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RuiMiguelAbreu

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Pensar o caso Bambaataa: como lidar com todas estas notícias?

Ontem, ao olhar para uma parede do meu escritório onde tinha pendurado um pequeno quadro alusivo a Afrika Bambaataa com a legenda “He was a Black Spade”, tomei uma decisão: remover o retrato do pai fundador do hip hop do meu espaço de trabalho. Curiosamente substitui-o pelo de James Brown e isso fez-me pensar.

As notícias que surgiram nas últimas semanas apontando uma série de graves acusações a Afrika Bambaataa parecem já ter passado a barreira da calúnia infundada e a decisão da Zulu Nation nos últimos dias de remover o lendário pioneiro do topo da sua direcção, exonerando-o de todos os seus cargos, tem o peso de uma admissão de culpa. Parece já não haver dúvidas de que o homem de “Planet Rock” foi, de facto, um predador sexual porque todas as acusações que lhe foram dirigidas não podem ser descartadas como mero assassinato de personalidade: que teriam estas pessoas a lucrar?

Mais importante do que perceber, no entanto, se Bambaataa é de facto culpado, é, neste momento, entender como devemos nós, fãs, seguidores desta cultura, seres humanos, pais e mães, filhos e irmãos, lidar com esta situação. KRS One, admitidamente, não lidou com tudo isto da melhor maneira, quando explicou, no podcast Drink Champs de N.O.R.E. que isto não passava de uma pessoa a tentar vender um livro, referindo-se ao político Ronald Savage que revelou toda esta história. Mas há aqui uma oportunidade, para que todos possamos aprender a lidar com este tipo de situações tentando não encarar as coisas de forma tão leviana como KRS One, alguém que sempre advogou o conhecimento e que perante isto basicamente respondeu “não quero saber”.

Antes de mais, uma certeza: a música, como qualquer outra arte, é feita por seres humanos e os seres humanos são imperfeitos. Outra certeza: a arte não é sempre produzida a partir de posições moralmente elevadas, politicamente correctas, saudavelmente equilibradas. Diferentes períodos da história, alguns terríveis, geraram arte importante que traduziu o seu tempo e que fica, por isso mesmo, como marca, como cicatriz se quiserem, de uma História que importa sempre conhecer. Deveríamos queimar as cópias que existem de Nascimento de Uma Nação de D.W. Griffith por, entre outras coisas obviamente condenáveis, retratar o Ku Klux Klan como uma força heróica? Deveríamos derrubar os monumentos do Estado Novo que glorificavam um poder ditatorial? Ou deveremos entender essas coisas como marcas de uma história que importa não repetir?

Claro que o caso Bambaataa nos atira para uma dimensão mais humana. Será possível separar a música que o líder da Soul Sonic Force criou dos seus condenáveis actos contra menores? Bill Cosby deixou de ter graça e deveremos apagá-lo da nossa memória televisiva? Joe Meek deixou de ser um génio no estúdio por ter assassinado uma pessoa? Vamos queimar os discos de Phil Spector? Ignorar o impacto cultural de Charles Manson? E quanto às alegações de violência contra gente tão díspar quanto Lou Reed ou James Brown? E Michael Jackson? Que fazer com todas estas importantes obras?

As perguntas sucedem-se e cada um de nós encontrará as suas respostas e todas serão certamente válidas se nos permitirem lidar com o choque que estas revelações impõem. Eu tirei da parede um retrato que celebrava a dimensão humana de Bambaataa e o que eu julgava ser uma força transformativa e positiva: ele tinha sido um membro do gangue Black Spades e transformou-se no líder de uma força positiva como a Zulu Nation. Algo que eu acreditava que deveria ser louvado e celebrado. Mas o homem que eu homenageava com aquele pequeno quadro também parece ter cometido actos horríveis contra pessoas de tenra idade. E isso mancha-lhe a dimensão humana, a tal que eu tinha ali exposta na parede.

Quanto à arte, quanto aos discos que fez e sobretudo à cultura que nos legou, nada a dizer: os discos, a música, a cultura – foi tudo fruto de uma visão colectiva, de um desejo legítimo de expressão, de uma vontade compreensível de superação. Partilhada por Bambaataa, por Jazzy Jay, por Red Alert e Grandmaster Flash, pelos Treacherous Three e por Kool Herc, por Kurtis Blow e pelos Run DMC, por todos os que pegaram num som, numa ideia, e a propagaram até aos dias de hoje. Nem o hip hop é Bambataa, nem o reggae é Sizzla, nem o rock é Jerry Lee Lewis. Cada cultura é o resultado de uma complexa rede de estímulos e ideias, tecida por gente muito diversa, com boas e más intenções pelo meio.

O retrato saiu da minha parede e “Planet Rock” mantem-se na minha estante. Mas é preciso não esquecer.


https://www.youtube.com/watch?v=EGh_5lL4z1Q

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