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Publicado a: 28/04/2017

Noite de afinidades electrónicas no Musicbox

Publicado a: 28/04/2017

[TEXTO] Diogo Pereira [FOTOS] Nash Does Work

Daedelus marcou a segunda edição das noites Elective Affinities, evento que é fruto de uma parceria entre a Match Attack, agência de talentos alfacinha na área da música de dança, e Musicbox, conhecida discoteca lisboeta do Cais do Sodré que acolhe regularmente artistas de hip hop e electrónica na sua programação.

Esta edição contou com três artistas oriundos de diferentes espectros e geografias da música electrónica: Mr. Herbert Quain e GPU Panic, dois portugueses que circulam nas órbitas mais remotas da experimentação no género, e Daedelus, arquitecto sonoro inimitável da beat scene de LA.

Esta foi, de facto, uma noite de afinidades, e aquilo que une estes três músicos é a sua incansável vontade de experimentar, o seu amor à música e o seu fascínio pelo som em todas as suas possibilidades encantatórias. E foi também uma noite ecléctica, feita à medida de uma zona com essas mesmas qualidades, que inclui cafés e bares com esplanada, indianos a vender flores e borboletas de plástico fluorescentes e uma casa de strip do outro lado da rua. Uma típica rua nocturna em Lisboa, portanto.

E uma noite especial também para mim, se me permitem. Primeiro, conheci Daedelus com 15 anos, após descortinar o autor por detrás da sample de “Accordion”, de Madvillain. Ontem, 13 anos depois, vi-o ao vivo, apertei-lhe a mão e falei com ele. Valeu a pena esperar todo este tempo. Paciência e persistência, meus amigos.

O público, também ele, se revelou heterogéneo: casais de trintões, hipsters urbanos, um pitoresco quarteto de adolescentes anões, muitos turistas, um holandês de rastas louras, um casal de lésbicas tatuadas a viver no seu próprio mundo sem pudores (para quem quisesse ver), um senhor de fatiota e uma quarentona sozinha na frente do palco a abanar o capacete e a roubar as atenções. Lindo.

De resto, o ecletismo esteve na ordem da noite, signo comum aos seus três protagonistas: Mr. Herbert foi do chill out ao hard-hitting house, GPU Panic foi do synth pop ao trance e ao techno violentos, e Daedelus levou-nos do ambient onírico e espacial ao dubstep agressivo e telúrico.

 


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A noite começou tépida mas auspiciosa, com um aquecimento a cargo de Mr Herbert Quain, alias de Manuel Bogalheiro. Mr. Quain tomou conta do leme no início da noite, que começou por alguns artistas de chill out comercial como Zero 7 e FC Kahuna, e que depois evoluiu até um set de ritmos down a midtempo regados com vozes femininas sussurradas, com gráficos de chamas alaranjadas e polígonos azulados projetados atrás dele. Meio dançável, meio relaxante, cumpriu o objetivo de aquecer o público e prepará-lo para o que viria a seguir. E logo no início, inadvertidamente, lançou uma sample vocal que se viria a tornar o mote da noite: “Electrify me”.

A casa demorou a encher, mas na altura de entrar a atracção principal já estava composta de party people sedenta de ritmos infecciosos. À 01:30 entrou o cabeça de cartaz. Alfred é um homem de excentricidades, desde a personagem mítica que decidiu adoptar como persona artística, o inventor que escapou do seu próprio labirinto construindo asas, cujo filho morreu por voar demasiado perto do sol, até ao seu aspecto em palco (e em público). É conhecido pelos seus suspensórios, patilhas obscenas, cabelos revoltos e fatos coloridos de dandy vitoriano, com blazers de decote enorme e único botão apertado na cintura.

 


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A sua apresentação de ontem não desapontou os fãs do seu visual icónico: blazer tweed verde, camisa e gravata burgundy, patilhas espessas e longas até ao queixo e cabelo desgrenhado. Ladies and gentlemen, Alfred Darlington, aka Daedelus, o inventor-carpinteiro da mitologia grega.

Daedelus (que constrói os seus próprios instrumentos) é conhecido pelo esoterismo da sua sonoridade, demonstrado no ecletismo das suas samples, que vão desde bandas sonoras de clássicos da Disney no seu álbum de estreia, Invention, a música brasileira em Denies the Days Demise e Righteous Fists of Harmony.

E nesse aspecto também não desiludiu a audiência: a sua abordagem consiste numa escolha criteriosa de samples a priori, atribuídas aos botões cintilantes dos seus monomes que depois são carregados a todo o fulgor, com aparente caos mas nunca sem método.

 


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O seu setup foi minimalista, mas idiossincrático: um Macbook a seu lado (sem a habitual fita preta a tapar o logótipo da maçã, o que é digno de nota) a controlar as hostes e é claro, os seus dois fiéis monomes, as estrelas da noite para os mais curiosos, o centro das atenções. Duas pequenas caixas com uma grelha de botões fluorescentes, cada um imbuído de uma sample escolhida a dedo. A partir daí, a audiência ficou rendida aos indicadores de Daedelus, que comandavam a seu bel-prazer vozes femininas de soul clássico pitch shifted, bleeps e bloops de sintetizadores de antanho, ritmos electrónicos e toda uma panóplia de sons cuja origem é impossível discernir. E, é claro, a sua toalha branca para limpar o suor. Também um fiel e necessário aliado.

Embora não seja um DJ, e por isso não tivesse pratos para girar, soube manter-se ocupado e focar a atenção do público, nunca perdendo a energia. Ora abanava a cabeça e limpava o suor da testa com a toalha branca, ora lambia o dedo com a ponta da língua antes de premir os botões dos seus monomes, ora se curvava em cima dos seus instrumentos, ora cantava os seus samples, ora levava a mão ao peito, além de se ter desdobrado numa miríade de gestos, desde o air scratch ao slide, como um robô excitado e descontrolado. E até dançou. Tudo sem perder o fulgor e o fôlego. E quando entrou e saiu de palco, fê-lo de mão atrás nas costas, como o verdadeiro dandy que é. Que pode um espectador pedir mais?

Daedelus, que nos habituou a sets complexos, voláteis e intensos (assim o atestam os seus Boiler Rooms de Londres e Nova Iorque), não desiludiu: esta noite todas as regras foram válidas.

Começando por um techno de vozes sintetizadas e pitch shifted ao estilo de Oneohtrix Point Never, deslizou suavemente para uma homenagem à sua própria casa (Brainfeeder) com o clássico “Them Changes” de Thundercat, e pronto: o público estava nas suas mãos. A partir daí, desdobrou-se em várias modalidades de música de dança, desde um footwork mais agitado ao dubstep infrene e ao drum’n’bass áspero à la Ken Ishii, sem nunca tirar os olhos da pista de dança, levando o público ao êxtase, fazendo-nos todos acreditar que tudo vai correr bem no fim, sensação que só os grandes músicos nos podem incutir.

Toda essa abordagem ecléctica, aliás, levou-nos, de certa forma, numa viagem pela história da música, desde os ritmos garage e drum’n’bass britânicos dos anos 90, ou ao trap e dubstep americanos do século XXI. Algumas vozes, alguns samples, mas muita, mesmo muita ênfase e insistência nos ritmos, que por várias vezes engoliram a sala num dilúvio de estática e batidas pesadas. Infelizmente, num set desta natureza não houve espaço para os seus clássicos ou o seu material de estúdio, ansiados por fãs como eu, tirando uma breve aparição de Special Re:Quest do seu mais recente Labyrinths.

Mas houve surpresas e recompensas para quem estava atento, como o riff de órgão e a voz de Minnie Riperton de “Inside My Love”, em loop, momento inusitado mas muito bem recebido a meio do set. Pitch shifted, claro.

Além de excêntrico, Daedelus continua experimentalista, como sempre foi, apostado em fundir as possibilidades sampladélicas do hip hop mais left-field com a electrónica mais dançável e as tonalidades mais subtis do ambient e do chill out. Sem nunca descurar a voz, que é deformada e manipulada. A sua música continua a desafiar classificações, e não é por acaso que a maioria do seu catálogo no Discogs é identificada apenas com a etiqueta de experimental, deixando para trás identificadores como IDM, breakbeat ou techno.

E faz tudo com esmero, profissionalismo e muito gosto que está bem patente nos seus sorrisos e gestos em palco, que emanam o prazer de alguém que gosta do que faz e que já o faz há muito tempo.

 


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A noite continuou violenta e intensa com o trance e o synth techno de GPU Panic, a evocar Faithless: ritmos infrenes e ácidos pontuados pelos gritos sintetizados, ecoados e etéreos de Guilherme Tomé Ribeiro que fizeram lembrar o grito de The Rainmaker samplado por God Within em “Raincry”.

Mr. Herbert (e o seu icónico cigarro na ponta dos dentes) regressou aos decks para fechar o evento com um set de house minimal sem grandes surpresas, feito de ritmos pulsantes e baixos de fazer tremer o chão, numa noite que infelizmente se prolongou demasiado e podia ter acabado mais cedo sem se ter perdido nada.

Como foi dito no início, esta é a segunda edição do Elective Affinities. Com este cartaz, esta afluência, este sucesso e esta música, há dúvidas que existirá uma terceira?

P.S.: Uma pequena confidência só para quem nos lê: na véspera do concerto, consegui contactar Daedelus via Facebook e pedir-lhe que tocasse algumas faixas dos seus primeiros álbuns só para minha satisfação egoísta. E ele anuiu ao desejo de um estranho miles away, imiscuindo-os no meio do seu set. Se isto não é um tremendo sinal de humildade e generosidade de um artista, não sei o que é.

 


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