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Publicado a: 28/08/2015

Sons & Visões (com batida) VI

Publicado a: 28/08/2015

[TEXTO] João Pedro da Costa [FOTO] Direitos Reservados

 

A sexta parte de uma história videomusical do hip hop assinada por João Pedro da Costa.

[PARTE I aqui.] [PARTE II aqui.] [PARTE III aqui.] [PARTE IV aqui.] [PARTE V aqui.]

 


 

[APHEX TWIN] “Windowlicker”
(Chris Cunningham, 1999)

A desconstrução do vídeo hip hop atinge o zénite com um clipe assinado por um realizador britânico que, apesar de ser um fã confesso da cultura afro-americana, fez a sua carreira no formato sobretudo com telediscos para música ambiental e electrónica. Se Chris Cunningham é, de longe, o mais idiossincrático realizador da geração de autores que emergiu na década de 90, tal se deve ao facto de a sua obra videográfica estar focada numa sofisticada utilização da tecnologia digital que visa problematizar a definição, os limites, as mutações e possíveis extensões da anatomia do corpo humano. Apesar de ocasionalmente acolherem influências cinematográficas (de David Cronenberg a Takashi Miike, passando por Ridley Scott), os seus vídeos estão permanentemente ancorados numa peculiar e desconcertante manipulação sinestésica de sons e imagens cuja dialéctica tende a operar uma síntese fascinante entre opostos: o futurista e o arcaico, o sensual e o repulsivo, o sublime e o grotesco.

Numa entrevista dada em 2005, Cunningham confessa que foi o facto de ter visto o seu clipe para “Come To Daddy” (1997) de Aphex Twin num programa da MTV ao lado de vídeos hip hop, que o levou a querer produzir um que utilizasse de forma inequívoca os risíveis tropos visuais e temáticos do gangsta rap da costa leste dos Estados Unidos. A ideia ficou a germinar na sua cabeça ao longo de mais de um ano até a Warp Records lhe encomendar um vídeo para o novo single de Aphex Twin, cuja sonoridade estival e solarenga lhe pareceu de imediato apropriada para a trilha sonora do seu tão desejado projecto.

Logo na abertura, o telespectador é presenteado com uma sequência que, ao longo de quatro longos minutos, eleva um mero exercício paródico à mais extenuante das histerias. Nela, assistimos a dois manos que passeiam num descapotável pelas ruas de Los Angeles enquanto vão travando um colorido diálogo repleto de profanidades (nada mais do que 127 palavrões) sobre a urgência inadiável de satisfazer as suas libidos. Quando avistam duas voluptuosas afro-americanas numa esquina, param o veículo e tentam engatá-las com uma retórica que, como seria de esperar, não prima pela cortesia ou cavalheirismo. As raparigas, apesar de não serem insensíveis à crueza da abordagem, questionam de imediato o estatuto social dos seus antagonistas, despoletando uma acesa troca de insultos que é interrompida abruptamente por uma sobredimensionada limusina branca com 39 janelas que varre de forma impiedosa o descapotável do enquadramento. Quando o vidro de uma das portas traseiras desce, surge a inconfundível e aprimorada fronha de Richard D. James (Aphex Twin) que de imediato convoca as duas beldades para uma festa privada. Se, num primeiro momento, ambas parecem intimidadas pelo seu sorriso, rapidamente sucumbem aos encantos dos seus dotes de dançarino que lhe permitem executar na perfeição uma coreografia que emula os trejeitos de Michael Jackson. Depois de já ter tirado o tapete à fantasia do sexo fácil propagada pela maioria dos vídeos hip hop e de ter caricaturado sem apelo a linguagem e o materialismo das suas personagens-tipo, Cunningham volta a fazer das suas ao sobrepor as feições estilizadas do músico britânico no rosto dos corpos femininos em biquíni que povoam a segunda metade do clipe, dando uma imagem bem literal e satírica (porque andrógina) da risível dimensão do ego das viris estrelas do rap mainstream. O clímax é atingido quando, numa cena que tem tanto de Busby Berkeley como de David Lynch, uma das dançarinas surge com um rosto desfigurado de Aphex Twin saído da imaginação do pintor surrealista suíço H. R. Giger: quando chegamos à cena final do ejaculatório chuveiro de champanhe, torna-se evidente que “Windowlicker” não é apenas assexual, mas fervorosamente antissexual, transformando o cortejo entre os sexos num ritual sórdido e caricato.

Aquando da sua estreia, as acusações de apropriação cultural indevida, racismo e misoginia não se fizeram esperar: afinal de contas, esta era a obra de dois artistas britânicos brancos cujo título (uma tradução literal da expressão francesa “lèche-vitrine” que epitomiza a prática de ver montras) bastaria para sustentar os argumentos reacionários dos seus detractores. No entanto, uma leitura devidamente contextualizada de “Windowlicker” demonstra que o videoclipe está bem mais interessado em articular as convenções de um subgénero promocional híper-codificado com a temática transversal à obra artística do seu criador. De resto, para além de criar uma manifesta tensão entre o tímpano e a pupila do telespectador (que hip hop, mas ouve música electrónica), o facto de o teledisco utilizar de forma tão ostensiva temas e personagens integralmente retirados do imaginário gangsta sugere igualmente a fascinante possibilidade de ter sido a progressiva degeneração das imagens a induzir a crescente distorção da trilha sonora.

Visto e ouvido hoje em dia, é fascinante apercebermo-nos como um videoclipe que fora tão perturbador e vanguardista na viragem do milénio, se conseguiu alojar confortavelmente no horizonte de expectativas dos consumidores de música urbana. Não apenas as suas imagens grotescas influenciariam uma das mais populares videografias rap da emergente paisagem mediática digital (a dos sul-africanos Die Antwoord), como é possível encontrar ecos do tema de Aphex Twin tanto na oscilação sónica e nas vozes fantasmáticas do dubsteb (Burial, James Blake, etc.), como no tipo de desconstrução digital que é o apanágio dos momentos mais fulgurantes da influente obra de Flying Lotus.

 


 

[D’ANGELO] “Untitled (How Does It Feel?)”
(Paul Hunter, 2000)

A constante devoção do hip hop aos seus fossilizados tropos visuais tornou a fruição de vídeos rap no final da década de 90 numa experiência bem mais uniforme, monótona e previsível. Apesar de as parcas excepções a esta ortodoxia tenderem a ser efeitos colaterais e manifestamente insulares do experimentalismo musical (OutKast, Missy Elliott) ou lírico (Eminem) de algumas figuras luminárias do hip hop, um colectivo de músicos afro-americanos oriundos do rap e do neo soul operaria na viragem do milénio um breve mas significativo reposicionamento orgânico dos sons e imagens do movimento.

Os Soulquarians eram um núcleo de artistas herdeiro da Native Tongues Posse que se foi agregando no final da década de 90 em torno da figura aglutinadora de Questlove, o carismático baterista, produtor e líder dos The Roots. O seu principal objectivo consistia em reunir um conjunto de músicos talentosos que fosse capaz de reactivar os laços que outrora uniram o hip hop ao vasto e riquíssimo legado musical da cultura afro-americana no intuito de estimular a criatividade da sua moribunda cena underground. A base de operações escolhida por Questlove para este laboratório criativo foi o Electric Lady Studios, a mítica sala de estúdios criada no final da década de 60 por Jimi Hendrix e Michael Jeffrey no bairro nova-iorquino de Greenwich Village. Seria lá que, ao longo de três breves mas prolíferos anos, uma genuína comunidade de artistas como Q-Tip, J Dilla, Mos Def, Talib Kweli, Poyser ou Pino Palladino colaborariam na gravação de clássicos incontornáveis da música negra urbana, entre os quais se destacam Things Fall Apart (1999) dos The Roots, Voodoo (2000) de D’Angelo, Mama’s Gun (2000) de Erykah Badu ou Like Water For Chocolate (2000) de Common.

O videoclipe que viria simultaneamente a popularizar e precipitar o fim do movimento seria o que Paul Hunter realizou para “Untitled (How Does It Feel?)” de D’Angelo. O clipe começa com um plano aproximado de uma orelha negra e vai lentamente deslizando em torno de uma cabeça com tranças até desvendar outros detalhes do rosto: os olhos, o nariz, a boca. O movimento da câmara é parcimonioso e indolente: o vídeo consiste integralmente num único plano-sequência que, em cada momento, apenas revela uma pequena porção do corpo do artista. É preciso esperar quase um minuto para que um dengoso zoom out comece a revelar sucessivamente o rosto e o tronco até se deter num plano médio cujo enquadramento é tangente ao limite inferior do torso. Chegados a este ponto, torna-se evidente a sugestão de dois tipos de nudez: não apenas a de um musculado corpo negro, mas também a de um artista que exibe à flor da pele a sensual fisionomia de uma performance vocal em permanente tensão com a melodia insinuante e o ritmo quebrado da trilha sonora. De resto, esta obsessão anatómica é reforçada pelo facto de o seu único ponto de fuga ser um crucifixo dourado que simboliza a natureza espiritual do seu pleito amoroso: intenso, incondicional e redentor. A austeridade formal das imagens (fundo negro e ausência quase total de adereços) faz lembrar o trabalho fotográfico de Robert Mapplethorpe em obras como The Black Book e Black Males, sobretudo pela forma como articula algumas convenções milenares da arte ocidental não apenas para esculpir e fetichizar o corpo negro masculino num objecto erótico de contemplação e fascínio, mas igualmente para fragmentar e dissecar esse mesmo corpo num objecto de estudo ou escrutínio.

Se as reações iniciais ao vídeo de “Untitled (How Does It Feel?)” se dividiram entre elogios à sua descomplexada sensualidade e acusações de objectivização sexual, a verdade é que o clipe se tornaria num gigantesco sucesso na MTV e catapultaria D’Angelo para o mainstream. Dentro da cultura hip hop, o vídeo foi inequivocamente revolucionário não apenas porque era uma voz e um corpo masculinos que operavam uma total inversão da relação de poder entre os sexos, mas também porque o seu energético minimalismo destoava gritantemente da letargia das sobrepovoadas e atafulhadas imagens que ilustravam a música afro-americana na televisão musical. Os efeitos colaterais, no entanto, seriam perversos: não apenas o sucesso do vídeo mergulharia D’Angelo num bloqueio criativo que duraria mais de uma década, como os Soulquarians que estiveram na sua concepção se desmoronariam gradualmente perante o desânimo provocado pela histeria de um público mais interessado em ver o seu sex symbol em palco do que em ouvir a sua comunhão com os talentosos músicos da sua banda.

 


 

[OUTKAST] “B.O.B”
(Dave Meyers, 2000)

O minimalismo não era, definitivamente, o tipo de abordagem suscitado pela música da banda que, na viragem do milénio, melhor soube fazer a ponte entre a vanguarda experimental do hip hop e o seu mainstream. Apesar de serem oriundos do sul dos Estados Unidos (Atlanta), a efusiva criatividade de Big Boi e André 3000 jamais permitiu que os OutKast fossem vistos (à semelhança dos Goodie Mob) como meros embaixadores da sonoridade do Dirty South, incorporando na sua música não apenas o som cristalino do G-funk como um vastíssimo leque de estilos musicais que iam do psicadelismo ao tecno, passando pelo soul, o gospel e o jazz.

Apesar do seu título, “B.O.B” (acrónimo de “Bombs Over Baghdad”), é uma canção empenhada não tanto em abordar a conjuntura geopolítica da época, mas sim em alargar os horizontes musicais do hip hop para o novo milénio. Ancorado no ritmo veloz de uma batida drum’n’bass, o tema combina guitarras à Hendrix com órgãos gingões, scratch e breaks electrónicos sobre os quais o duo vai freneticamente debitando rimas como se não houvesse amanhã, fazendo jus às palavras que, no final, são entoadas por um coro gospel: “Power music! Electric revival!”.

Ao herdar um orçamento milionário originalmente destinado a F. Gary Gray (que, à última hora, preferiu dirigir o vídeo para outro tema de Stankonia), Dave Meyers engendra um clipe que combina os habituais elementos do subgénero (carros, bling e mulherio) numa narrativa não menos convencional que consiste basicamente numa alvorada num bairro social seguida de uma correria para não perder uma festa de arromba repleta de músicos, DJs e dançarinas que tem tanto de celebração religiosa como de documentário da National Geographic. O que realmente distingue este pastiche dos videoclipes rap da época é, por um lado, a energia cinética de uma montagem que parece resoluta em acompanhar as 155 batidas por minuto da trilha sonora e, por outro, a inusitada e surreal palete de cores que confere um tom psicadélico às imagens (relva roxa, asfalto esverdeado), dando a impressão que estamos sob o efeito de LSD a assistir a um clipe realizado por Hype Williams. Foi, de resto, neste último pormenor que uma parte substancial do orçamento acabaria por ser aplicado, na medida em que, após finalizar a edição, Meyers conseguiu convencer a editora a enviar a película para a Índia de forma a que cada fotograma pudesse ser colorido pelas mãos ágeis e sábias dos experientes artesões de um estúdio de Bollywood. É precisamente este investimento ou meticulosa atenção aos mais ínfimos detalhes que fazem de “B.O.B” uma bem-sucedida demonstração de que, afinal, não era necessário reinventar a roda para dar um novo fôlego ao vídeo rap: bastava dar-lhe uma injecção de adrenalina.

 


 

[EMINEM] “Without Me”
(Joseph Kahn, 2002)

A partir da segunda metade da década de 90, se alguém nos Estados Unidos ligasse o televisor para ver a MTV, era muito provável que ficasse surpreendido com o facto de, na maioria das vezes, o canal não estar a passar um videoclipe. Tanto os fãs dos primórdios da MTV, como a legião de teóricos pós-modernistas fascinada com o seu fluxo fragmentário e descentralizado de sons e imagens, ficariam sem dúvida chocados ao ver no seu lugar programas como Singled Out, Daria ou Laguna Beach. Não apenas a MTV tinha deixado para trás a sua paixão adolescente pela música, como a BET, a VH1 e a CMT tinham sido forçadas a seguir a estratégia da Viacom em descentralizar do formato videomusical a programação dos seus canais. Se o gigante mediático continuava a cimentar a sua influência global com o lançamento de MTV locais nos quatro cantos do mundo, a MTV norte-americana tinha praticamente virado as costas ao formato que tinha sido a sua razão de ser. A mudança, de resto, não fora abrupta. Ela começou logo em 1987, quando a MTV estreou o seu primeiro conteúdo não musical (o concurso Remote Control), prosseguiu em 1992 com a estreia do primeiro reality show da história do pequeno ecrã (The Real World) e atingiu um momento particularmente simbólico em 1996 com o lançamento da M2 (rebatizada MTV2 em 1999), um segundo canal que tinha como propósito garantir a missão originalmente assumida (e entretanto abandonada) pela MTV em 1981: a de fornecer aos seus telespectadores um fluxo incessante de conteúdos videomusicais.

Perante a drástica redução do airplay televisivo disponível para os seus artistas, as editoras travaram a fundo na produção de telediscos, adoptando uma atitude bem mais cautelosa. Sem o apoio de programas segmentados como 120 Minutes (dedicado à música alternativa), Headbanger’s Ball (heavy metal), Amp (electrónica) e, claro está, o Yo! MTV Raps (hip hop), o videoclipe tornou-se quase um exclusivo de estrelas, artistas estabelecidos e de alguns fortunados principiantes. Encurralado entre o seu passado televisivo e o seu futuro digital, o formato videomusical começava a sentir uma indisfarçável dificuldade em propagar-se no progressivo vácuo que o separava do público.

Nenhum artista encarnou melhor a era pós-MTV do videoclipe e representou de forma tão precisa a derradeira geração a viver submersa no pequeno ecrã do que Eminem. A grande esperança branca do hip hop oriunda de Detroit tornar-se-ia a figura mais popular da MTV do novo milénio devido ao seu humor politicamente incorrecto e à sua singular habilidade em protagonizar divertidos e premiadíssimos telediscos que, não apenas suavizaram as arestas mais sombrias e polémicas das suas letras, como fizeram dele um perverso ídolo do público infantil da televisão musical. Os seus primeiros clipes assemelhavam-se a toscos desenhos animados em que uma figura de palhaço, pintada sobre a face trágica de um adolescente com um passado problemático, fazia trinta por uma linha num carrossel de situações cómicas feito à medida para o deficit de atenção de uma geração que cresceu com as imagens fragmentárias da MTV.

O vídeo que Joseph Kahn dirigiu para “Without Me” aborda de frente a reputação propagada pelos media de que Eminem era uma influência nefasta para os mais jovens. Nele, o rapper e o seu mentor, o omnipresente Dr. Dre, surgem como heróis de quadradinhos (Robin e Batman, respectivamente), cuja missão é impedir que um pré-adolescente oiça o mais recente disco do seu ídolo comprado à socapa, The Eminem Show. O clipe vai alternando esta trama central com uma série de invectivas (dirigidas à censura da Federal Communications Commission e a ódios de estimação como Dick Cheney, Moby e a sua mãe Debbie Mathers) com uma catadupa de paródias televisivas, que incluem infocomerciais, reality shows (The Real World e Survivor), séries televisivas (ER) e o canal noticioso CNN. O clímax é atingindo quando Eminem surge, uns meros oitos meses após a tragédia do 11 de Setembro, encarnando um irrisório e aparentemente inofensivo Osama bin Laden, jogando uma arriscada cartada que, em mãos menos hábeis, teria redundado num desastre cujas proporções poderiam muito bem ter feito banir os seus perpetuadores da televisão musical.

Apesar de a desenvoltura com que Eminem encarna esta galeria de personagens fazer dele uma espécie de Lenny Bruce do hip hop, nenhuma das suas tropelias beliscam o facto de ser, incontestavelmente, um dos mais habilidosos letristas e rappers da sua geração e de a sua audiência ser bem mais vasta do que o público-alvo dos seus vídeos. Os números, de resto, estão aí para atestá-lo: propulsionado pelos seus vídeos musicais, Eminem viria não apenas a ser o artista que mais discos vendeu nos Estados Unidos na primeira década no novo milénio (172 milhões de unidades), como o mais ouvido de sempre no popularíssimo serviço de streaming Spotify.

 


 

[ERYKAH BADU FEAT. COMMON] “Love Of My Life”
(Erykah Badu & Chris Robinson, 2002)

Após uma década em que foi paulatinamente conquistando o mainstream, as vendas da música rap nos Estados Unidos sofrem, na viragem do milénio, uma queda abrupta de 15% (que teria sido ainda maior não fosse as vendas milionárias dos discos de Eminem). Contrastando com o resto do mundo, em que a contracultura afrocêntrica dava sinais de vigor, o hip hop nas terras do Tio Sam parecia ter atingido um indisfarçável impasse criativo. Foi precisamente nesta adversa conjuntura que aterrou na televisão musical o videoclipe que mais fez para reafirmar a importância civilizacional da cultura hip hop junto do grande público. Não causa estranheza que, em 2002, não tenha sido um rapper a levar a cabo a tarefa, mas a grande diva do neo soul: a incomparável Erykah Badu.

O título de “Love of My Life (An Ode to Hip-Hop)” diz praticamente tudo: estamos perante uma das mais pungentes odes alguma vez dedicadas à cultura urbana afro-americana, que preconiza uma abordagem feminina e espiritual à personificação do hip hop anteriormente experimentada em dois clássicos de artistas soulquarianos com os quais Erykah Badu partilhava imensas afinidades: “I Used To Love H.E.R.” (1994) de Common e “Act Too (Love Of My Life)” (1999) dos The Roots. O vídeo é uma pequena obra-prima do formato que consegue articular com grande elegância os grandes referentes históricos do hip hop com a importância do movimento na formação da identidade artística da autora de Baduizm.

Depois de citar a introdução de “Troglodyte (Cave Man)” dos Jimmy Castor Bunch, o clipe arranca com uma adolescente Badu vestida a rigor no seu quarto grafitado a curtir “Planet Rock” de Afrika Bambaataa & The Soulsonic Force numa boombox. Seguem-se uma série de cenas elípticas em que a diva do neo soul é filmada por Fab 5 Freddy a fazer breakdance ao lado de Crazy Legs, a exibir a mítica caixa de ritmos Roland R-8 e a improvisar um freestyling para o deleite de uma comitiva que inclui um dos expoentes do rap feminino da década de 80: MC Lyte. Após recriar a capa de Yo! Bum Rush The Show dos Public Enemy e de aludir ao tema “Fuck tha Police” dos N.W.A., o clipe abandona as referências nostálgicas e introduz à esmagadora maioria do público da MTV a técnica contemporânea de remistura chopped and screwed que consiste em fazer baixar o ritmo de um tema musical a um intervalo entre as 60 e 70 batidas por segundo (o estilo apenas atingiria a popularidade nos anos seguintes com o sucesso de artistas como Mike Jones, Paul Wall e Chamillionaire). Antes de terminar com uma nota optimista (Badu a apanhar boleia rumo a um futuro risonho num autocarro conduzido pelo fundador do movimento DJ Kool Herc), há ainda tempo para criticar a violência policial, a mercantilização da música rap e fazer um subtil comentário racial quando uma estupefacta Badu se apercebe que está a fazer turntablism para uma audiência exclusivamente formada por b-boys e b-girls de tez branca.

O tom simultaneamente esperançoso, divertido e emocional de “Love Of My Life (An Ode To Hip Hop)” acabaria não apenas por sensibilizar um público transgeracional (topo da tabela Hot R&B/Hip Hop Singles & Tracks da Billboard e um Grammy para melhor tema R&B), como serviria de importante farol para os seus pares que, devido à pressão de uma indústria musical em crescente declínio, não raras vezes faziam tábua rasa da missão e dos valores fundadores da cultura hip hop.

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