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Publicado a: 29/10/2017

Nerve, Praso e Tilt no Titanic Sur Mer: A palavra na ponta do icebergue

Publicado a: 29/10/2017

[TEXTO] Gonçalo Oliveira [FOTOS] Sebastião Santana

Esqueçam a versão hollywoodesca com que James Cameron abordou o naufrágio do Titanic em 1997. Esqueçam Jack e Rose. No entanto, não se esqueçam de algo importante: isto continua a ser uma história trágica de amor, embora não tão efémera e espontânea quanto o acontecimento verídico romanceado e adaptado para o cinema. É com o hip hop que Tilt, Praso e Nerve mantêm uma relação de cumplicidade e respeito que, combinados os números, leva já mais de três dezenas de anos de duração. São MCs de hoje, mas também do ontem e do amanhã.

Seria justo poder hoje olhar para este trio e vê-lo num patamar superior àquele em que actualmente reside. Nerve surge enquanto o único caso de maior mediatismo dentro deste grupo mas, ainda assim, a cultura do hip hop em Portugal parece andar meio adormecida, distraída com as brincadeiras que vão aparecendo, ignorando o suor de quem está realmente a tentar trazer novos argumentos para a mesa. MCs influentes e com anos de casa são esquecidos na prateleira. Rappers de fim-de-semana e vedetas do Twitter, Facebook e YouTube vão ganhando terreno com base nos números de seguidores da cultura do viral e do descartável.

Numa casa cuja lotação ficou a pouco mais de metade, os espaços vazios não se fizeram notar em termos auditivos. O Titanic pareceu mais cheio do que realmente estava, tal eram os agradecimentos do público, tema após tema, dando graças aos seus Mestres de Cerimónias pela crueza e pela beleza que empregam nos seus versos. Uma plateia diversa de faixas etárias, com muitos praticantes do rap nacional que se uniram para celebrar a força das palavras. Gente de Lisboa, Linha de Sintra, Margem Sul, Caldas da Rainha, Lourinhã, Marinha Grande, Porto… Escolham vocês. Ontem, todos os caminhos foram dar ao Cais do Sodré.

A noite no Titanic Sur Mer começou com uma grande concentração de pessoas nas imediações do clube que beija as margens do Tejo. DJ Apu foi o primeiro a entrar em acção, garantindo o mood correcto para o evento que por lá se celebrava, dando argumentos para os que que chegaram antes das actuações permanecessem próximos do palco. É no scratch que reside uma das armas mais fortes do DJ da Margem Sul que é metade da Máfia do Caril, o tempero perfeito para dar ainda mais sabor a uma já refinada escolha de temas, como é seu hábito.

 


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Tilt era o primeiro a subir à arena que se revelou ser uma das mais sangrentas de que temos memória. “Epidural”, logo à entrada, para amenizar as dores que a sua actuação poderia provocar. “Respeita-me”, suplicava à saída do tema que deu abertura a ACC/CDM, carregado de ligações entre a dádiva do nascimento e o seu murro na mesa onde se afirmava enquanto um digno merecedor de apreço por parte da cultura do hip hop nacional. Muka voltou a ser o companheiro de Tilt, tal como aconteceu na actuação no Disgraça, servindo o rapper da Margem Sul com as frases que lhe permitiam recuperar o fôlego. Na retaguarda, Dysiled voltou a dizer “presente” atrás dos pratos. “Loop de Pensamentos” e “Karma d’Éden” foram os temas colaborativos que colocaram os dois MCs em maior interacção, havendo ainda espaço para Muka brilhar a solo por duas vezes. Um tema inédito dava a conhecer melhor o parceiro de Tilt, que recolheu um dos maiores aplausos da noite ao deambular por “Fantasma”. “É o meu tema favorito de todo o EP”, confessava o rapper da crew ORTEUM ao apresentar a faixa de Karrossel, Karma.

Pelo meio da sua exibição de gladiador, Tilt largou a espada e abriu o peito àquilo que apelidou de “uma carta aberta para o hip hop”. Perante um breve momento de silêncio, declamou um conjunto de versos carregados de sentimentos, na óptica de quem já há muito pertence ao hip hop nacional e observa com tristeza alguns dos aspectos da evolução do género musical que nasceu no Bronx. Com a bússola a apontar para Portugal, foram várias as mensagens que Tilt procurou transmitir aos seus ouvintes, apelando ao bom senso e aos pilares que edificaram a cultura urbana tal como se lê na história. Evocou os Killa Beez enquanto exemplo e mandou algumas farpas aos entertainers que trocaram as palavras pelos “skrrrt”. “Eu preferia mais um som do Osiris e trocava-o pelo próximo álbum do Viris.”. O que ele disse ainda vai ecoando por estes lados…

A despedida do palco juntou-o a Nero e Mass, que representaram ORTEUM no Titanic com dois temas: “R.U.A.” fez-se ouvir sem Scorp, mas trouxe consigo um novo verso de Mass, que ficou ausente de Perdidos e Hashados; “Anda” foi o tema inédito que serviu para apimentar o futuro do trio, que tem estado em estúdio a jogar em diversas frentes.

A troca entre Tilt e Praso foi rápida e praticamente imperceptível, dando pouca margem de manobra aos que queriam deslocar-se para outro lado por alguns instantes. Subtil e Richard Beats ajudaram-no a representar Alcool Club em palco, juntando-se DJ Apu nos pratos e ainda Jugador, membro da família Artesanacto, que ajudou na entrega dos backvocals que os temas do rapper de Sines pediam. Foram vários os projectos que Praso revisitou na sua passagem pelo Titanic Sur Mer, casa que que tinha já recebido um concerto de arromba por parte dos Alcool Club em Março. Não faltaram temas de Caçador de Sonhos, bem como o clássico “Qualquer Coisa e Um Pouco de Jazz”, faixa pelo qual o público tanto esperava. A actuação teve ainda um a capella de cada um dos três MCs que se apresentaram em palco e também serviu para mostrar a Lisboa como soa “Raiva de Ontem”, o primeiro avanço do terceiro álbum de Praso, agendado para 2018.

 


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A saída do palco do rapper de Sines trouxe-nos um compasso de espera enquanto se ultimavam os pormenores para Nerve lançar o caos. Os tripulantes do Titanic que se encontravam mais afastados do palco, sentados ou na rua, rapidamente garantiram um lugar para ver de frente o “Monstro Social”. Sozinho a encarar a multidão, como é habitual nos seus espectáculos, o rapper seguiu o guião que tem desenvolvido nos últimos dois anos e executou mais um concerto a roçar a perfeição. Perfeição essa que não atingiu por culpa de outrem. Uma das colunas de som da casa de concertos perdeu o gás a meio do percurso e foi necessário proceder à resolução do problema.

Na mala, Nerve trouxe-nos o habitual reportório de T&C/AVNP&NMTC, o aclamado álbum que editou em 2015 e que o lançou novamente no circuito do hip hop. Nunca é demais relembrar “Nós e Laços” ou “Subtítulo”, o tema que utilizou para terminar a passagem pelo Titanic Sur Mer. Todas as faixas ganham sempre uma nova vida através da performance emotiva com que Nerve apresenta os seus trabalhos ao vivo. Para manter a tradição dos concertos anteriores, também o Sacana Nervoso guardou um a capella de cortar a respiração para os que se juntaram à sua frente. “Pobre de Mim” foi um dos temas interpretados que não eram parte do seu mais recente longa-duração, tal como “Acena”, faixa de Frankie Diluvio Vol.1 que trouxe Blasph ao palco para se juntar ao MC com quem partilhou casa nos Sistema Intravenoso.

Ontem, Nerve, Praso e Tilt deram indícios de que é possível criar um “icebergue” que incomode o “Titanic do hip hop português”. Temam aqueles que ainda não desenvolveram as guelras, pois não é fácil a vida à deriva no alto mar.

 


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