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Publicado a: 29/06/2018

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[TEXTO] Nuno Afonso

Entre a organização matemática e a dispersão poética, sobra um imenso canal que coexiste e se renova. Esse espaço não definido, e elaborado por recolhas diversas, parece ser o habitat de onde tem vindo a emanar uma série de manifestações e alter-egos de Bruno Silva. Com um já longo passado de edições em labels nacionais e internacionais, muito do seu recente output se tem materializado enquanto Ondness. Aí tem cartografado um percurso insular onde a música electrónica surge segundo uma noção de reconfiguração constante. É toda uma paixão genuína pelo old school da house, pelo eco eterno do dub ou pela sinestesia do ambient. Caberiam tantas outras paisagens, noutras tantas latitudes; mas é dessa visão despegada a categorias de onde se desconfia surgir o objecto mais exótico.

Serpente surge agora sem um departe absoluto dessa linguagem, embora avance por outros caminhos. O filtro de detritos fumegantes e formas aquosas parece diluir-se para dar lugar a um uma expressão mais corpórea em que a percussão e o ritmo emergem como forças dominantes.

Dividido em quatro temas, Rituais 101 é um tremendo exercício de colagem sonora. Prima desde logo pelo registo cru, em que a repetição trata de instalar um clima de tensão e paranóia – de certo modo talvez traduzindo o fascínio de Silva pelo cinema de terror e suspense. “Sangue de Galo” é a faixa de abertura e resulta brilhantemente nesse papel: o beat insistente faz crepitar em si todo um ritual de fragmentos de uma herança musical reconhecida nas raízes do Haiti e Jamaica. Um banger envenenado, que acaba sempre por apelar a mais. Uma vez as cinzas apagadas, “Venda de Altar” é aquela chuva tropical que trata de espalhá-las pela terra. No meio do processo, escuta-se uma implosão de metais reverberados e imagens que se aproximam e afastam, como um desafio em estado letárgico. “Sob A Palha” descortina um techno assombrado pelos delírios de Crowley, numa celebração fervilhante e xamânica que poderia ter a benção estética de uma editora como Warp. Já “Fio Obeah” retira de uma lufada dancehall um espantoso delírio tropical. Paira um massa sonora envolta de vozes que se aproximam e se afastam, sopros que se diluem e metais que pautam toda uma alucinação que poderia ter saído de um livro de Pynchon.

Rituais 101 é um breve, mas bravo, documento que reflecte uma electrónica híbrida e única deste tempo, dona de si mesma. Para nos maravilhar.

 


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