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Publicado a: 13/08/2018

Saul Williams: o poeta que articula a necessidade

Publicado a: 13/08/2018

[TEXTO] Vera Brito [FOTO] Onaje Scott

Saul Williams é um animal estranho dentro do universo do hip hop e, entre as suas muitas vidas de actor, rapper, escritor, a que melhor o define será possivelmente a de poeta. Pelo menos foi assim que o próprio que se apresentou numa carta dirigida a Oprah Winfrey em 2007, onde se lê “You, love, are a pioneer. I am a poet”. Uma carta que encorajamos veemente que leiam, não só porque traça o perfil do americano através de palavras suas, com uma articulação e eloquência invejáveis que tornam até este nosso texto algo redundante, mas sobretudo porque se trata de uma reflexão consciente, inteligente e objectiva sobre muitos dos estigmas que nos dias de hoje ainda atingem o hip hop, e que carecem de uma visão global e informada.

Para vos contextualizar da razão dessa missiva e da sua relevância, bem como da importância do papel que vozes agitadoras como a de Saul Williams desempenham na nossa sociedade, Oprah Winfrey, praticamente uma instituição nos Estados Unidos, rainha de audiências e influenciadora da vida de milhões de americanos (há até quem a aponte como forte candidata à presidência dos Estados Unidos nas próximas eleições, nada que surpreenda nesta nova América de Trump), tem estabelecido ao longo dos anos uma relação de amor-ódio com o hip hop. Fã confessa de alguns artistas como Kanye West ou Jay-Z, fechou portas a outros como 50 Cent ou Ice Cube, chegando até a acusar o hip hop de estar na génese de muitos casos de violência e misoginia. Uma visão que, como bem sabemos, é partilhada por muitos e que quando defendida por alguém como Oprah, poderá convencer ainda muitos mais.

 



Terá sido talvez por isso que Saul Williams, hoje pai e reconhecendo a importância de Oprah na sua educação, tenha chamado a si a tarefa de oferecer a sua perspectiva sobre o tema, numa brilhante dissertação que acreditamos ser capaz de mudar mentalidades ou de, pelo menos, convidar a uma reflexão todos aqueles que estejam dispostos a dispensar uns minutos de leitura e atenção. Não queremos discorrer sobre todos os argumentos e exemplos expostos (insistimos que leiam a referida carta), mas importa reter a forma como o poeta defende que o hip hop mais não é do que o espelho de uma sociedade por vezes doente, e que a censura nunca será capaz de resolver problemas que estão enraizados em séculos de história. O caminho, diz-nos, passa por dar lugar a uma nova vulnerabilidade enquanto força capaz de nos tornar a todos mais humanos.

Esta sempre foi afinal uma responsabilidade dos poetas, eternos revolucionários, capazes de expor emoções sem receios, aqueles que ao abrir-nos o seu mundo interior nos fizeram aproximar do nosso. A poesia que sempre desempenhou ao longo da história o papel fundamental de agitar consciências, parece ser hoje mais necessária que nunca e está a viver um momento de força renovada, com Saul Williams a ser um dos seus maiores impulsionadores, ao torná-la mais acessível e próxima aos nossos ouvidos pela música. Usurpando palavras do escritor James Baldwin, Saul Williams é um poeta revolucionário que articula essa necessidade. E não existem muitos outros a conseguir este efeito de proximidade: lembramo-nos por exemplo da londrina Kate Tempest, também ela com ligações ao universo hip hop.

 



Saul Williams cresceu dentro de um ambiente familiar culto que lhe foi proporcionado pelos pais (a mãe era professora e o pai pastor) onde teve acesso às obras dos grandes autores. Os seus estudos literários e de representação continuaram essa sua educação, por isso não deixa de ser curioso que afirme que mais do que os grandes autores da literatura inglesa que estudou a fundo, como Shakespeare, foram os rappers contemporâneos quem o levaram à poesia. Participante activo de slam poetry, uma espécie de battles de poesia, envolveu-se em inúmeras sessões oratórias ao lado de nomes como Mos Def ou Talib Kweli. O caminho para o hip hop acabaria por ser uma consequência natural da necessidade de muscular os seus poemas com batidas.

Protagonizou alguns filmes: Slam, de 1998, é o mais conhecido. Colaborou com os mais diversos artistas, desde Janelle Monáe a Trent Reznor, que produziu o seu disco The Inevitable Rise and Liberation of NiggyTardust!, de 2008, provando que é capaz de mover-se com facilidade nos mais diferentes espectros musicais. E neste momento prepara o musical Neptune Frost. Com tudo isto a definição de poeta pode até parecer redutora, não fosse a poesia a força motriz transversal a todas estas áreas, capaz de criar as pontes emocionais mais improváveis. A poesia que tanta falta nos faz.

No dia 19 de Agosto, Saul Williams junta-se ao quarteto liderado por David Murray para uma sessão de jazz e poesia na Praça do Giraldo, em Évora. O concerto faz parte da programação do festival Artes à Rua.

 


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