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Publicado a: 25/08/2017

Festival FORTE – Dia 1: O culto da batida

Publicado a: 25/08/2017

[TEXTO] Diogo Pereira [FOTOS] Direitos Reservados

A vila de Montemor-o-Velho, em Coimbra, parece um dos sítios menos adequados para organizar um festival de música electrónica: vila antiga, pequena e rural, de vivendas e casas de dois andares com antenas parabólicas nos telhados, velhinhas a andar na rua, vacas a pastar, grandes campos de arrozais e uma pródiga população de garças-reais. Mas possui um tesouro: um grande castelo medieval “em posição dominante sobre a vila”, para citar o artigo da Wikipédia portuguesa. E foi lá que se escolheu realizar o FORTE, que tem este ano a sua quarta edição.

Pensando melhor, é perfeito: espaçoso, isolado e com óptimas condições acústicas. A música sai de dois grandes conjuntos de colunas, bate nas muralhas e chega perfeita aos ouvidos dos ravers.

Embora durante séculos tenha servido para proteger as populações locais de invasões estrangeiras, é agora, paradoxalmente, um local de paz e convívio que acolhe melómanos de todo o mundo, sobretudo europeus.

O FORTE é um festival de nicho, para amantes hardcore de techno, e, no entanto, o público é surpreendentemente heterogéneo: há de tudo um pouco, desde portugueses de pele branca e barba preta a muitos estrangeiros (muitos espanhóis e alguns franceses e ingleses), mulheres com purpurina na cara, alguns Rastafaris e presenças mais pitorescas como aquele homem que tem uma máscara cirúrgica a tapar o rosto, um homossexual com boné de marinheiro e uma corrente ao pescoço, gajos em tronco nu e senhores mais velhos que não sabem bem ao que vieram. E os homens barbudos, presença habitual em qualquer festival de música português que se preze. Em suma, nada que já não se tenha visto antes.

Foi pelo meio destas pessoas que me dirigi à entrada, não um portão enorme com um fosso mas uma de duas portas pequenas, desta vez guardadas não por arqueiros e infantaria, mas sim seguranças de colete laranja fluorescente não menos zelosos.

 


The doors are open, opening performance in a bit #FORTEwego #festivalforte2017

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O FORTE tem coisas em comum com tantos outros festivais: as bancadas de comes e bebes (muito mais bebes do que comes, como habitualmente), as zonas lounge com puffs patrocinadas por uma marca de espíritos, os seguranças-estátua que permanecem imóveis e estoicos junto a caixotes do lixo, as casas de banho portáteis com as sanitas a transbordar de urina, o chão de terra batida junto ao palco principal e o uso de drogas à vista de todos (o consumo de uma das quais, do grupo mind-expanding, deve ter levado, certamente, alguém a pensar, há quatro anos, “e se houvesse uma rave dentro de um castelo?”).

Mas é a localização que impressiona: todos os concertos do FORTE decorrem num castelo medieval, numa arena cercada por duas longas muralhas e ladeada de dois altos torreões. Antes da arena, estrategicamente posicionado, há um breve lance de escadas que separa quem quer ver de quem quer dançar.

Tendo aproveitado bem o conceito de um festival de música dentro de um castelo, a organização usufruiu da dicotomia passado/presente (ou, melhor dizendo, passado/futuro) não apenas na modernidade da música, mas fazendo uso dos espaços antigos dentro do castelo, nomeadamente empregando o conceito pós-moderno de arte generativa para decorar os jardins do castelo com um jogo de vinte pedras brancas quadradas iluminadas aleatoriamente por um strobe suspenso, e a igreja com um monólito colorido em vez de um altar.

É neste ambiente de paradoxo temporal que o FORTE abre as suas portas a milhares de fãs de música electrónica que podem viajar numa máquina do tempo e ouvir os seus DJs e produtores favoritos a passar techno e acid junto a muralhas construídas na Idade Média, assim respondendo à pergunta “E se Nathan Fake tocasse num castelo medieval?”.

O efeito é notório e é frequente, a meio dos concertos, darmos por nós a desviar o nosso olhar do palco para as ameias e ver uma rapariga nova a dançar onde 500 anos antes um arqueiro estaria de sentinela.

Os ritmos chillout de sabor a Médio Oriente que se ouviram no início da noite, ao entrar no castelo, e que foram servindo de interlúdio entre os concertos, mal faziam prever o que se iria ouvir ao longo de dez intensas horas.

A noite começou com o avant-garde punk de Lydia Lunch, com voz e atitude algures entre Tom Waits, Courtney Love e Pamela Adlon (de Californication e Louie). Sentada numa poltrona, não cantou, mas ofereceu-nos um spoken word bem intenso e emotivo, fustigando-nos com letras do tipo “I don’t care if you love me, I’m not afraid”, “I’m feeling murderous again” e “night sickness rushes in”, por cima de camadas de drone industriais e ominosos de Zahra Mani (que por vezes se assemelhavam ao som de sirenes) e do violino desafinado e atonal de Mia Zabelka.

Projectadas na tela atrás, imagens de troncos de madeira cortados aos pedaços, bem como uma espécie de visita guiada a um edifício em ruínas completamente esquálido, que parecia uma mistura entre um behind the scenes do Session 9 e o vídeo de “What’s He Building?” de Tom Waits. E, lá mais para o fim, uma cara desfigurada suspeitamente parecida ao rosto deformado de Aphex Twin em “Come to Daddy”.

 



Talvez isto seja o que acontece quando o cinema de terror e a estética punk se intersectam.

De resto, a projecção de vídeo desempenhou um papel fundamental ao longo da noite, de intensificação da beleza e das sensações, desde o arco-íris de Byetone até às imagens microscópicas de protozoários de Apart.

Todavia, o experimentalismo não se ouviu mais ao longo da noite, que foi inteiramente dedicada à música de dança.

Finda esta introdução à parte, entrou o primeiro DJ da noite, Byetone. Após alguns minutos de um único tom sinusoidal e imagens de estática no ecrã atrás, entra um kick potentíssimo acompanhado de um baixo de levantar poeira que nunca perdeu força até ao fim, formando o alicerce de um set de techno minimal concentrado em batidas esqueléticas com toques industriais sinistros. A meio do set, bastou os holofotes azuis iluminarem o público, e o fundador da Raster-Noton já o tinha na mão, aquecendo-o para o resto da noite.

Pausa para uma visita à igreja, no interior da qual um caminho de pedaços de vidro vai dar a um monólito de polígonos coloridos em vez de um altar. Aqui, o culto a Deus foi substituído pela arte e criação humanas. Agrada-me a ideia.

Seguiu-se Apart, a tocar para uma plateia já cheia e aquecida. Menos agressivo, começou o seu set com texturas mais ambientais e melódicas, acrescentando um toque onírico e etéreo ao seu set, sem nunca descurar a batida e o poder do kick a martelar incessantemente os nossos ouvidos. Um set muito viciante, enquanto atrás pinceladas de verde e laranja varriam a tela.

Aos poucos foi despindo a sua música até ficar só a batida, cada vez mais agressiva e insistente. Até que evocou o clássico “Didgeridoo” de Aphex Twin, a provar que Richard D. James ainda continua e nunca deixará de ser relevante.

A certa altura, os holofotes ficaram todos verdes enquanto na tela tocava um loop de um qualquer organismo unicelular tentando deslocar-se. Mais tarde. uma fotografia de um canal holandês ladeado de casas que surgiam em todas as direcções no ecrã num padrão Rorschach, e ainda vastos e infinitos tectos cobertos de estalactites.

De notar que neste momento já havia uma mulher ao colo de alguém na fila da frente.

Seguimos para Nathan Fake, que veio apresentar o seu último álbum, Providence, um dos momentos altos da noite. O primeiro a introduzir verdadeiramente melodia além da batida, disparou riffs, arpeggios e ondas de dente de serra do seu Korg Prophecy (incluindo o magnífico “PROVIDENCE”), que fariam Oneohtrix Point Never orgulhoso. E ao fazê-lo levou-nos ao céu estrelado projectado atrás de si.

A meio do concerto, Prurient juntou-se a ele para tocar “DEGREELESSNESS”, com os seus murmúrios indiscerníveis e o seu riff irresistível.

Destaque ainda para os visuais de Matt Bateman, que incluíram nuvens fumarentas e esverdeadas cor de absinto, um belíssimo jogo de raios laser cor de rosa, e um wormhole bem retro.

Um dos melhores, mais melódicos e mais agradáveis sets da noite, a provar porque é que o techno britânico está vivo e recomenda-se.

Ainda na Grã-Bretanha, seguimos para Clark, sem dúvida o melhor concerto da noite. Um espectáculo assoberbante de luz, cor, som e (porque não?) dança contemporânea.

Musicalmente, o produtor inglês aproximou-se do electro inicialmente, com batidas mais dançáveis. No entanto, não esqueceu os riffs analógicos e hipnóticos a que nos habituou.

Na frente do palco, duas dançarinas vestidas de branco e rosto tapado à Peder Mannefelt à frente de enormes colunas de luz que alternavam entre branco incandescente e azul cobalto, numa coreografia muito bem sincronizada que misturou body combat com breakdance.

E eis que vindos do nada surgem “Butterfly Prowler” e “Peak Magnetic”, que puseram toda a gente a dançar, até este repórter de pés de chumbo que não resistiu.

Ainda houve tempo para nostalgia, quando tocou os clássicos “Unfurla” e “Beacon” do seu álbum homónimo. Riffs poderosíssimos e inesquecíveis, com os focos brancos a apontar para o céu e para a esperança no futuro.

Mas Clark ainda só tinha começado.

 


Clark and his dancers investing the stage of Forte #festivalforte2017

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Foi então que as bailarinas regressaram a palco, desta vez completamente envoltas em longos véus negros como borboletas batendo as asas.

Os ritmos abrandaram um pouco com “Un U.K.” e uma coreografia menos intensa, e quando tudo parecia ter terminado aparece o coro infantil de “Catastrophe Anthem”, seguido imediatamente pelo grime que trouxe os bairros suburbanos de Londres ao centro de Portugal.

O concerto não podia ter tido um melhor final, com duas raparigas na frente do público, erguidas acima das nossas cabeças, visíveis para todos nós, abraçadas, a dançarem juntas no ar. Lindo.

Varg trouxe-nos a sua idiossincrática mistura de vozes de trap e spoken word feminino filtradas com drones industriais, baixos profundos e batidas frias e sinistras. Dir-se-ia uma versão escandinava de Burial, mas muito mais agressiva. Um techno violento e austero que afastou alguns fãs da pista.

Kangding Ray ofereceu-nos, a par de visuais sofisticados a três dimensões, algumas das batidas mais intensas da noite, misturadas com ruídos metálicos estilo Autechre. Mais uma vez a electrónica britânica a ser recordada e homenageada.

A manhã veio nublada, mas a multidão não mostrou sinais de dispersar.

Já o sol espreitava por entre as ameias quando Blawan entrou em palco e tomou conta dos decks, terminando a primeira noite com mais um set de batidas pesadas e inclementes a ressoar pelas muralhas, naquele que foi porventura o set mais minimal e agreste de todos, mantendo-se intenso do princípio ao fim, a lembrar o hardcore techno de Ken Ishii. Nada mais a não ser a batida e, para quem estava atento, um sample assaz ténue do clássico de Kraftwerk “Boing Boom Tschak”.

Talvez não tenha sido a melhor maneira de nos enviar a todos para a cama (fica a sugestão de experimentar um closing set mais chillout/ambiente para o ano) mas foi o fim apropriado para uma noite em que a batida foi Deus.

Os melhores momentos foram, sem dúvida, a electrónica britânica luxuriante de Clark e Nathan Fake e o pior foi o experimentalismo deslocado de Lydia Lunch que inaugurou uma noite inteiramente dedicada à música de dança.

Houve espaço para dançar e respirar, ar puro, um cenário de sonho, visuais inebriantes, e o melhor do techno mundial. Já para não falar de um nascer do sol lindíssimo. Que mais pode querer um festivaleiro? E hoje à noite há mais.

 


Varg stepping in #festivalforte2017 #live

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