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Publicado a: 29/07/2017

Sélébéyone no Jazz em Agosto: jazz e hip hop no jardim do paraíso

Publicado a: 29/07/2017

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [Foto] Gulbenkian Música_Petra Cvelbar

Foi com a apresentação de Steve Lehman à frente do ensemble Sélébéyone que arrancou ontem mais uma edição do Jazz em Agosto. O concerto teve lugar no Auditório ao ar Livre dos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, talvez a mais perfeita “sala” de concertos da cidade de Lisboa.

Lehman, em sax alto e bases electrónicas, liderou um colectivo em que militam o fantástico Damion Reid na bateria, Chris Tordini no baixo eléctrico, Carlos Homs no teclado, Maciek Lassere no saxofone soprano e ainda, a repartirem os microfones, os rappers Gaston Bandimic e HPrizm.

Se no homónimo registo de estreia (edição de 2016 na Pi Recordings) a abordagem laboratorial à experiência de cruzamento (“Sélébéyone” é uma palavra em wolof – o dialecto que o rapper senegalês Gaston Bandimic usa neste projecto – que significa “intersecção”) de linguagens e personalidades resulta numa sonoridade coesa e aventureira, sólida e inventiva, ao vivo esta música surge algo diferente, muito mais apoiada numa dinâmica de contrastes. Antes de mais, contrastes entre o som claro e límpido do saxofone alto de Steve Lehman e o fraseado altamente processado (através de efeitos electrónicos) do soprano de Maciek Lassere, contrastes entre o inglês de HPrizm e o wolof de Bandimic, contrastes ainda entre as passagens mais reflexivas e os momentos mais expansivos conduzidos por Damion Reid. Se o disco é uma complexa imagem multi-cromática, ao vivo a tradução parece ser muito mais linear e mono-cromática.

 



Antes de mais, uma palavra sobre Reid, a fundação do som deste colectivo. Este belíssimo baterista integrou o colectivo de Robert Glasper que fez em In My Element, já lá vão 10 anos, a sentida vénia ao génio J Dilla que é “J Dillalude”, provando que é capaz de equilibrar a síncope quantizada do hip hop e a refinada liberdade jazz num único toque na tarola, o que é uma arte em si mesmo. Ontem, era muito difícil afastar os olhos de Reid, tal o refinamento do seu trabalho de pés, no bombo e nos pratos, e de mãos, sobretudo no hi hat, o motor do seu swing particular. Damion Reid consegue, de facto, soar como uma MPC, mas uma MPC assombrada pelo espírito de Elvin Jones e Bernard Purdie ou algo que o valha.

Lehman, é, obviamente, um saxofonista extraordinário, dono de um discurso altamente personalizado, com raízes fundas na tradição free – ele relembrou ao público ontem que se estreou no Jazz em Agosto há 17 anos, quando contava apenas 21 anos, ao lado de Anthony Braxton – que incorpora matemática e electrónica nas suas composições e que, nos solos, consegue soar fluído e angular em simultâneo. Lehman consegue igualmente imprimir uma expressiva “oralidade” aos seus solos, como se o flow dos MCs fosse um guia para o seu próprio saxofonismo. Juntos, Lehman e Reid formam uma célula absolutamente incrível e insuperável.

Parte das bases electrónicas criadas por Lehman e Lassere já incorporam frequências mais graves pelo que por vezes isso retirou espaço no espectro sonoro à performance de Chris Tordini no baixo, porventura o mais discreto elemento do septeto. Horns, no sintetizador, foi um pouco ofuscado ao início por uma mistura deficiente, que deixava as suas contribuições demasiado submersas no som colectivo, mas o técnico acabou por perceber que uns quantos dbs a mais na mesa de mistura permitiam perceber o quanto o teclista poderia contribuir tanto para o lado mais abstracto do som do colectivo, quanto para a fundação rítmica de algumas das peças mais musculadas.

Ambos os MCs fizeram uso de dois microfones, um com um som mais linear e outro com o botão dos efeitos rodado para “cosmos”, enchendo-lhes as vozes de delays que as atiravam imediatamente para o espaço. Na verdade, só Gaston Bandimic parecia dominar essa dualidade com segurança, usando o microfone processado nos momentos certos, para sublinhar certas palavras ou frases com máximo efeito cromático. HPrizm, por outro lado, andou um pouco mais perdido, trocando de micro a meio de frases ou usando o delay para disfarçar uma certa limitação de flows. Se no contexto altamente laboratorial dos Antipop Consortium, o rapper que também respondia ao nome High Priest beneficiava não apenas da companhia segura de Beans, mas do facto de poder estar a rimar em cima de beats mais “alternativos” que lhe permitiam um outro tipo de enquadramento, em palco a fasquia é outra, sobretudo quando a sua voz é obrigada a confrontar-se com desafios rítmicos altamente evoluídos, como aqueles que Reid é capaz de conjurar. Por isso mesmo, HPrizm foi o menos seguro dos elementos do colectivo: no freestyle final, já depois do extraordinário “Bamba” que marcou a saída de palco que só não foi definitiva porque o público se manifestou efusivamente, o MC nova-iorquino foi basicamente esmagado por um muito mais expressivo Gaston Bandimic, dono de um leque de recursos vocais muito mais vasto, capaz de oscilar entre diferentes flows com enorme classe, muito mais à vontade em contextos rítmicos mais livres e bem mais interactivo com o público. Numa batalha, ao estilo 8 Mile, se confrontado com um Gaston no papel de B-Rabbit, HPrizm também se teria certamente engasgado como Papa Doc. É aliás sintomático que só num momento, em “Origin”, as vozes dos dois MCs se tenham realmente entrelaçado, fazendo-se escutar juntas.

Já bem perto do final, um dos melhores momentos, que antecedeu a saída com a homenagem a Amadou Bamba no tema “Bamba”, viu Lehman e Bandimic a brilharem juntos, num uníssono que o saxofonista aproveitou depois para, à boa maneira hip hop, fazer ele mesmo um show off dos seus skills com um intrincado solo apoiado na técnica de respiração circular que permite um som ininterrupto. O público rejubilou, pois claro.

Steve Lehman trouxe um septeto a Lisboa, mas, na verdade, um trio que combinasse bases electrónicas pré-gravadas com as capacidades rítmicas avançadíssimas de Damion Reid e a expressividade no microfone de Gaston Bandimic teria provavelmente garantido resultados mais entusiasmantes. Lehman assina hoje, pelas 18h30, uma apresentação solo, para saxofone e electrónica, no edifício da Colecção Moderna. A entrada é gratuita por isso aproveitem que valerá, certamente, muito a pena.

Abaixo, uma amostra das capacidades de Lehman, com Matt Brewer no baixo e Damion Reid a matar o kit.

 


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