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RuiMiguelAbreu

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Rap e autenticidade: uma velha questão

A história conta-se rapidamente: Meek Mill é um contender, um rapper em ascensão que usou a mais velha arma à disposição dos artistas pop que sonham com a primeira divisão: o livro de cheques. Com esse livro de cheques, Mill estava convencido ter pago por um verso de Drake, uma das mais brilhantes estrelas do firmamento hip hop neste momento, no seu mais recente trabalho, Dreams Worth More Than Money. O que não deixa de ser um título irónico, neste contexto, sobretudo se tivermos em consideração que para cumprir o sonho de ter Drake a cuspir num som seu, Mill teve que pagar – Dreams Are Worth Some Money talvez fosse um título mais apropriado… “R.I.C.O.” é o tema em causa. E bomba.

Através do Twitter, Meek Mill acusou Drake de não escrever os seus próprios versos e atribui-os a Quentin Miller, MC de Atlanta – que no seu Tumblr garantiu que “nunca fui nem nunca serei um ghostwriter“. Drake respondeu com “Charged Up”, tema estreado no seu programa na Apple Radio: “Wow, I’m honored that you think this is staged. I’m flattered, man – in fact, I’m amazed“, rima o rapper canadiano. No entanto, ninguém o ouve a negar…



Factos curiosos: o tema “R.I.C.O.” de Mill conta mais de 10 milhões de plays só no YouTube. E Drake, pelos vistos, vale 19 milhões de dólares só para a Apple. É sempre útil colocar estas coisas em perspectiva. Nada indica que Mill ou Drake tenham perdido capital com este episódio.

Tudo indica, porém, e basta saber ler as fichas técnicas e artísticas dos discos (e para isso, pessoal, ainda é útil segurar o CD nas mãos e folhear o booklet, descodificando todos aqueles nomes que surgem entre parêntesis a seguir aos títulos – tentem lá fazer isso no YouTube ou no Spotify…), que sim, que é verdade que Drake recorre a fornecedores externos de rimas nos seus discos. Só que isso não devia escandalizar quem grita “autenticidade” enrolando um cheque gigante em forma de cone para que a sua voz chegue mais longe. Debater autenticidade quando o que para nós europeus pode ingenuamente parecer afinidade artística – o clássico “featuring” tão comum no hip hop – é mero calculismo comercial, resulta afinal de contas um pouco oco.



Por outro lado, os versos sempre se partilharam de uma forma ou outra desde que o hip hop é hip hop – uma cultura erguida em cima da ideia de citação e apropriação, convém não esquecer. Quem já esteve num estúdio a assistir ao vivo à escrita de um novo tema, sabe bem que o rapper no sofá, de caneta na mão, a debitar pensamentos em voz alta funciona igualmente como uma antena e vai usando ideias atiradas para o ar pelos presentes: “muito bom mano, devias também dizer algo assim ou assado”. Nenhum mal advém ao mundo por causa disso.

A questão central aqui é Drake afirmar-se como um liricista de mão cheia num universo em que assinar as próprias ideias ainda carrega algum peso na balança da credibilidade. Só que, ao mesmo tempo, não se pode esquecer que já não é na esquina que tudo se passa, já não é acerca de Big Bank Hank pedir o caderno de rimas a Grandmaster Caz para ir ali num instante ao estúdio cuspir umas rimas numa faixa de título “Rapper’s Delight“. Drake, como Meek Mill de resto, são rodas dentadas na máquina pop e as regras nesse universo são um pouco diferentes. E quem se habitua a uma vida de total exposição provavelmente já não consegue ter suficiente recato para viver fora da luz e fazer disso inspiração para novas rimas. E aí Kendrick Lamar, que abordou este assunto da autenticidade em “King Kunta“, tem sido o mais inteligente dos players, resguardando-se do olhar público e da máquina trituradora da fama.

Meek Mill não é mesquinho por apontar o dedo a Drake, que não é menos rapper por aceitar rimas escritas por pulso alheio. Ghostwriters, ghostproducers… vivemos rodeados de fantasmas. Há que saber viver com isso e não permitir que tal constatação nos assombre e nos distraia do essencial: bate ou não bate? Ouçam “R.I.C.O.”, ouçam Meek Mill e ouçam Drake e decidam vocês mesmos. Eu cá já mandei vir mais um pacote de pipocas…

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