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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 26/07/2022

Um retrato em movimento.

Jazz em Agosto e no resto do ano: Lisboa entre o swing e a experimentação

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 26/07/2022

Lisboa, 2022: uma cidade presente ergue-se sobre as camadas que a História vai acumulando e faz-se de ruas e edifícios, de gentes diferentes, da mistura de culturas, de sons e de sabores, mas também de memórias, de vivências, de práticas. Lisboa é, por isso mesmo, tão singular quanto outro lugar qualquer, nem mais nem menos especial, uma cidade de luz branca que inspirou cineastas, deitada à beira de um rio que a liga ao mar e, portanto, ao mundo. Lisboa é, simultaneamente, lugar de estar, de chegar e de partir. E a Lisboa que é cidade do canto dolente do fado que até tem museu e reconhecimento da Unesco é hoje igualmente cidade de novos pulsares que emanam da África que também habita estas ruas. E é ainda, e enfim, uma cidade de jazz.

Em 2017, nas páginas da revista Wire, Pedro Costa, homem do leme da editora Clean Feed, explicava a Stewart Smith como foi construir a vibrante cena presente: “Quando começámos, sempre me senti como, ‘Oh, nós somos de Lisboa, não é uma cena forte, gostava que estivéssemos em Paris ou Oslo ou Nova Iorque’. Mas depois percebi que esta era a nossa maior vantagem, porque a partir de Lisboa podemos ver o mundo”. E, pelos vistos, o mundo também nos consegue ver a nós. Recentemente, o crítico norte-americano Tom Hull garantia, ao tecer considerações sobre We Are Electric, álbum do projecto Northern Liberties que é a mais uma prova da hiper-actividade do saxofonista Rodrigo Amado, que Portugal e Noruega são duas das mais vitais forças no que ao mapa europeu do jazz contemporâneo diz respeito: arriscaria um palpite que per capita os dois principais países do jazz na Europa são a Noruega e Portugal. O tamanho pequeno faz parte da equação, mas a riqueza nem por isso: Portugal é o país mais pobre da Europa Ocidental, enquanto que a Noruega é um dos mais ricos”.

Essa força que se afirmou ao longo das últimas duas décadas e que sustenta o entusiasmante momento presente que Lisboa vive tem pilares óbvios. Em primeiro lugar é justo mencionar o Hot Clube de Portugal (HCP), situado no coração da cidade, na Praça da Alegria: esta instituição existe desde 1948 e é o mais antigo clube de jazz do país e da Europa com uma regular programação de concertos, mas cumprindo também uma importante missão de formação de novos músicos através de uma escola que ao longo de quatro décadas de actividade recebeu centenas de alunos. Ainda assim, para muitos, esse peso histórico e institucional funciona também como uma âncora que prende o HCP ao passado. Pedro Costa explica-nos que actualmente o que diferencia a cena lisboeta passa não apenas pelos aspectos culturais e económicos que nos definem a identidade, mas, e talvez sobretudo, pela “solidariedade que existe entre os músicos, mesmo de diferentes quadrantes, que é algo que permite que se arrisque”: “Muitas vezes tenho pena que um local histórico e único como o Hot Clube esteja tão fechado em si próprio revelando muito pouca vontade de fazer parte deste movimento”.


Foto por Nuno Martins

De facto, na introdução ao livro Improvisando – A Nova Geração do Jazz Português, da autoria do jornalista Nuno Catarino e da fotógrafa Márcia Lessa, Inês Homem Cunha, presidente desde 2009 do HCP, respondendo à pergunta “O que é que se espera de uma nova geração?” enumera uma série de “virtudes” como “renovação, energia, novas abordagens e entrega”, mas destaca em primeiro lugar “o respeito pela tradição”. Ora foi precisamente para romper com as tradições que a editora Clean Feed nasceu em 2001 tendo desde então construído um massivo catálogo com cerca de 600 títulos para que contribuíram alguns dos maiores nomes da cena contemporânea de música criativa.. 

“Qualquer pessoa que preste atenção ao que tem acontecido nos campos do jazz de vanguarda já terá visto e escutado as muito excitantes vibrações que têm emanado de Portugal no último par de décadas”, explicou ao semanário português Expresso o jornalista britânico Daniel Spicer. “A cena de Lisboa deu-nos alguma da mais imaginativa e talentosa música que tem sido feita em qualquer lado. E a Clean Feed tem feito mais do que qualquer outra entidade para mostrar essa música ao mundo. Na verdade”, reforçava o especialista que regularmente escreve nas páginas da Wire e da Jazzwise, “aos olhos dos observadores internacionais, a Clean Feed tem sido o perfeito sinónimo do jazz contemporâneo e progressivo que se produz em Portugal”. O Red TRIO do contrabaixista Hernâni Faustino, do pianista Rodrigo Pinheiro e do baterista Gabriel Ferrandini foi o primeiro dos grupos a acusar no radar de Spicer: “o álbum que eles fizeram com o saxofonista britânico John Butcher representou um sério impacto no palco internacional”. O Red TRIO, beneficiando dessa assumida estratégia de proporcionar aos músicos portugueses encontros com talento internacional de referência, gravou igualmente com Nate Wooley, com o vibrafonista sueco Mattias Stahl e com o músico electrónico polaco Gerard Lebik, representando claramente os intentos originais de Pedro Costa e restantes cúmplices na gestão da Clean Feed ao longo destas duas décadas.

“A cena portuguesa em geral, e a lisboeta em particular, mudou e evoluiu muito nestes últimos 20 anos. Tem hoje músicos mais apetrechados tecnicamente e com horizontes mais abertos. Finalmente conseguimos ocupar o espaço entre o jazz e a música improvisada e foram criados múltiplos projectos que cruzam o jazz com outras músicas. Para além disso, temos hoje muito mais instrumentistas do que alguma vez tivemos. Lembro-me que para gravar o álbum Filactera em 2002, o guitarrista Mário Delgado teve de ir à Polónia buscar um saxofonista por realmente não haver praticamente escolha nenhuma em Portugal”.


Foto por Nuno Martins

O panorama é hoje radicalmente distinto, no que a saxofonistas diz respeito. A um veterano com projecção internacional como o saxofonista tenor Rodrigo Amado – que só em 2021, e para lá do já citado projecto Northern Liberties em que trabalha com os noruegueses Jon Rune Strøm, Gard Nilssen e Thomas Johansson, lançou mais dois álbuns em que teve ao seu lado lendas como Joe McPhee e Alexander von Schlippenbach – juntam-se mais jovens valores como Ricardo Toscano, Desidério Lázaro, João Mortágua, Tomás Marques, Bernardo Tinoco, Pedro Sousa ou Pedro Moreira. E o espectro alarga-se quando se pensa noutros instrumentistas. Rui Eduardo Paes, crítico, activista e programador, desenhou para o Rimas e Batidas um retrato de “uma nova geração de músicos portugueses que estão a mudar o cenário do jazz criativo e da música improvisada em Portugal, introduzindo-lhe não só uma bem-vinda lufada de ar fresco como novas sonoridades, novas referências e, acima de tudo, uma energia que abriu já de par em par as portas do futuro”. Na ocasião avançou nomes como os do guitarrista André Lança, do contrabaixista Ba Álvares, da cantora Beatriz Nunes, do trio Cíntia, dos trompetistas João Almeida e Yaw Tembe ou do baterista João Valinho, todos eles muito activos no circuito lisboeta.

“As dinâmicas lisboetas são, sobretudo, individuais, partindo da iniciativa dos próprios músicos e de alguns programadores atentos ao que se vai passando”, sublinha Rui Eduardo Paes: “Destaco o trabalho incansável desenvolvido na SMUP — Parede, linha de Cascais — pelo Cláudio Rêgo. Ainda assim, tem sido fundamental a actividade de editoras como a Clean Feed ou a Robalo, que juntaram músicos e projectos, lançaram-nos em disco e dão impulso aos dinamismos existentes, em ambos esses casos conseguindo algo que não acontecia antes: o esbatimento de fronteiras entre o que classicamente (e muitas vezes erradamente) era considerado mainstream e avant-garde, separando esses circuitos e sustentando, inclusive, bizarras polémicas. Hoje cada vez mais nomes estão engajados nesse alargamento de perspectivas, algo que agora é particularmente visível nas programações, por exemplo, da Festa do Jazz, o que é bastante saudável”. Paes refere ainda a importância de espaços como o Bar Irreal, que chegou a ser programado por Pedro Sousa e pelo baterista Gabriel Ferrandini. Pedro Costa, alargando as referências a espaços que recebem aventureira programação entre o jazz e as músicas livres, menciona também DAMAS, o Desterro, PENHA SCO ou O’Culto da Ajuda como pontos de um percurso que ajudou a crescer a presente geração de músicos. Obviamente que a Galeria Zé dos Bois, clube que há mais de duas décadas oferece programação disruptiva no Bairro Alto, é igualmente crucial. Foi aí que Ferrandini preparou em residência o aplaudido álbum Volúpias (lançado pela Clean Feed) em que trabalhou com o já mencionado Pedro Susa e com o também ultra-activo contrabaixista Hernâni Faustino. Também em 2001, nasceu na cidade de Lisboa a Creative Sources pela mão do compositor e violinista Ernesto Rodrigues, um selo que estende o seu catálogo por mais de 700 títulos que exploram os complexos caminhos que se estabelecem entre o jazz, a música improvisada e a electrónica contemporânea, revelando uma vitalidade e energia sem paralelo. Bem mais recente, o nascente selo Phonogram Unit, projecto cooperativo liderado pelos músicos José Lencastre, Rodrigo Pinheiro, Jorge Nuno, Hernâni Faustino e Vasco Furtado que em menos de dois anos já soma uma dezena de lançamentos, apresenta agora na Cossoul uma série de concertos com que pretende expor as suas próprias experiências musicais, contribuindo para uma ainda mais diversificada oferta.

Outro pilar histórico da cena jazz de Lisboa é, sem sombra de dúvida, o Festival Jazz em Agosto promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian desde 1984 e que ao longo dos anos cruzou nos mesmos cartazes alguns dos maiores nomes da cena internacional e o mais fresco talento português. Rui Neves, director artístico do Festival praticamente desde o início, sublinha que “impulsionar o talento local sempre foi um dos objetivos do Jazz em Agosto na intenção de o equiparar aos novos talentos do jazz internacional que têm constituído o âmago do festival”.  “No novo Milénio”, prossegue Neves, “o Jazz em Agosto fidelizou a audiência adquirindo projeção internacional veiculada por reputados jornalistas e críticos estrangeiros convidados pelo festival, que deram a conhecer a sua valia em consonância com os tempos, culminando em 2014 com a atribuição do 3º Award For Adventurous Programming do European Jazz Network. A regular presença destes jornalistas e críticos no Jazz em Agosto até hoje, permitiu igualmente a divulgação e promoção no meio internacional de músicos e formações nacionais constantes das nossas programações. É neste período que surgem novos projectos de músicos portugueses aos quais o palco do Jazz em Agosto foi oferecido: Carlos Zíngaro, Jorge Lima Barreto, Red TRIO, Luís Lopes, Rodrigo Amado, orquestra LUME de Marco Barroso e, mais recentemente, Susana Santos Silva, Gonçalo Almeida, Abdul Moimême, João Lobo, João Pedro Brandão, João Lencastre, Pedro Melo Alves, Luís Vicente. Mas talvez o facto mais importante que explica a evolução dos talentos nacionais do jazz seja a própria programação internacional do festival que os inspira a empreender novos caminhos”.


Foto por Vera Marmelo

Com uma localização privilegiada num dos mais belos jardins da capital portuguesa, o Jazz em Agosto, como faz questão de sublinhar o seu director, “sempre foi louvado por todos os músicos”: “John Zorn chegou a dizer em público que este é o palco de que mais gosta referindo que cada concerto aqui é especial. Podemos acrescentar que se trata de um festival que se estende ao longo de 10 dias com um ou dois concertos por dia, permitindo receber os músicos da melhor maneira. Numa cidade como Lisboa, agora com o capital turístico que lhe conhecemos, a articulação da programação do festival é adequada com intervalos substanciais entre concertos, permitindo ao visitante internacional as deambulações que quiser, sejam gastronómicas, sol, mar, rio, monumentos históricos”. O sueco Mats Gustafsson, prolífica força da natureza e outro dos pilares contemporâneos do mais livre jazz europeu, conhece bem o Jazz em Agosto, evento de que garante guardar “muitas memórias”: “De grande música, de grandes encontros, de um evento social fantástico. A vibração, a forma como tudo acontece, a energia…”, explicou-nos. “Penso que aquilo de que mais gosto é da grande programação. Aventureira e frontal. Equilibrada. Inquisitiva. É um programa que me dá novas ideias do que é e pode ser a música criativa. No Jazz em Agosto ouvi muita música nova e incrível que não conhecia antes. Isso é uma bênção”, afiança. Muito viajado, o músico explica que “o espectacular contexto do anfiteatro” contribui para a singularidade deste evento: “as aves barulhentas por trás do palco e o entusiasmo do público. Uma combinação fantástica que não se encontra em mais lado nenhum”.

Há outras coisas, porventura menos positivas, que nos distinguem de outras cenas internacionais já sedimentadas: o jazz em Lisboa é povoado sobretudo por homens brancos. No já mencionado livro Improvisando – A Nova Geração do Jazz Português, entre os 14 nomes retratados apenas 3 são mulheres e só uma delas, Susana Santos Silva, é instrumentista. Nuno Catarino, um dos autores, arrisca uma explicação: “Há poucos discos de mulheres, poucas mulheres instrumentistas, mas depois vamos a ver porquê… se calhar ainda não há tantas mulheres nas escolas. E porque é que não há? Porque ainda há preconceito”. No artigo “Elxs andam aí” publicado em Rimas e Batidas, igualmente focado na identificação de uma nova geração, Rui Eduardo Paes destacava Sofia Queiroz Orê-Ibir, “tanto quanto sabemos a única mulher que em Portugal toca contrabaixo nos circuitos do jazz criativo e da música improvisada”. Em entrevista, o teclista Tom Maciel, um dos membros do novíssimo trio Cíntia, distinguidos recentemente com o prémio Cena Jovem da revista Jazz.pt, não oferece um retrato muito lisonjeiro do circuito académico lisboeta: “A minha impressão sobre a pluralidade na academia é péssima. E podemos ir mais longe. Pessoas trans não existem. Há zero representatividade. Nunca vi na Escola Superior de Música de Lisboa. Pessoas negras, sim. Há dois anos vieram alguns alunos que eram dos PALOP. Quando eles entraram, lembro-me de ter perguntado aos meus colegas, ‘nossa, como é que isso não aconteceu há mais tempo?’ Porque antes disso, praticamente não existiam pessoas negras na ESML. Era muito raro”.

Algures entre a prática mais tradicional e os disruptivos exercícios mais livres e vanguardistas tem surgido no último par de anos uma nova geração que beneficiando da formação académica clássica – obtida entre as escolas superiores e a “incubadora” que existe no HCP – não teme, no entanto, descartar dogmas enquanto ensaia aproximações a novas linguagens musicais, do hip hop à electrónica e ao rock mais experimental. Enquadram-se aí jovens bandas como os já mencionados Cíntia, mas também os Yakuza ou Mazarin que em Lisboa têm protagonizado apresentações em clubes como o Lux, Musicbox ou Núcleo A70, normalmente mais arredados do circuito jazz mais convencional. São grupos como estes que estão a escrever os próximos capítulos do continuum jazz de Lisboa. E tudo acontece num contexto muito pouco apoiado em termos institucionais. Pedro Costa alerta: “Temos um orçamento para as artes perfeitamente residual e ainda agora nesta última campanha eleitoral, tal como em todas as outras no passado, não se ouviu uma palavra sequer sobre a Cultura. Nenhum tipo de programa ou visão progressiva sobre este assunto. É muito triste que assim seja”, lamenta o editor. Rodrigo Amado concorda e defende que “a luta continua”: “Falta ainda dar o passo seguinte – um reconhecimento há muito devido pelas grandes instituições que continuam a tratar a cena nacional como uma cena menor, amadora, numa relação que se pressente muitas vezes como ‘funcional’ ou ‘necessária’ e não privilegiada”. E no entanto, a cena de jazz de Lisboa move-se. Em direcção ao mar e ao futuro.


Foto por Inês Abreu

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