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Publicado a: 04/05/2017

This is gqom: os beats pesados de Durban

Publicado a: 04/05/2017

[REPORTAGEM E FOTOS] Ricardo Miguel Vieira

“Estava longe de imaginar que a nossa música também tocava fora de Durban”, diz DJ LAG, o rosto iluminado por um sorriso deslumbrado. O produtor sul-africano de 21 anos refere-se ao dia em que foi surpreendido por uma mensagem no Facebook de um DJ sediado em Londres pouco depois deste descobrir uma sonoridade que dava pelo nome de gqom. Corria o mês de Janeiro de 2015 e para o jovem Lwazi Asanda Gwala permanece como um dos momentos mais decisivos da sua vida. “Pensava que estava a criar música só para mim e os meus amigos, mas aquela mensagem fez-me perceber que o que estava a fazer era realmente importante. Então restava-me continuar a puxar por mim e produzir mais e mais faixas.”

Recém-chegado de um par de actuações “incríveis” para novos públicos em Berlim e no Musicbox, em Lisboa, LAG encontra-se agora sentado num salão sombrio e vazio do Stour Space, um armazém transformado em espaço de divulgação cultural e artística na comunidade de Hackney Wick, em Londres. Esta noite é ele o cabeça-de-cartaz no showcase da Gqom Oh!, a editora que o representa, em mais uma noite Clock Strikes 13, uma plataforma que se dedica à divulgação de sonoridades emergente através de uma série de eventos ao vivo espalhados por Londres ao longo de dois meses. A Príncipe Discos, por exemplo, também se faz representar no alinhamento da presente edição, tal como aconteceu no ano passado. Contudo, para LAG, uma digressão pela Europa estava distante dos seus sonhos quando começou a dar os primeiros passos nas batidas sincopadas do gqom. E a verdade é que não podia estar mais entusiasmado.

É fácil compreender este fascínio contagiante de LAG agora que embarcou na sua primeira digressão internacional. Até há bem pouco tempo, gqom (que se pode pronunciar ‘gome’) estava confinado aos guetos de Durban, o seu território de origem. Os circuitos mais comerciais e da noite sul-africana repeliam continuamente a sua energia crua e apocalíptica, considerando-a demasiado “afavelada”, o que barrou a entrada dos seus precursores em importantes rádios e pistas-de-dança do país. A alternativa passou por ecoar a percussão e ritmos magnetisantes do gqom em pequenos clubes locais, nos sistemas de som caseiros e em festas de bairro nos arredores da cidade portuária mais importante da África do Sul. No entanto, o alcance do estilo mudou consideravelmente nos últimos tempos e além de já se escutar um pouco por todo o lado, também passou a atrair um olhar diferente dos promotores sul-africanos. “Gqom está cada vez maior”, assegura LAG. “As pessoas estão finalmente a reconhecer este som. Nomes importantes como Big Nuz e Babes Wodumo têm demonstrado interesse na nossa música e há apresentadores de rádio que já vêem no estilo o futuro [da música electrónica sul-africana].”

 



“Só quero matar na pista-de-dança e dar ao público algo que jamais irão esquecer” – DJ LAG


Em Durban, LAG é conhecido por rei do gqom. É um dos pioneiros do estilo, embora tenha iniciado a carreira enquanto produtor de hip-hop sem aspirações a tornar-se DJ. Tudo mudou pouco depois de escutar os primeiros bangers de Naked Boyz, colectivo reconhecido como um dos fundadores de gqom. “Imaginei-me logo a experimentar algo do género, ainda que não fosse gqom propriamente dito. Era mais tribal e misturava a vibe do hip-hop com o house. Mas comecei a produzir só por desporto, depois oferecia os beats aos meus amigos que faziam parte de crews de dança. Eles começaram a passar os sons nos clubes locais e eu apercebi-me que toda a gente adorava o que eu estava a fazer. Então continuei a produzir e a música acabou por se espalhar pela cidade.”

De facto, o boom do gqom em Durban é, no mínimo, uma história curiosa. A cidade acolhe uma notória cultura de táxis, um negócio que atrai milhares de profissionais e que gera uma concorrência feroz. Conduzir um táxi de sucesso sugere despender consideráveis somas a modificar os carros, tornando-os o mais exclusivo e único possível. Carrinhas com pinturas feitas à mão e jantes prateadas gordas são iscos perfeitos para atrair clientes, mas dificilmente batem o negócio do taxista que transporta no seu escritório diário um poderoso soundsystem. Quando, a certa altura, gqom começou a bater nos clubes das regiões central e sul de Durban, os taxistas, atentos às tendências para bem das suas actividades, carregaram CDs e pen drives com as faixas que encontravam espalhadas na internet e o género acabou por se tornar na banda sonora obrigatória de qualquer condutor que se preze. LAG conta que esse factor foi decisivo para que muitos dos taxistas que percorrem as avenidas e marginais da cidade aumentassem as suas quotas de passageiros, ao mesmo tempo que plantava as sementes que permitiram a expansão de gqom por toda a cidade de Durban.

 


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“O que eles produzem é absolutamente futurístico, por isso senti que tinha de mostrar à cena electrónica europeia o que se está a passar em Durban” – Nan Kolè


[UMA FUSÃO DE GÉNEROS E ATITUDES]

Enquanto LAG invoca as origens do gqom, Tash_LC, DJ da cena underground e tropical do sul de Londres, abre as hostes na pista de dança do Stour Space com uma palete de afrohouse, afrobeat e até batida dos guetos de Lisboa, numa irresistível escolha de ritmos que se espalha pelo armazém. Mais tarde será a electrónica perfurante influenciada por grime e ghetto house de Moleskin, produtor e co-fundador da editora londrina Goon Club Allstars, a assumir as rédeas da noite. Torna-se então evidente que a escolha dos convidados não é um ocaso. Tash_LC e Moleskin coincidem com uma fusão de composições que não são estranhas à estética tribal, assombrosa e minimal do gqom, cuja sonoridade broken house é pontilhada por kwaito, grime, UK funky e hip-hop.

“Gqom é inacreditável, é algo completamente diferente”, descreve Nan Kolè, fundador da editora Gqom Oh!. Proveniente de Roma, mas a residir em Londres, Kolè foi o DJ que contactou LAG pelas redes sociais depois de um dia ter tropeçado na misteriosa hashtag #gqom, conduzindo-o a toda uma nova realidade. “Foi tão estranho”, recorda mostrando orgulho. “Quando o dubstep e o UK funky desapareceram, os DJs migraram para o house e eu fiquei faminto por algo novo e distinto. De certo modo estava a sentir-me musicalmente perdido. Quando esta música veio ter comigo no Facebook, a minha reacção imediata foi, ‘que cena é esta’. Parecia grime e techno e todos os géneros fundidos num único tipo de som.”

E nessa primeira escuta, quais foram os elementos que realmente marcaram? “Uma coisa que achei fantástica foi a forma como arranjavam as faixas. Era muito hipnótico, em crescendo, cada som lentamente a solidificar, e eu senti essa energia e atmosfera negras.” E, na visão de um estrangeiro, que paralelos encontra entre a cenas underground de Londres e Durban? “Encontro algo comum entre gqom e grime. Em ambos os casos, os artistas são jovens provenientes de contextos sociais específicos que sentem que ninguém quer saber deles. E o que fizeram eles com esse sentimento? Como não tinham interesses em particular, começaram a criar música com os amigos para se expressarem. É por aqui que estas scenes têm algo que as relaciona, uma espécie de conexão humana, mesmo que em extremos opostos do globo.”

Depois das primeiras escutas aprofundadas, Kolè engendrou a editora Gqom Oh! para colaborar com muitos dos produtores. “Como estavam até certo ponto isolados, o que motivou criar a editora inteiramente dedicada à música deles foi a necessidade de os tornar internacionalmente conhecidos. O que eles produzem é absolutamente futurístico, por isso senti que tinha de mostrar à cena electrónica europeia o que se está a passar em Durban.” Porém, ainda que circunscritos aos seus guetos, os produtores contactados por Kolè começaram por demonstrar cepticismo em relação aos seus projectos. “Eles não confiavam de todo em mim. Como o gqom era algo muito local, muitos pensavam que eu estava a gozar sobre lançar a música deles, que eu não era for real. Lembro-me particularmente de um produtor do colectivo Forgotten Souls com quem conversei durante semanas a fio. As respostas dele eram sempre curtas, meio a desprezar o que lhe estava a dizer. Mas um dia ele começou a fazer perguntas – se eu passava gqom em Roma, se sabia como se dançava. Aí senti que as coisas estava finalmente a mudar e que iam acontecer.”

 



“Para eles, produzir é como escapar a uma espécie de gaiola social existencial, acabam por criar um mundo que realmente gostam” – Nan Kolè


Gqom Oh! Sampler, EP de três faixas editado a meio de 2015, foi o primeiro lançamento da editora. Contando com produções de Citizen Boy e dos colectivos Mafia Boyz e Cruel Boyz, a compilação foi uma primeira amostra dos projectos futuros da Gqom Oh!. No início do ano seguinte, o selo editou o LP duplo Gqom Oh! The Sound of Durban Vol. 1, um generoso exemplar das criações dos mais dotados produtores de Durban, entre eles Dominowe, Emo Kid, Formation Boyz, Julz Da DeeJay e Citizen Boy. Mas reunir todas as faixas que compõem ambas as compilações não foi uma tarefa linear já que muitas das gravações originais – algumas com várias anos – já não existiam. “Tivemos de criar masters a partir de versões mp3. Passei dias e dias com um amigo no estúdio à procura das melhores frequências para puxar pelos beats.”

Em todo o caso, conta Kolè, o processo de masterização foi incomparável à missão angustiante de escolher as faixas tal não era o rio de produções em plataformas como kasimp3.co.za, Facebook e grupos WhatsApp, ferramentas digitas que se assumiram, desde a infância do estilo, como primárias à disseminação de gqom, surgindo muito antes do género se escutar em clubes locais e táxis kitados. “Havia tantas faixas espalhadas por aí que tive de confiar nos meus instintos, pegar nos sons que tinham um apelo mais direccionado às pistas-de-dança europeias e usar a minha experiência como DJ para imaginar o que funcionaria. A escolha inicial para o Volume 1 tinha 35 faixas e depois foi reduzido a 12. acabar por ter de passar a 12.” O duplo LP, tal como o EP de estreia da editora, está há muito esgotado.

Kolè, a determinada altura, embarcou numa viagem até Durban para conhecer os produtores com quem vinha a construir uma relação. O périplo aconteceu o ano passado e permitiu ao DJ italiano reflectir sobre o processo de produção das faixas que caem no espectro do gqom. “Na verdade é tudo muito intuitivo e natural, conseguem criar um banger como deve ser um poucos minutos. Eles não pensam muito sobre o assunto, nem têm muito samples, utilizam apenas o que têm à mão. Para eles, produzir é como escapar a uma espécie de gaiola social existencial. Eles acabam por criar um mundo que realmente gostam. A possibilidade de dançar é também um dos motivos pelo qual fazem gqom. Dançar está muito enraizado na cultura de Durban, é quase como respirar. É por isso que podes andar por um gueto e ver uma família em casa a escutar gqom. Fascinam-me a realidade e histórias deles.” Mais tarde, a jornada originou um documentário e uma mixtape colaborativos com a radio de Roma Crudo Volta.

 


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“Comecei a produzir só por desporto, depois oferecia os beats aos meus amigos” – DJ LAG


[WOZA WOZA]

Já Moleskin transitava entre ritmos densos e intricados quando decidi seguir a multidão rumo à pista-de-dança. Por lá, dezenas de pessoas vão tentando progredir com os acontecimentos dançando no seu próprio tempo. Com os sintetizadores a rasgar os speakers, vislumbro LAG sentando num sofá negro, telemóvel a iluminar-lhe uma expressão pensativa. Indago se estará a ler os comentários dos seus conterrâneos nas redes sociais, e se eles estão orgulhosos da sua primeira tour na Europa e do seu sucesso. “Há muito hype nesta altura em Durban”, diz Kolè. “Temos publicado fotografias nas redes sociais e há muito boa vibe. Não há muitos DJs sul-africanos com possibilidade de viajar além-fronteiras. Isto é como ver um sonho concretizar-se. É importante, na realidade, para os sul africanos observarem este tipo de acontecimentos porque motiva os miúdos nos guetos. É por isso que tenho visto tantas faixas a serem lançadas. Eles estão a produzir, produzir, produzir.” É por aí, por esse encadeamento de produção atrás de produção, que a label Gqom Oh! se mostra pronta para continuar a puxar pelos jovens produtores. “Vamos lançar o primeiro EP a solo do Dominowe muito em breve e também temos algo especial planeado para o LAG. Depois vamos trabalhar no Sounds of Durban Vol. 2, onde iremos introduzir novas variantes em torno do gqom, como sgubhu e tribal. Estamos a tentar apresentar uma visão actual dos estilos de Durban através do sons desta malta.”

Uma ovação faz-se sentir quando o Rei do Gqom sobe à cabine para o seu live set. É um momento genuinamente especial. Pelo meio no seu set, LAG introduz pérolas nunca antes escutadas que serão editadas no seu novo EP a carimbar pela Goon Club Allstars e o público vai respondendo com ‘yeaaahhh’s’, revelando que a multidão conhece gqom e também DJ LAG. Muitos tiram fotografias – seja com máquina fotográfica ou telemóvel. Ocasionalmente, Nan Kolè grita “woza woza” (uma expressão Zulu que se pode interpretar como “vamos a isso”), captando um sorriso sincero do DJ.

Há muito que actuar em Londres faz parte das ambições de DJ LAG. E com o gqom a estender cada vez mais o seu raio de alcance, o jovem produtor e DJ confessa sonhar com um mundo onde reputados artistas internacionais também fazem parte da cena através de colaborações e apoio em geral. Mas na primeira tour internacional, as aspirações do ‘rei’ ainda estão por descobrir. “Só quero matar na pista-de-dança e dar ao público algo que jamais irão esquecer.”

Sigam o trabalho de DJ LAG através do Facebook. O espólio da editora Gqom Oh! está no Bandcamp.

 


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Artigo originalmente publicado em A Nation of Billions. Traduzido e adaptado por Ricardo Miguel Vieira para Rimas e Batidas.

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