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Publicado a: 31/08/2018

Os Mandamentos do Moisés #4: Darás o dito por não dito

Publicado a: 31/08/2018

[TEXTO] Moisés Regalado [ILUSTRAÇÃO] Riça

“Em breve seremos minoria, somos heterossexuais”. As palavras são do jovem Valete, então com 20 anos, no tema “Nossos Tempos”, e não há nada que as aproxime do seu discurso actual, em tudo adaptado aos valores da “esquerda moderna”. Em 2007, no álbum de DJ Núcleo, Regula disse “Por que é que tu te armas em parvo e só falas de armas?/Devias estar mais atento ao exemplo que estás a dar, mas/Não deves ter ouvido a ‘Colagem’ do Projecto Ngonguenha”, e, já na mixtape Kara Davis, editada no mesmo ano, dedicou uma faixa ao “people da guita suja”, entre rimas como “Estão a acabar com as suas pakas no bruxo/E rezam para não acabar com duas facas no bucho”.

A contradição pode ser fruto, como no caso de Valete, de uma certa ignorância que anda às cavalitas da tenra idade, ou pode simplesmente espelhar, como em Regula, meros pontos de vista ou estados de espírito, mais ou menos distantes entre si. Independentemente do contexto, só dá o “dito por não dito” quem se arrisca nas teias da exposição, e é exactamente por isso que as entrevistas ou as declarações públicas são tantas vezes contrariadas pela realidade futura. Já foram várias as ocasiões em que Snoop Dogg disse ter deixado de fumar, bem como Method Man, que chegou a prometer que não voltaria a utilizar-se da erva como tópico.

O Black Album de Jay-Z, anunciado como ponto final da sua discografia, acabaria por ter sucessor e as estreias de Bónus e Adamastor nunca chegaram a concretizar-se. No entanto, como diria o homem mais citado do hip hop português, “que mal tem”? Os ouvintes agradecem a sensação de cumplicidade que vão desenvolvendo com certos artistas, e que só é possível se lhes conhecerem as ideias e o percurso, os pormenores biográficos e as contradições. Virtudes e fraquezas. Voltando a Valete, não há motivos para lamentar que, ao segundo disco, e ao contrário do que um dia prometeu, tenha revelado o rosto. Mas há razões de sobra para agradecer o facto de o ter feito, sem nunca esquecer a magia de um pormenor tão ímpar na história do hip hop português.

Comparar o Mundo Segundo de 2018, pregador de bons costumes, com aquele que, entre picas e cervejas, fundou os Dealema, pode ser um exercício interessante, porém irrelevante. Por mais lúdico que seja conhecer os feitos dos nossos tios e avós, pais e amigos, e por mais que isso contribua para a construção que fazemos das suas personagens, é pelo convívio constante que os laços se mantêm. O carinho nunca morre mas o combustível da amizade são as novas histórias, e não as que já lá vão. As divergências acontecem, na música ou na família, só que a verdade não mora em nenhum dos lados, e o contraditório é tão bonito quanto a evolução pode ser.

Nota de rodapé: quando o Sir Scratch lançou o seu primeiro álbum, tinha eu 15 anos, fiquei desiludido com a falta de punchlines e instrumentais agressivos. Achei convictamente que o meu MC favorito da altura, acabado de sair de um beef com o Lancelot, tinha falhado. Que não tinha evoluído. Demorei pouco tempo (alguns anos), a perceber que a mudança, a divergência e a contradição são tão naturais, logo tão desejáveis, quanto a firmeza, a unidade ou o carácter. Quase todos reconhecem a impossibilidade das verdades absolutas, seja na história ou na física quântica, mas poucos conseguem dizer porquê. Vale a pena recordar as palavras de Umberto Eco, que, em “O absoluto e o relativo” (2007), disse o seguinte:

“Será absoluto tudo o que é ab-solutus, desligado de constrangimentos ou limites, algo que não depende de nada, que tem a sua própria razão, causa e explicação em si mesmo. Algo muito semelhante a Deus, no sentido em que Deus se definia como ‘Eu sou quem sou’ (‘Ego Sum Qui Sum’) [Deus de Aristóteles]. Assim sendo, jamais poderemos conhecer o absoluto porque fazemos parte dele”.

 


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