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Publicado a: 11/02/2017

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[TEXTO] Rui Miguel Abreu 

O hip hop caminhou tanto para chegar aqui. O mundo pode estar à beira do colapso, com a humanidade a vislumbrar o abismo e a ponderar o salto, mas isso não impede que mesmo perante a possibilidade de aniquilação total haja quem não se coíba de enfiar o dedo, sujo de realidade, bem fundo na ferida: “So many years of this violence / Now we’re surrounded by the souls of the dead and defiant / Saying, “Look what you’ve done, you designed it!” / When the bough breaks, hear the wraith scream “Riot!“. O caminho foi longo, de facto, mas trouxe-nos até um presente que tornou possível a existência de uma célula altamente criativa como os Run The Jewels.

Não há outro grupo assim no universo do hip hop contemporâneo: dois grandes MCs (um deles também um sério produtor) que juntos conseguem não se anular e serem ainda maiores – Nova Iorque e Atlanta, sofisticação urbana e autenticidade sulista, branco e negro, pedigree indie e experiência com gigantes da indústria, inteligência e humor, força e capacidade de expressar sentimentos, rimas e mais rimas… Estes senhores parecem mesmo ter tudo.

E entretanto aterramos em 2017: a realidade imposta por Trump é muito mais absurda do que qualquer sketch do Saturday Night Live poderia fazer supor, há índios que ainda têm que lutar pelas suas terras, bombas que rebentam por todo o lado, reality tv em overdrive a pegar nos mais delirantes pesadelos do Black Mirror, CNN a reportar escândalos, discursos de estrelas de Hollywood insatisfeitas com o estado a que a comédia política conduziu o seu país e o mundo. Banda sonora para este quadro sombrio? Run The Jewels 3, é uma hipótese séria. É um trabalho sujo, mas alguém tinha que o fazer. “Excuse moi, bitches!” Estão mais do que perdoados estes rapazes. Haja alguém com eles no sítio.

Na barragem de entrevistas que acompanha a edição do terceiro ópus de Mike e P há uma ideia repetida incessantemente: o que começou por ser uma associação improvável entre um rapper negro de Atlanta, pretendente à mesma esfera de notoriedade dos seus “padrinhos” Outkast, e um rapper e produtor branco oriundo do planeta alternativo comandado pela Def Jux é hoje uma sólida aliança criativa fundada na mais sincera amizade e no mais sólido respeito. Run The Jewels – eles não se cansam de o repetir – trouxe para o centro o melhor que estes cavalheiros têm para oferecer: rimas inflamadas, palavras sérias, mas também idiotas se necessário, porque ninguém tem apenas uma camada, ninguém é santo ou inteiramente parvo.

E tudo isto surge encaixado em música que oscila entre a tradição e o futuro, entre a cadência cristalizada das máquinas digitais, algum peso electrónico industrial e uma ideia de funk que não descarta a experimentação. El-P é mesmo um produtor de mão cheia que aqui assume a parte de leão dos créditos com ajudas pontuais de BOOTS e Little Shalimar.Há uma sofisticação crescente na gestão da tensão sónica dos beats e sob esse aspecto o novo álbum é o mais conseguido dos três ópus que o duo já conta: graves perfeitamente esculpidos, detritos sonoros embalados nas doses certas de delay, como se as rimas crescessem do próprio concreto da cidade e com elas arrastassem o ruído próprio da experiência urbana.



No microfone há que salientar as participações de Danny Brown, Tunde Adebimpe dos TV On The Radio, Zack de La Rocha (Rage Against The Machine) ou Kamasi Washington. Mas Mike e P poderiam ter feito tudo sozinho tal a capacidade de encaixe que revelam, com flows que se complementam e trocas intensas e quase telepáticas de estímulos, palavras e ideias: em “A Report to the Shareholders”, o intenso ponto final nesta atribulada viagem de montanha russa que é RTJ 3, El-P explica tudo direitinho – “Maybe that’s why me and Mike get along / Hey, not from the same part of town, but we both hear the same sound coming“. Word!

E por falar em “word”, há que contar com as rimas, que agora surgem claramente mais cuidadas, mais trabalhadas, com cada palavra a aterrar na tarola certa. Caso concreto, “Hey Kids (Bumaye)”:

Say hello to the masters, on behalf of the classless masses
We showed up, ski masks, picks, and axes to murder asses
Lift up our glasses and watch your palaces burn to ashes
Fucking fascists, who the fuck are you to give fifty lashes?

Killer Mike não poupa o mundo e ataca de frente, sem colete à prova de balas, mas armado com a mesma carapaça de “righteousness” que protege Luke Cage. E depois vem El-P a aumentar ainda mais a pressão lírica, encarnação branca de KRS-One com ácido na garganta:

I disrobe like pederast pope on a play-date
Better call mayday, baby I’ll spray, I’m an AK
They flayed and plated, I’m serving dead meat fame to table
Cain to Abel, death’s apprentice
Run the Jewels’ll make last breaths Brexit

Até corta a respiração, certo? E entretanto, Danny Brown relembra porque deixou uma marca tão forte no calendário de 2016 e junta-se a esta exibição de atrocidades que os Run The Jewels trazem no novo álbum:

Word architect, when I arch the tech, I’ll part ya’ neck
Got bars on deck, that Xanax flow, make you nod your head
Like a gram of blow, you inject
My words infect like insects havin’ incest, I’m in check, like pay day on a Thursday and it’s Wednesday
I’m sensei, you bouquet, you menstruate
That’s pussy all on your template
We skate, skate on ‘em twenty-eights
Get pearl tongue like every day, so I Run them Jewels in every state
I kill a mic with Killer Mike, roll el’s out a p’s wit’ El-P
My self-esteem on king, got head so big, no crown can’t fit me
No bitch on my ding-a-ling, when she ride on it, she wet like a jet-ski

Caso para dizer que se um diz “mata”, o outro exclama “esfola”: delírios líricos em pleno efeito, com cada MC a viver da energia que o outro exala, a rima pela rima, o jogo de flows como forma de reclamar grandeza e identidade e originalidade. Tudo certo. É exactamente assim que o hip hop deve soar. É exactamente isto que o hip hop nos deve fazer sentir: punhos a cerrarem-se, dentes a ranger, mas pés assentes na terra sem descurar a capacidade de soltar uma gargalhada se tal se justificar (ou não!…). Se o mundo se salvar, poderemos muito claramente agradecer a estes novos heróis das massas. Até já, camaradas!


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