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Publicado a: 03/03/2017

OLHO e Lessa Gustavo desconstroem as formas do rap em Chá de Pilha

Publicado a: 03/03/2017

[TEXTO] Alexandre Ribeiro [FOTO] Direitos Reservados

 

Existe um tema recorrente na altura de falar sobre língua portuguesa: porque é que é tão difícil a música criada em Portugal atravessar o Atlântico até ao Brasil? O contrário também acontece e, por norma, o melhor da canção brasileira não chega com facilidade a território nacional. Ainda mais complicada é a tarefa do rap underground brasileiro, aquele que vive num local inóspito e de fácil esquecimento, rapidamente empurrado para debaixo do tapete da percepção colectiva.

O EP Chá de Pilha, editado em Dezembro de 2016, é um desses casos fortuitos onde o imprevisto acontece. A Língua Nativa, editora galega, foi responsável pela edição do trabalho e a newsletter – tardia, deva-se dizer – caiu no mail da redacção do Rimas e Batidas não sendo empurrada para canto. O que é que ouvimos lá dentro? A poesia de Lessa Gustavo sobreposta aos beats industriais e experimentais de OLHO para criar um ritual tribal que abala, faz pensar e desorienta – tudo o que compete à arte.

A Internet foi o ponto de encontro e a Língua Nativa foi o intermediário com o mundo real. Lessa explica tudo: “Eu conheci o OLHO por 2015 através do BandCamp. Um dia, ele foi-me mostrar um dos seus novos instrumentais e eu acabei escrevendo a letra de ‘Tumulto’ de imediato, gravei no microfone do notebook e lançámos uma primeira versão dela pelo meu selo BANAL.”

 



Do primeiro encontro à edição do trabalho, o MC brasileiro conta-nos como é que aconteceu esta reunião de talentos: “Em 2015, lancei, através da BANAL, um EP chamado Frutas Estragadas em collab com o beatmaker brasileiro Lzu. Através desse EP, o Deloise da Língua Nativa me contactou e fomos conversando, até ele ouvir a primeira versão de “Tumulto” que fora lançada anteriormente e sugerir que eu fizesse um EP completo com o OLHO para lançarmos através da Língua Nativa.”

Lessa Gustavo, o homem da palavra, revelou-nos o processo de criação: “O OLHO criava os instrumentais só e eu acompanhava o desenvolvimento. De pouco em pouco, ele foi me enviando os beats, escrevi para alguns e outros ficaram de fora inclusive. Existiram dificuldades sim, pois as baterias do mago não são tão quadradas. São bem orgânicas e descompassadas, mas gosto desse desafio de conseguir entrar na onda, pegar o tubo e sair de aéreo através da levada,” explica o MC, recorrendo a uma metáfora do universo do surf para nos transmitir a ideia da complexidade do seu trabalho.

 


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[AS PALAVRAS DE LESSA]

Em Portugal, L-Ali, Tilt e Nerve serão nomes que se aproximam da estética do MC brasileiro, mas, para ele, um oceano é distância gigantesca para tomar isso como influência. Lessa conta-nos como tudo começou: “Escrevo desde bem novo. Lembro da minha primeira letra aos 11 anos e não chegava a ser rap – nem de longe. [A] minha vontade de rimar surgiu aos meus 15 anos, em 2011. Vim a conhecer o rap alternativo e me interessei a entrar nisso, mas só comecei a lançar os meus trabalhos a partir de 2015.”

As influências, conta-nos, são nomes underground, longe de nomes mais mediáticos como Gabriel o Pensador, Marcelo D2 ou Criolo, por exemplo: “Dentro do rap brasileiro, eu citaria como influências maiores o Elo da Corrente, Lumbriga, Matéria-Prima, Átomo, Parteum, Sarksmo ou Mahal”, revelando também que os artistas que o motivam na actualidade são D4crvz, Caue, Estranho, Fraj, Arit, Makalister, Septem, Victor Xamã e Amplexo.

Quanto à escrita, a espiritualidade e a vontade de ir mais longe na exploração da língua andam de mãos dadas. Lessa elabora sobre a forma como aborda o papel (ou o computador): “Costuma acontecer de maneira bem natural, eu nunca abri olhos para as letras que vinham mastigadas. Sempre pirei nas figuras de linguagem e as uso sempre que me pareça ser conveniente. Em paralelo a isso, vem toda a ideia existencialista que me contorna. Acabo misturando tudo que vivo, tudo que observo, e mastigo nas minhas letras, de preconceitos a angústias, do amor à racionalização. Tudo é motivo para escrever versos.”

 


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[OS DELÍRIOS SÓNICOS DE OLHO]

Ramon Silva é OLHO, produtor musical de 21 anos a residir no Rio de Janeiro, Brasil. “O nome OLHO veio do facto de eu ser um cara muito calado e muitas das vezes me encontrar em situações onde observo mais do que falo”, conta-nos Ramon, concluindo: “Foi uma forma que encontrei de expor minhas convicções, desgostos e outros sentimentos sobre os aspectos que me cercam.”

Em termos de referências, os nomes atirados pelo produtor são diversos, mas apontam todos para a vontade de experimentar que encontramos em Sun Ra, John Coltrane, Madlib, Baden Powell e Jan Jelinek. Até trabalhar com Lessa Gustavo, algo que “aconteceu de forma tão natural”, não pensava na possibilidade de produzir para rappers. Hoje em dia, produtores como Paul White, por exemplo, constroem as paisagens sónicas menos convencionais para que MCs como Danny Brown nosd entreguem a sua mensagem de outras formas, muitas vezes mais desafiantes.

 


[PROJECTOS FUTUROS] 

A partir daqui, o mundo é deles através das batidas e rimas não-convencionais. Os dois têm trabalhos para ser lançados: Lessa está a gravar um álbum que será lançado via RWND Records ainda em 2017 e OLHO quer editar um projecto até meados de 2017. Do Brasil para Portugal, o caminho não é fácil, mas vamos furando entre o barulho carnavalesco para encontrar pérolas escondidas como este EP.

 


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