[ENTREVISTA] Gonçalo Oliveira [FOTO] Sebastião Santana
Guardo a Margem Sul num canto bastante especial da minha memória. Foi lá que se deu a minha aventura no mundo académico e, como dita a regra, muitas aventuras se desenrolaram nessa época pela zona de Almada e da Caparica. Curiosamente, foi na faculdade que também conheci o Tilt e o Nero, dois dos integrantes do colectivo que eu acompanhava desde o início. Largos anos depois de convivermos através dos fóruns, tive a ideia de os convidar para um showcase na FCT. Como não poderia deixar de ser, houve estrilho e muito avacalho e ficou, certamente, mais uma aventura registada para mais tarde recordar.
A partir daí não os perdi de vista e conheci também o Mass e outros tantos elementos que, entretanto, já não fazem parte do colectivo ORTEUM. Entre concertos e vários convívios divididos por Lisboa e Almada, tardes e noites que ficam marcadas pelo companheirismo e amizade, o que me levou, também, a contribuir com beats originais para os projectos do grupo – sendo que um deles se encontra em Perdidos & Hashados;
Mais uma vez, desloquei-me a casa do Nero. Desta vez o objectivo era entrevista-los no âmbito do lançamento desta última mixtape. Foi uma tarde bem passada como outras tantas e aquilo que parecia ser uma coisa formal acabou por se tornar numa conversa casual com três companheiros que eu acompanho desde que me lembro de começar a vasculhar pelo lado mais underground do hip hop nacional.
Há cerca de uma década estávamos na era dos fóruns e era por lá que a nova escola do hip hop se manifestava. Vocês, que apareceram no meio desse boom do rap nacional, sentem que essas comunidades virtuais contribuíram para a vossa afirmação enquanto MCs?
[TILT] É claro que sim, espalha tudo man. Chegavas a ter a opinião de muita gente. Havia a Horizontal e outros fóruns assim. Havia bastante movimento nessa altura e ya, foi fixe. Agora já não há assim tanta coisa, tens o Facebook a substituir isso. Uma cena mais de likes e assim. [Nos fóruns] até se criava uma corrente diferente, não havia um contacto directo como há agora no Facebook. Não era tudo tão pessoal. Normalmente o que se falava ali era sobre rap, só.
[MASS] Às vezes nem sabias com quem estavas a falar. Era um nickname, estás a ver? Mas era bacano, era o que havia na altura. Também com o tempo as coisas vão evoluindo. Os meios de exposição também vão mudando, faz parte. Mas na altura sim, os fóruns foram bué importantes para nós. Quando nós começámos a surgir acho que esse foi o meio que nos impulsionou mais.
[NERO] Havia também o Hi5, o MySpace – que também era muito importante;
[MASS] Mas sim, os fóruns foram importantes. E criavam também uma comunidade em torno da cena.
E isso ajudou-vos, também, a conhecerem-se uns aos outros?
[TILT] Ao Mass foi através da net e ao Nero foi na rua, numa noite em Almada. Eu acho que [conheci o Mass] quando o Osiris apareceu das primeiras vezes na Casa Amarela, ao pé da minha zona.
[MASS] Mas o primeiro contacto começou sempre pela net. E depois começámos a reunir-nos. Um tinha um concerto e era tipo “olha, vamos todos ao concerto do gajo”, e a cena foi-se dando.
[TILT] Muitos dos concertos nem eram de nenhum de nós. Íamos só pelo avacalho.
[NERO] Eu ao Mass também só o conheci quando veio aqui dar um concerto.
[MASS] Sim, mas antes disso já tínhamos falado pelo MySpace.
Nessa altura ainda rimavam todos a solo. Como surgiu a oportunidade de começarem a fazer rap?
[NERO] No meu caso comecei a fazer rap em 2004, com o people aqui da Trafaria. Depois é como em todo o lado, uns acabam por deixar de o fazer ou por falta de gosto ou de tempo. Depois conheci-os a eles e a cena acabou por acontecer naturalmente. Íamos para a casa do Mass gravar e a cena do conceito de ORTEUM, para além do nome e de tudo o que envolve, acaba também por ser uma cena tipo self-made, ’tás a ver? Porque tanto eu como eles, antes de nos conhecermos, já tínhamos esse intuito de fazer as nossas próprias cenas e acaba por ser esse lado reivindicativo que nos juntava ali. E ORTEUM não era só quem rimava. Reuniamo-nos todos para gravar em casa do Mass e acabava por ser um conceito que abrangia bué gente que parava connosco.
[MASS] Bué pessoal… Acabou por ser um culto. São muitas pessoas que nem precisavam de estar ligadas ao rap mas que estavam lá e nos davam backup. Fizemos sons bué parvos em que tentávamos sempre meter um toque pessoal de cada um. Meter uma pessoa a falar. Lembram-se quando metemos o meu cão a ladrar num som? Man, era o que calhava na altura.
[NERO] Ya, essa foi a nossa melhor participação (risos).
E era todo esse material que ia parar à Internet, que, assim como um espaço de promoção, servia também de recreio para muita gente. Daí surgiram alguns beefs e desacatos. Sentem que esse lado também vos ajudou a melhorar enquanto MCs?
[MASS] Pra te ser sincero, eu acho que na altura até era uma cena saudável.
[NERO] Ya, o beef faz parte do rap…
[MASS] Até é uma cena de que tenho saudades. Hoje em dia ninguém faz beef já… Agora toda a gente se dá bem e na altura não. Havia bué grupos.
[TILT] Mas ficou na moda. Foi depois do beef do Sir Scratch com o Lancelot. Depois passou para os fóruns, havia muitos beefs nos fóruns…
[MASS] Despontava ali uma certa rivalidade saudável.
[TILT] É fixe, dava para combater. Rap também é tipo uma luta, é estares a batalhar e mostrares alguma cena. É como um atleta, também tens de treinar. E às vezes treinar com outro pessoal também é fixe. Se bem que às vezes também é por estupidez, é espontâneo. Acontece! Eu acho que é normal, ainda para mais nos MCs que começam…
[MASS] Na altura estavam na moda as punchlines. E é sempre mais bacano mandares uma punchline direccionada para alguem do que estares a cuspir para o ar (risos).
E no meio disto tudo, há uma mixtape clássica dessa geração de egotrip puro e duro, recheada de punchlines, que é a Painkillaz, na qual os três de vocês participaram. Sentem que foi um trabalho importante?
[NERO] Foi importante no sentido de juntar bué gente e, neste caso, bué gente que parava connosco e que considerávamos ORTEUM. Ya, eu acho que foi um projecto importante. Foi a primeira cena a sério que nós fizemos. Nem eu tinha gravado a minha primeira tape, nem o Tilt tinha feito ainda nenhum projecto. Ou seja, ainda ninguém tinha feito outro projecto a sério.
[TILT] Quem começou isso na verdade foi o Psico. Isso foi de um som meu com o Roger, quando nós tínhamos CO3, a nossa crew, e nós fizemos um som que era o “Painkillaz” e o gajo fez um remix e aquilo virou uma espécie de conceito nessa altura. Ele decidiu agarrar nuns quantos MCs e nós estávamos lá, claro.
[MASS] No fundo era compilar um grupo de pessoas que partilhava da mesma visão que nós…
Esse rap de punchlines…
[MASS] Ya, era.
[TILT] Mas havia Painkillaz e ORTEUM, não é exactamente a mesma coisa.
[NERO] Era um conceito mais abrangente do que ORTEUM.
[MASS] Eram mocas. Muitas mocas em formato de MP3 (risos).
Foi uma época onde a dureza dos sons não tinha de contracenar com a dureza das ruas. A escrita era crua e a escolha certa das palavras criavam um impacto ainda maior. Sentem que esse vosso estilo mais raw acabou por influenciar parte de uma nova geração de liricistas?
[MASS] Não sei se temos bem a noção do impacto que isso teve. Mas é bacano às vezes aparecer pessoal que já acompanha rap há bué e vêm-nos dar props. Ainda há pouco tempo tive uma cena assim do género com um bacano que estava a gravar o vídeo para o Beware e para o Blasph. Ele a dizer que conhecia a minha voz de algum lado e eu: “2675? ORTEUM?” E ele disse “ya! Não acredito… Ouço-vos desde o inicio! Curto bué da vossa cena!” foi fixe.
[TILT] Também apanhaste o outro bacano por causa do teu boné [para o Nero]…
[NERO] Ya, por causa do meu boné, na Lisa. E mais, a cena são casos assim específicos. Também o Luis Paulo encontrou um bacano no Brasil, do nada, o bacano que estava a falar com ele era o irmão de um gajo que já tinha gravado uma cena nossa e estava a dizer que curtia bué da nossa cena. E estava no Brasil…
[MASS] Acho que na altura quem acompanhava o rap conhece ORTEUM. Nós mexiamos-nos. Eramos bués e formou-se ali um culto.
[TILT] Depois também há os concertos, que nós fazemos sempre numa espécie de convívio. Uma cena familiar. Dá para criar esse ‘à vontade’ com as pessoas.
[MASS] Era muito para além da música. Ainda hoje. É uma família que, se for preciso, estamos juntos mesmo sem ser pela música. Vamos beber uns copos, juntar o pessoal…
[NERO] Exacto. Acaba por ser o convívio em primeiro lugar e só depois a música é que surge em segundo plano. Mesmo com as participações nos nossos trabalhos nós não vamos gravar com uma pessoa que não conhecemos de lado nenhum. A pessoa tem de ter alguma vivência connosco. Se não nem faz grande sentido. É assim que tem sido sempre.
[MASS] E é assim que vai continuar!
E em que momento da vossa história é que se definiram enquanto colectivo ORTEUM?
[MASS] Foi no Avante, com o Mek0 e o Troublemaker…
[TILT] Eles andavam lá no Avante a gritar isso [O Rap Tuga É Uma Merda]. Eu ia fazer uma mixtape com o Osiris com esse nome mas depois isso não aconteceu e acabamos por juntar bué bacanos com o tempo. Primeiro eram quatro, depois eram cinco, depois mais três… E damos por nós e éramos tipo 15, quase.
[MASS] Basicamente era pessoal bacano que achava que o rap tuga era uma merda. Então pronto, era ORTEUM.
[TILT] O pessoal do avacalho. Tipo, era uma cena de ironia e identificavamo-nos todos com isso.
Era aí que me levava a próxima pergunta. Com que intuito adoptaram esse nome?
[MASS] Acho que é uma opinião que nós partilhamos, um protesto…
[TILT] Tipo contra-cultura…
[NERO] E acaba por ser também um bocado do nosso espírito de self-made. Cada um surgiu de um determinado âmbiente e cada um fazia por si próprio para criar a cena, nunca ninguém agarrou em nós e sempre fizemos isto desta maneira. Não queremos dizer que todo o rap tuga é uma merda mas na altura era aquilo que estava a bater e o conceito ficou.
[MASS] No fundo acaba por ser uma tentativa de contrariar a cena…
[NERO] Exacto! É tipo um contra-movimento. Tanto em concertos como em venda de CDs, nós acabámos por criar o nosso próprio movimento e fazer a cena de uma maneira alternativa.
E ainda acham que o rap tuga é uma merda ou já o acham uma maravilha?
[TILT] Há bué cenas más… Tu não estás no Dubai, man (risos). Estás em Portugal, há bué cenas más e isso reflecte-se seja no que fazes em qualquer arte. Sem apoios. Não querem fazer pagamentos para actuações, é só filmes…
[MASS] Se ele era uma merda, agora uma merda está. Há cenas boas e cenas más, é como tudo.
[TILT] Estás naquela geração de consumo rápido, é normal que apareçam várias cenas. E, dessa forma, também é normal que muitas dessas várias cenas não tenham a qualidade que teria algo que demorasse mais tempo a ser feito ou fosse feito para esse tipo de consumo mais lento…
[MASS] Ou que te estimule o cérebro. Uma coisa que faça pensar. A nova geração não quer isso. Não querem pensar. Eu lembro-me que quando começámos havia a cena dos duplos sentidos, dos triplos sentidos… Havia dicas pensadas man! Tu ouvias e pensavas “este bacano pensou nesta estrutura de cima a baixo”, e hoje em dia não. Não me identifico muito com o caminho que o rap está a tomar, sei lá… Às vezes até vejo pessoas a rotular de rap coisas que não têm nada a ver com rap. Não sei man… Não sei onde é que isto vai dar. Mas há sempre pessoal bacano e acho que é esse pessoal que devemos apoiar e dar backup. Já que não há apoios para além disso, é sempre bom ouvir alguém a dizer que vale a pena continuar, que este é o caminho.
Em relação aos vossos projectos, antes desta nova mixtape ainda só tinham um trabalho editado. Sentem que essa primeira mixtape vos colocou no mapa?
[TILT] Tivemos bom feedback. Mais do que estávamos à espera na verdade.
[MASS] Essa mixtape foi o culminar dos vários anos que passámos juntos. Se calhar poderia estar melhor a nível técnico porque foi uma cena que foi sendo feita, não tínhamos um conceito, não tínhamos ideias e íamos gravando sons basicamente. Acho que temos muito mais potencial do que aquilo mas acho que também representa o que nós somos. Cenas sujas. Cenas cruas. E acho que é por ai. Apesar de não ser a cena mais bem pensada de sempre, representa aquilo que nós somos. É essa a ideia.
[TILT] Depois também temos muitas personagens que foram aparecendo. Aquilo é o resultado de muita coisa. Sofreu bué alterações.
[NERO] Ao fim e ao cabo aquela primeira tape é como uma primeira parte do Perdidos & Hashados…
[TILT] Ya, tipo isso. Isto agora não difere muito no que toca ao método de selecção. Eram sons que nós fomos fazendo.
E tendo em conta que o início da crew contava com muitos mais membros, como já referiram atrás, sentem que com o emagrecimento do grupo houve alguma alteração no vosso registo?
[TILT] Faz diferença, claro. Uma voz, uma frequência diferente… Seja quem for, trazia uma visão diferente e quantas mais melhor.
[MASS] Se formos a ver, a maior parte do pessoal deixou de rimar…
[TILT] Ou deixou de rimar, ou está escondido, ou está desaparecido por momentos e já aparece (risos)…
[MASS] Acho que o pessoal que fazia parte de ORTEUM rimava bem. E tinham todos alguma coisa a dizer, a acrescentar… Era um super-grupo, mesmo.
[NERO] Na primeira mixtape nós tínhamos um elenco maior. Sentimos um bocado essa quebra porque alguns deixaram de fazer parte do desse conjunto. Mas isso também nos ajudou a conseguir criar uma identidade de crew que agora temos nesta segunda mixtape e que, se calhar, não tínhamos na primeira. E isso conseguimos por estar a trabalhar só os três.
Isso trouxe, portanto, uma alteração na vossa dinâmica de trabalho…
[MASS] É mais fácil juntares três pessoas do que dez. Quer dizer, antes não era, por acaso (risos). Antes não trabalhávamos, tínhamos bué tempo livre, podíamos faltar às aulas… O tempo traz responsabilidades. Isso foi ficando cada vez mais complicado mas, ao mesmo tempo, agora somos três e por outro lado é mais fácil.
Como descrevem este novo registo com as tais mudanças na ética de trabalho?
[NERO] Temos dois ou três sons em que estamos a rimar mais cruzado. E esses sons foram todos escritos aqui, em conjunto.
[TILT] É diferente. Passar a ser um trio obriga-nos a inovar, a criar algo novo. Fazer disso uma vantagem.
[MASS] Mas o feeling continua o mesmo!
[NERO] Por exemplo, a participação do Vácuo. Nós fizemos um churrasco, ele veio aqui conviver connosco e criou-se a ligação necessária para ele gravar. Caso contrário não tinha feito sentido. Foi assim que aconteceu e é assim que acontece normalmente.
[MASS] O L-ALI também foi a mesma cena. Veio ai, escreveu e gravou a dica dele.
[NERO] Temos também o Oaoji, mas isso são cenas que já cá estavam gravadas.
[TILT] É perdidos e achados! (risos)
[MASS] O skit do Blasph…
[TILT] É Perdidos & Hashados logo pelo facto de, quase mais um vez, termos ido buscar material que tinha ficado para trás e não lançámos na altura. E agora olhamos e pensamos…
[MASS] “Se calhar merece, né?”
[NERO] Ya, estão aqui pérolas!
E sentem que o nome ORTEUM já causa impacto no circuito independente?
[NERO] Eu acho que sim.
[MASS] Pelas cenas que têm saindo temos recebido bom feedback.
E acham, que a par de outros países da Europa e, até mesmo, na América, é possível vingar dentro desse mercado independente?
[MASS] Não temos público. Fiquei contente com a cena do NERVE, conseguiu chegar a bastante gente. Está a ter destaque e acho que merece. Mas também há outro pessoal que merecia ter buzz e não tem.
[NERO] Há muita quantidade. Há bom rap independente mas também há muito lixo. As pessoas preferem o mais básico e acaba por ser esse lixo que atinge melhores números.
Que mensagem deixariam ao hip hop para que ele deixe de ser uma merda?
[MASS] É ouvirem a nossa mixtape! E comprar!
[NERO] Quem puder fazer esse esforço valoriza sempre. Se nós temos o trabalho de o fazer…
[TILT] Ou em vez de comprar a mixtape, poupam um ou dois euros e vêm a um concerto nosso.