LP / CD / Digital

Jahari Massamba Unit

Pardon My French

Madlib Invazion / 2020

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 01/12/2020

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Madlib é um fantasista, um conjurador que sempre pintou, com o seu sampler, os mais arrebatadores retratos de figuras e colectivos que são lendários apenas na sua imaginação: a Joe McDuphrey Experience, Kamala Walker and the Soul Tribe, Kay Henderson, Monk Hughes & The Outer Realm, The Eddie Prince Fusion Band, Yesterdays New Quintet, The Jazzistics ou, entre tantos outros, o meu favorito, The Last Electro-Acoustic Space Jazz & Percussion Ensemble. Jazz de ficção em estado puro. O seu primeiro “ensemble”, o já citado Yesterdays New Quintet que se estreou há quase 20 anos com o fabuloso e ultra-clássico Angles Without Edges, tinha aliás todos os protagonistas bem identificados: Joe McDuphrey, Malik Flavors, Ahmad Miller, Monk Hughes e Otis Jackson, Jr. Destes todos, só um nome é real: é como Otis Jackson, Jr. que Madlib assina os seus cheques.

Acrescente-se a essa incrível galeria de glórias jazz criativamente inventadas a Jahari Massamba Unit, nome que designa a parceria de Madlib com o baterista Karriem Riggins. Riggins é um peso pesado que trabalhou abundantemente com lendas como Betty Carter, Roy Hargrove e Ray Brown, que integra o trio August Greene com Common e Robert Glasper e que fez parte da pioneira Detroit Experiment, “banda” que reunia nativos da Motor Town como Carl Craig, Bennie Maupin, Marcus Belgrave, Geri Allen ou Francisco Mora Catlett.

A Jahari Massamba Unit, nome que nos remete para os colectivos free jazz que nos anos 60 e 70 do século passado cruzavam activismo político, orgulho afro e vontade declarada de implodir regras musicais estabelecidas (conferir, por exemplo, o trabalho do Ensemble Al Salaam, da Pan-Afrikan Peoples Arkestra ou o Artistic Heritage Ensemble de Philip Cohran), antecipou o seu álbum de “estreia” com três participações em projectos jazz de Madlib: “Umoja (Unity)” foi o tema com que contribuíram para a falsa antologia Yesterdays Universe lançada em 2007 e que contava com a “colaboração” de vários dos nomes inventados citados acima; “Pretty Eyes” e “Wonderin’/Nightime” foram os dois títulos com que marcaram presença noutra antologia, High Jazz, que Madlib lançou no âmbito da série Medicine Show, em 2010. Uma década depois, eis que esses exploratórios exercícios rendem o primeiro álbum desta “unidade”: Pardon My French tem créditos de produção repartidos por Madlib e Karriem Riggins, com o primeiro a responsabilizar-se pelos “instrumentos” e o segundo a assumir a bateria.

Escutando o álbum, percebe-se que Madlib efectuou um incrível trabalho de corte e costura, cruzando diferentes sopros, teclados e cordas como quem entrelaça os fios de uma tapeçaria, entregando depois esse seu trabalho a Riggins que sobre ele dispôs o seu ultra elegante baterismo. O pulso do nativo de Detroit que conta 45 anos denota uma ampla experiência, mas também evidencia o generoso espírito de aventura que cedo o levou a explorar outro tipo de terrenos, nomeadamente o hip hop (Riggins desenvolveu uma forte amizade com o seu conterrâneo J Dilla, mestre que conheceu em 1996 e de quem se manteve próximo até ao seu desaparecimento, uma década mais tarde). Temos, portanto, um produtor hip hop que há muito se acercou do jazz e um músico de jazz que cedo resolveu aproximar-se do hip hop. Esta união criativa faz por isso mesmo pleno sentido.



Dedicado colecionador, Madlib é um verdadeiro estudioso da memória jazz, conhecendo-lhe as diferentes nuances, desde a expansiva inventividade cromática do be bop à libertária fuga das normas professada pelo free jazz, passando pelos militantes estudos pan-africanos que sublinharam a aguda consciência política que o jazz desenvolveu no período do Civil Rights Movement e pelos eléctricos e electrónicos gestos de fusão com outras linguagens que abriram caminho para os tops de vendas. E toda essa vasta informação é aqui aplicada, com Pardon My French a cruzar múltiplos terrenos jazzísticos, mas mantendo sempre uma lúdica dimensão própria de quem em pleno laboratório percebe que não há limites ditados por uma eventual formação fixa e que todos os sons escutados na sua vasta biblioteca são convocáveis para esta sessão, assim haja espaço disponível no sampler.

De ressalvar também o saudável humor expresso nos títulos das faixas, todos em francês, que referenciam sobretudo vinhos (Madlib é um verdadeiro connoisseur) e que de alguma forma subvertem a eventual seriedade que a complexidade musical aqui explorada pudesse sugerir: impossível não sorrir quando se percebe que um tema de pulso frenético, com teclados staccato e sopros que devem ter sido subtraídos a alguma gravação de carácter “étnico” (pense-se nas recolhas da Ocora) tem por título “Trou du Coul (Ode Au Sommelier Arrogant)” ou que outro que alia cadência funky na bateria a um baixo de formas avultadas e a colorações vibrantes de sopros e piano eléctrico com expressivo solo de flauta a coroar o arranjo é baptizado com as palavras “Merde (Basse-cour)”.

Finalmente, importa deixar claro que tendo em conta a múltipla vibração presente do jazz e a sua consequente atenção mediática este disco poderia soar a ouvidos mais desavisados como um exercício de oportunismo, uma tentativa de apanhar um comboio que está em marcha e a ganhar crescente velocidade, mas, como já explicado, Madlib há pelo menos duas décadas que expressa de forma tão efusiva quanto esotérica a sua paixão pelo jazz mais exploratório e Riggins, por outro lado, não é propriamente um músico de jazz veterano que descobriu agora que outros bateristas bem mais jovens como Makaya McCraven ou Kassa Overall expandiram as suas possibilidades criativas ao abraçarem as suas MPCs com o mesmo vigor com que aprenderam a dominar os seus kits.

Pardon My French é, portanto, mais um delirante, excitante e criativo contributo para essa tal vibração presente do jazz, um espantoso trabalho de dois artistas que recusam limites para a sua expressividade e que aqui deixam uma importante vénia a uma cultura que conhecem e respeitam como poucos. Afinal de contas, o álbum até fecha com uma sentida “Hommage À La Vielle Garde”. Ou seja, não é a subversão, antes o encaixe que aqui se busca. E a Jahari Massamba Unit aí está, nesse vastíssimo terreno que se estende entre Sun Ra e J Dilla, entre a Strata East e a Stones Throw, entre a História e o sonho. Haverá lá melhor lugar?….


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