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Publicado a: 15/08/2017

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[TEXTO] Nuno Afonso 

A História é cíclica e nunca cessa de frisar a curta memória colectiva. A 1 de Janeiro de 1962, na cidade de Georgia, Estados Unidos da América, acendia-se o rastilho para o movimento de Anti-Segregação em que Martin Luther King surgiria como líder maior. As ruas tornaram-se palco de manifestação, mobilização e consciencialização. A música, como reflexo cultural e históricos dos tempos, teve a sua inevitável contribuição. A lava libertária de Archie Shepp, Milford Graves ou Albert Ayler cruzou becos e esquinas encontrando-se com as acções dos Black Panthers e com o conceito de afro-futurismo celebrado em vida por Sun Ra. Junte-se a isso a Guerra do Vietname, a agitada presidência Nixon e obtém-se um período de luta, mas também de ascensão. Meio século depois, em pleno 2017, o retrato assume-se estranhamente fiel, como uma sensação de dèjá vu. A repressão policial, o ressurgimento da segregação racial via Alt-Right, Donald Trump e a ameaça de um conflito armado que tem gerado ansiedade internacional. Se é verdade que há artistas conscientes da natureza política do seu trabalho – seja em que área for – alimentando-a e gerando discussão, haverá também aqueles que optam por um delineado afastamento dessa esfera maldita. Mas paira a grande dúvida: será possível gerar arte – e por sua vez, música – nos dias que correm sem uma posição política? Seja ela consciente ou não, o simples acto de criar parece ser um igualmente simples acto de resistir.

Os Shabazz Palaces têm vindo a alimentar esta questão num léxico perfeitamente idiossincrático e alinhado com o seu tempo. Quazarz: Born on a Gangster Star e Quazarz vs. The Jealous Machines formam uma obra siamesa, editada em simultâneo, portadora de uma visão tão onírica e surreal quanto crua e factual. As fronteiras entre a imaginação e a realidade fundem-se, porém a chama da utopia (afinal a mesma que inspirou tantos na década de 60) fervilha a caminho de uma transformação – ou talvez lhe possamos chamar evolução? Este ambicioso projecto da banda de Ishmael Butler e Tendai Maraire é um shout out urgente a todos os combatentes desta batalha social eternaem que os media são “os olhos que tudo vêem e tudo sabem” e cujo poder é-lhes perigosamente concedido, dia após dia, por todos e cada um de nós.

Quazarz: Born on a Gangster Star dirige-se ao seu próprio país como The United States of Amurderca num cenário que alguns achariam distópico. “You know it’s real/ Poppin’ a pill/Nice with the pill”, assim chegam as primeiras palavras da faixa de abertura “Since C.A.Y.A.” Musicalmente reúne os elementos que normalmente associamos à banda: o eco vocal, formas de baixo saturadas e beats flutuantes, etéreos. Liricamente prepara terreno para uma odisseia sci-fi, tremendamente lúcida. “I see the sell outs, clowns, coons / Staring empty minded at the full moon / Ever waiting / this is why, I freed the slaves”, termina de modo magistral, naquela que apenas é a abertura para algo mais. E o algo mais vai, a seu tempo, dando um corpo ao manifesto. “When Cats Claw” serpenteia-se por uma melodia distorcida, repetitiva e persistente, até encontrar-se com o primeiro raio de sol a visitar Quazarz: Born on a Gangster Star. Luxuoso, e a atravessar a nuvem translúcida que envolve o disco, “Shine a Light” sampla um clássico de Dee Dee Sharp, a destilar soul por cada poro; ou seja, o tema com maior potencial de sucesso por aqui, sem questionar quem nos Shabazz revê o que noutros não existe.

A maior aproximação ao registo divinal que é o anterior Lese Majesty acontece em “Dèesse Du Sang”. Uma atmosfera a circundar a new age, onde os ritmos e as micro-melodias se perdem num buraco negro. Meloso e melancólico, trata-se de uma elegia estelar nocturna cujo rasto abre horizonte a “Eel Dreams”, um sonho aquoso (que é um luxo escutar com headphones). A paragem de “Parallax” escuta-se como um interlúdio em redor da personagem de Quazarz, a figura que inspirou estes dois discos no papel de um viajante inter-planetário. Pelo gosto à abstracção das formas, e até à essência metafísica em que tudo parece confluir, recordará, a espaços, o magnífico filme de Jonathan Glazer, Under The Skin, em que Scarlett Johansen surge na pele de um ser extraterrestre em descoberta da Terra e da experiência emocional humana.

O combo representado entre “Fine Ass Hairdresser” e “The Neurochem Mixalogue” evoca, em velocidades distintas, a herança p-funk igualmente presente no ADN do mestre Butler. A segunda faixa é uma levitação corporal entre claps digitais rodeados de gravidade zero cujo fluxo desemboca numa belíssima construção pop. “That’s How City Life Goes” poderia ser um excerto da trupe dos cLOUDDEAD em trip pelos catálogos da Anticon e Warp até se transformar num sólido e assertivo delírio já próximo da linguagem do rock (o que não é novidade, dado o seu apreço assumido por bandas outsiders como Animal Collective ouThis Heat).

Uma das grandes surpresas do disco é “Moon Whip Quaz”. E porquê, exactamente? Uma vez mais pela frescura de ideias e pelo potencial dançável de uma canção que obviamente se inspira (e até dir-se-ia mais: presta tributo) ao clássico “The Model”, dos germânicos Kraftwerk. O ousado exercício faz claramente sentido e deixa-nos com um genuíno sorriso na cara. Pontos extra, mesmo antes do tema final “Federalist Papers” deixar no ar uma mensagem de iminência, em jeito de despedida e conselho: “Don’t be late /Time waits on sly /Years passing by /Lightning leaks the sky /My all time sweet one leaves /Don’t sk me why /But I won´t be late /No, I won’t be late”. Discurso parco de palavras, porém intenso e enigmático.

Ishmael Butler continua a ser uma figura chave no rap em 2017. Se nos 90s demonstrou título nobre com os Digable Planets, este capítulo é uma reencarnação de alguém que durante tempo se retirou dos palcos e estúdios para encontrar um canal de expressão pessoal, necessariamente diferente dos até então descobertos. Quazarz é, afinal, Butler a olhar – e a sonhar – para si próprio. Simplesmente fenomenal.

 


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