadores desse som. Tenho um enorme respeito pela batida e acho que as pessoas que vivem na cidade, ou têm raízes em Portugal, Angola, ou noutros pontos da Europa e África, são muito abertas, apaixonadas e flexíveis em relação à música. Não se limitam a um género, estão abertas a todos os sons, e isso é algo que valorizo muito. Quando chegar aí este fim-de-semana, quero fazer um set híbrido — o estilo Soulection, à minha maneira, mas também prestando homenagem aos sons que adoro da diáspora. Não tenho muitas oportunidades de tocar batida especificamente, por isso vai ser ótimo poder explorar essa sonoridade. E sinto que as pessoas aí são muito recetivas.
Já que falamos de Lisboa, há algum artista português ou lusófono que te tenha chamado a atenção ultimamente?
De Lisboa e Portugal é difícil acompanhar, porque alguns mudam-se para fora ou regressam aos seus países. Mas o DJ Maboku e o DJ NinOo são dois com quem sinto ter uma grande ligação. Um dos fundadores [da sonoridade], o DJ Marfox, tive a oportunidade de o conhecer em Lisboa e de visitar o sítio onde vive e cria a sua música. O Shaka [Lion] levou-me lá, e sinto que foi uma bênção. Conheci também alguns produtores jovens que estão a surgir. Também costumo ouvir o Vanyfox.
Shout out para a Príncipe Discos!
Sim, exatamente! Toda a editora faz um trabalho lindo, incrível. Sou um grande fã deles! Espero que alguns possam aparecer no concerto. Estamos até a pensar talvez adicionar um produtor local ou fazer um back-to-back set para tornar tudo mais especial e prestar homenagem à cena local. De qualquer forma, a música deles vai estar presente. Adoro também o que o LiloCox anda a fazer. Ele partiu da batida, de uma cena mais experimental, e agora está a explorar o afro-tech e o afro-house. É incrível ver como o som dele tem evoluído.
Por curiosidade, alguma vez pensaste em fazer uma compilação ou sessão da Soulection focada em ritmos lusófonos?
Já pensámos sobre isso. Quero muito fazê-lo, porque acredito mesmo nesse som. No ano passado lançámos um projeto gratuito chamado Entitled, focado em música de andamento mais rápido — não só o som de Lisboa, mas também dance music em geral. Tivemos a sorte de contar com alguns produtores lisboetas. Mas esse som ainda está a crescer e o nosso público continua muito enraizado no R&B, soul e future beats. É algo que queremos continuar a explorar e a promover como algo consistente. Está na minha cabeça, sem dúvida. Adorava fazê-lo e estou aberto a isso. Só tem de fazer sentido no timing e na fase em que estamos enquanto equipa.
Se pudesses falar diretamente a jovens criativos que estão a começar — a próxima geração da Soulection — que lição ou mensagem gostarias de lhes deixar?
Há algumas. Quando penso numa mensagem que gostaria de passar, são várias — quase como uma checklist. Primeiro, sê original! Não te preocupes com as redes sociais e com a ideia de viralidade ou de criar um “momento”. Faz as coisas por ti. Se fores genuíno, isso vai transparecer. Encontra a tua identidade e o teu branding. Não há mal nenhum em inspirares-te noutros ou em teres influências, mas cria o teu próprio som, a tua própria marca, a tua própria cena, seja no que for. Estuda os grandes nomes, para te assegurares de que o que fazes tem algo de único, algo que te distingue dos outros, porque hoje já existem imensos produtores, artistas e DJs. Pergunta-te: “O que me separa deles?” E faz isso de forma orgânica. Também, sê paciente. Vivemos numa era em que sentimos que temos de lançar conteúdo e música constantemente. Para mim, trata-se de qualidade acima de quantidade.