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Publicado a: 10/07/2018

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[TEXTO] Rui Miguel Abreu

Beyoncé e Jay-Z são duas das mais intensamente brilhantes estrelas que este planeta já conheceu. Por isso mesmo, qualquer novo gesto editorial por parte de algum deles estará condenado a concentrar atenções, a inspirar peças pensantes, textos analíticos que procurarão — umas vezes em vão, outras nem por isso — descodificar referências, mensagens mais turvas, palavras menos imediatas. Exactamente o que este Everything is Love, lançado de surpresa há algumas semanas, conseguiu, inspirando palavras de alguns dos mais importantes orgãos da imprensa internacional.

Depois de Lemonade4:44 terem, de certa forma, invertido o tradicional equilíbrio de poder entre os sexos — o álbum de 2016 de Beyoncé é uma portentosa declaração de força, de orgulho feminino expresso de cabeça erguida, de capacidade de superação: emocional, certamente, mas muito mais do que isso, um autêntico “basta!” à subserviência no seio do casal e no mais amplo plano social; ao passo que o trabalho de Jay-Z parece, no seu tom confessional, na sua honesta assunção de erros, indicar, de cabeça respeitosamente baixa, que embora no topo como estrela, como homem o seu espaço de evolução era ainda muito largo — o álbum que Jigga e Bey assinam como The Carters é a derradeira peça que faltava no tríptico, a sua declaração de união inabalável, uma exposição ao mundo daquilo que os torna mais fortes.

Tanto Beyoncé como Jay-Z souberam, verdade seja dita, resguardar-se apesar da ampla exposição: Lemonade e 4:44 continham dentro suficiente realidade para eles não se quedarem no plano das meras fantasias artísticas, mas, ao mesmo tempo, nada de tão cru que lhes beliscasse a imagem imaculada que projectam no mundo enquanto casal: “sim, temos problemas, sim estamos a trabalhar para os resolver, não, não precisamos de vos dar todos os detalhes sórdidos. Contentem-se com a ‘Becky do bom cabelo'”, pareciam dizer.

Por isso mesmo, e apesar da tentação em sentido contrário que a edição “inesperada” de Everything is Love possa induzir, será importante perceber que o que o casal “revela” no novo álbum foi, certamente, discutido até à exaustão nos jantares na penthouse de Manhattan e submetido ao escrutínio crítico de uma equipa próxima de especialistas na gestão de perfis de media. Nada de errado nisso. Tudo por aqui será amor, com certeza, mas há outra afirmação mais funda neste trabalho (e nos dois anteriores já por aqui mencionados) do casal Carter: é que Jay e Bey parecem ver na sua posição marital, no espaço que ocupam na sociedade, no mundo empresarial e obviamente no agitado universo musical uma dimensão política. É complicado ser um casal, é complicado gerir negócios, carreiras, mas muito mais quando se tem a cor de pele de Beyoncé e Jay-Z, sugerem eles; muito mais complicado quando o próprio presidente da América não hesita na hora de tweetar sobre o rapper, quando os Grammys ou agências fiscais estatais parecem apostados em não reconhecer o talento ou a seriedade que sancionam mais facilmente a outros artistas e estrelas quando a dose de melanina é diferente.

Concluindo: quando ostentam união, cumplicidade, sensualidade ou riqueza os Carters estão, na verdade, a protagonizar um acto de resistência, a desafiarem o mundo que os quer ver destruídos, como casal ou como portentos pop. Isto é o que rimam em “Nice”: “Patiently waiting for my demise / Cause my success can’t be quantified / If I gave two fucks, two fucks about streaming numbers / Would have put Lemonade up on Spotify / Fuck you (woo) fuck you”, exclama a raínha. Claro, não?

E quanto a Jigga? “Yeah, fuck your subpoenas and your misdemeanors / Was too busy touring out all your arenas / My passport is tatted, it look like it’s active / I play on these planes, y’all catch me in traffic / Y’all drag me in court for that shit, y’all backwards / After all these years of drug trafficking, huh / Time to remind me I’m Black again, huh? / All this talking back, I’m too arrogant, huh? / What would you do, you knew you couldn’t fail / I have no fear of anything, do everything well / I have no fear of jail, I was born in the trap / I have no fear of death, we all born to do that / It’s just life, I’m just nice, tonight I might, raise my price”.

No plano musical, Everything is Love é igualmente espantoso. Com uma complexa equipa de produção que inclui nomes como os de Cool & Dre, El Michels (esse mesmo, do El Michels Affair), Pharrell Williams, Mike Dean, Boi-1da, Vinylz ou Illmind — sempre sob a atenta supervisão dos próprios Carters — e uma ainda mais dilatada equipa de compositores onde se encontram pessoas como James Fauntleroy (habituado a escrever hits para Bruno Mars ou Rihanna), os Migos, Ty Dolla Sign, Nav ou Dave Sitek dos TV On The Radio, este álbum é tudo menos fruto daquele repentismo que tem manchado alguns outros notórios (e pontualmente notáveis) trabalhos recentes.

Ao contrário do que sucedia em 4:44, Jigga não teme agarrar o zeitgeist, como acontece no impressionante “Apeshit”, e acomodar o seu flow a ritmos mais contemporâneos, mas ainda mais digno de nota é o facto do homem que não há muitos anos nos comandava a olharmos para o trono não temer ceder espaço a Beyoncé que demonstra cabalmente que é uma rapper tão ou mais capaz do que o que outras pretendentes à sua coroa — como Cardi B ou Nicky Minaj — têm procurado demonstrar em tempos mais recentes.

 



Sobre “Apeshit”, tema acompanhado por um vídeo assombroso rodado no Louvre, escrevi para a playlist de escolhas colectivas mensais do ReB. Permitam-me que recupere aqui essas linhas:

“Não é de hoje, na verdade: o videoclipe foi sempre laboratório de teste de avançadas ideias pop (e podem recuar até ‘Thriller’ para confirmar essa ideia), mas há uma nova mentalidade em jogo graças ao titânico esforço criativo de artistas como Kendrick Lamar (‘Alright’, ‘Element’…), Kanye West (já se esqueceram de ‘Famous’?), Beyoncé (‘Formation’), Childish Gambino (‘This is America’) ou, agora, The Carters. O vídeo como, a um único tempo, veículo de mensagem de protesto, de afirmação de carisma pop, de promoção de um produto comercial, de agitação das águas – sociais, políticas, económicas, morais, filosóficas, espirituais… you name it.

A edição de Everything Is Love por Jay-Z e Beyoncé — THE CARTERS — não foi realmente uma surpresa. Eis um casal que soube transformar a mais íntima vida pessoal em arte, com Lemonade e 4:44 a funcionarem como reveladores elementos de um diálogo que, apesar da franqueza, nunca comprometeu o mais sagrado e íntimo plano familiar. O duo de super-estrelas resolveu o que tinha que resolver, meteu a ‘Becky with the good hair’ onde tinha que ser metida, fez a terapia necessária e protegeu o seu secreto plano familiar dos olhares vorazes do mundo. Como? Fazendo arte.

E depois de expostos os pontos de vista de cada um, eis que THE CARTERS serve para mostrarem a aliança indestrutível que mantêm, a cumplicidade, o amor… E a primeira amostra disso foi um extraordinário ‘Apeshit’, que é, mais uma vez, um complexo trabalho com inúmeras camadas que ainda vamos andar a ler por muitos e bons anos.

Por um lado, Bey rima como gente grande, mostrando que é uma rapper de mão cheia, capaz de punch, de flow, de métricas ousadas, de braggadocio saudável. Uma rapper suficientemente boa para dominar um tema em que Jigga larga apenas um verso e em que Quavo e Offset são contratados apenas para polvilharem de ‘ad libs’ uma música em que o que interessa mesmo é o recheio.

E o vídeo. Meu Deus, o vídeo!!! O casal mais invejado do planeta em frente da obra de arte mais visitada, eles mesmos a apresentarem-se como obra de arte no museu de todos os museus, expondo a pele negra como a tela de um novo tipo de história, e ainda por cima no Louvre, de todos os lugares possíveis… O museu que é talvez um dos maiores símbolos do espírito imperialista e colonial que fez a história do Ocidente alugado (imaginem Shawn Carter a dizer, ao telefone, ‘sim, mandem a factura…!’) para um clipe pop que é ele mesmo objecto tão artístico que poderia ser exibido em continuum numa das suas alas, num plasma de generosas polegadas, ao lado das obras dos Delacroix, dos Da Vinci, dos Durer ou dos Buonarroti que a história soube guardar.”

Mas há muito mais neste trabalho que reúne ao todo 9 faixas. O álbum arranca com um “Summer” de recorte clássico (é o tema que conta com gestão directa de El Michels, em que os Carters devem ter dito à dupla Cool & Dre algo como “em vez de samplarem esse single de vinil, não querem ter uma verdadeira banda aqui no estúdio? Que tal os tipos que gravaram este fantástico tributo aos Wu-Tang?”) que nos engana de certa forma ao posicionar Beyoncé como a torch singer que sempre soubemos existir nela, no meio das mesmas cordas que em tempos emolduraram o veludo da garganta de Etta James, e que projecta Jay-Z como aquele MC que é eterno candidato a GOAT, o homem que, como dirá Bey mais à frente, nem precisa de escrever as palavras antes de enfrentar o microfone.

“Apeshit”, como já referido, altera tudo e depois, em “Boss”, é Queen B que assume a dianteira, espalhando palavras como se fossem maços de notas de mil: ela pode dizer que tem problemas reais como todos nós, mas mais adiante dá-nos conta do alcance da sua prosperidade ao dizer que a sua prole já tem o futuro garantido — “my great, great granchildren already rich / That’s a lot of brown children on your Forbes list” cuspido com o flow próprio de quem gravou estas barras deitada numa banheira cheia de espuma…

Em “Nice” Jigga ensaia novos flows, fracturados como o presente exige, e em “713” Beyoncé recupera linhas do clássico “Still DRE” que o seu marido ajudou a escrever, num tema que equilibra graves e o martelar incessante num piano, como se tivesse sido gravado numa “roadhouse” dos anos 50 em que por alguma razão já existisse também uma 808 (808 Ray é aliás um dos produtores creditados).

A classe e a subtil sofisticação é uma constante em todos os temas, com arranjos equilibrados, que servem a canção, que nunca perturbam o dramático desfiar das palavras, que sabem, ao mesmo tempo, soar contemporâneos (belíssimos graves neste álbum) e desligados do momento, um delicado efeito que se consegue por exemplo em “Black Effect” (por via da sub-cave feita de graves) e no tema final “Love Happy” (com um telhado reluzente construído com hi hats de cadência contemporânea).

Como as obras expostas no Louvre, como a grande arte que sobrevive séculos mas que também tanto nos diz sobre o tempo em que foi criada, este Everything is Love foi pensado para fincar os pés no presente e reclamar um lugar na história que a música negra está a erguer para o futuro, redefinindo as regras da pop, reinventando-se como é seu desígnio. Como Yoko e John num outro tempo, Bey e Jigga perceberam que a sua história de amor pode também servir para educar o mundo, para inspirar arte pop relevante e para cimentar laços íntimos.

Aplausos, por favor.

 


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