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RuiMiguelAbreu

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“To be young, gifted and black”

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados

To be young, gifted and black,
Oh what a lovely precious dream
To be young, gifted and black,
Open your heart to what I mean

In the whole world you know
There are billion boys and girls
Who are young, gifted and black,
And that’s a fact!

Young, gifted and black
We must begin to tell our young
There’s a world waiting for you
This is a quest that’s just begun

When you feel really low
Yeah, there’s a great truth you should know
When you’re young, gifted and black
Your soul’s intact

Young, gifted and black
How I long to know the truth
There are times when I look back
And I am haunted by my youth

Oh but my joy of today
Is that we can all be proud to say
To be young, gifted and black
Is where it’s at

Quando Nina Simone deu estas palavras a uma incrível melodia de Weldon Irvine (e, malta hip hop, chequem esta vénia de Madlib ao grande mestre) o mundo era um lugar incrivelmente diferente, mas também, e por estranho que pareça, paradoxalmente semelhante: a América encontrava-se envolvida numa guerra (check!), havia violência nas ruas (double check!) e as pessoas sentiam a necessidade de vir para fora das suas casas e das suas igrejas e das suas escolas reclamar por direitos que sabiam estarem a ser-lhes negados (triple check!!!). Nesse tempo, e como ontem aflorei na minha crónica na revista Blitz, a música negra – a música POP negra – seguiu à risca o incitamento proclamado por James Brown logo em 1969 e juntou a sua voz ao coro do Movimento dos Direitos Civis para dizer bem alto que se podia ter orgulho em ser negro. E de repente, todos aqueles simpáticos cantores admirados pelas filhas da América branca, pessoas de tez mais escura, certo, mas bem vestidas e bem comportadas, que davam voz a doces e inocentes canções românticas, todos eles substituiram as vestes culturalmente anódinas por novas roupas de cores garridas, que evocavam África, deixaram crescer os afros e assumiram, nos palcos e nos grandes ecrãs, uma poderosa sexualidade que o establishment encarou como séria ameaça. Foi assim a década de 70.

Quatro décadas mais tarde, é espantoso como a América ainda acusa o toque e se ergue contra o que vê como “manifestações racistas” – as performances e os vídeos de estrelas como Beyoncé ou Kendrick Lamar – como se umas tréguas quaisquer tivessem sido interrompidas: “nós permitimos que tenham sucesso, até contribuímos de forma decisiva para isso, se vocês não andarem permanentemente a lembrar-nos que são negros, ok?”. Este discurso de racismo invertido – que se solta das gargantas de comentadores televisivos da grande América republicana – apoia-se numa retórica incompreensível que afirma que o reclamar de uma identidade é um ataque a todos os que têm uma identidade diferente.

 

 

A música foi uma das grandes alavancas das mudanças que ocorreram na sociedade americana nestas últimas quatro décadas: os Jackson 5 meteram crianças brancas e negras a dançar ao som de um mesmo ritmo, o funk e o disco celebraram a diferença, e o hip hop levou as “inner cities” até aos subúrbios. Obama nunca teria sido eleito se a dada altura, no arranque dos anos 90, o hip hop não tivesse substituído o country como força dominadora da indústria musical norte-americana. Taylor Swift, pode-se até argumentar isso, é quase uma resposta dessa América country às “inner cities” que coroaram Bey. Há dez anos ela soava assim… Agora faz isto!

O que estrelas como Beyoncé e Kendrick Lamar fizeram agora foi agarrar oportunidades de amplificarem as suas ideias, de afirmarem que querem ser agentes activos de uma outra força de mudança a que a América precisa de se submeter. Há relatos constantes de violência policial desproporcionada contra jovens negros, a América ergue-se sob o signo #BlackLivesMatter como há décadas se pôs em marcha para reclamar direitos e conquistar igualdade, e há uma ameaça séria no horizonte com o discurso populista de Donald Trump a impôr reais riscos de retrocesso na longa caminhada em direcção a uma harmonia racial que a América tem vindo a fazer há décadas. As vozes que descrevem como racistas as performances de Bey ou K.Dot são ecos desse perigoso pensamento que tem em Trump uma caricatura perigosamente eficaz.

“Formation” é o discurso de Bey à sua América negra, um recado claro de que ela não se esqueceu de onde vem e por quem fala. Sim, ela é uma marca (e as frases slogan da sua nova canção não tardaram a adornar uma linha de produtos que se pode adquirir no seu site oficial – a revolução também rende “merchandising”), funciona inserida num mercado, mas também é uma voz e uma consciência e um rosto e uma identidade. Sim, América, Beyoncé é negra. E Kendrick também. O sucesso na música até pode ter tirado o homem de Compton, mas não tirou Compton do homem. A apresentação de Kendrick Lamar nos Grammys foi explosiva, evocou as correntes do sistema prisional que encarcera estatisticamente muitos mais homens negros do que brancos, evocou as fogueiras com que o Ku Klux Klan tentou queimar o progresso social na América e relembrou que a identidade diferenciadora de todos estes jovens que vêm de Compton e de todas as outras “inner cities” para onde os seus antepassados, descendentes de escravos, imigraram é, afinal de contas, África. E curiosamente, a América branca e recalcada vê este “setting history straight”, este relembrar de um passado que continua vivo de cada vez que um jovem negro inocente é encarcerado ou atingido mortalmente nas ruas, como uma afronta e grita “racismo”. É apenas gente jovem, dotada e negra a cantar pela mudança. Esse impulso rendeu música brilhante nos anos 60 e 70. Está a render música brilhante de novo no presente. Não a escutar será um erro para as gerações futuras.

 

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