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Publicado a: 27/08/2018

Mosh e Kung Fu no Paris Summer Jam 2018: o retrato de uma noite de sonho na U Arena

Publicado a: 27/08/2018

[TEXTO] Manuel Rodrigues [FOTOS] Ryan Grim / MZK Live

“Isto aqui não é a Casa Branca. Nós aqui unimos as pessoas, não as dividimos”, partilha Pharrell Williams ao microfone, nos primeiros minutos do concerto dos N.E.R.D. no festival Paris Summer Jam 2018, na U Arena, em Nanterre, a escassos quilómetros do centro da capital francesa. Se há coisa da qual os N.E.R.D. se poderão gabar, depois do magnífico espectáculo que serviram naquela que é a maior arena europeia, infelizmente a meio gás (dos 38 mil lugares disponíveis, pouco mais de 15 mil estariam ocupados), é da sua capacidade de conduzir um público à loucura, com recurso a clássicos do repertório da banda e do espólio do próprio Pharrell Williams.

Destacar o homem de “Happy” num concerto dos N.E.R.D. pode parecer algo injusto, tendo em conta o importante papel desempenhado pelos seu companheiros na missão, mas a verdade é que é nele que se centra toda a trama da acção. Pharrell é alguém que sabe qual a melhor conjugação de instrumentos ou qual a estética certa que uma canção deverá ter para alcançar o sucesso, ou seja, trocando por miúdos, é alguém que sabe as melhores manhas e artimanhas para vingar no mercado discográfico. E isso transita igualmente para o exercício ao vivo, onde o seu toque de Midas também se faz notar.

Em “1000”, tema incendiário do recentemente editado No One Ever Really Dies, Williams pede várias clareiras na plateia, como preâmbulo para um suado mosh pit, não se ficando por aqui e organizando as figuras geométricas (um círculo maior aqui, dois mais pequenos acolá…) qual polícia sinaleiro sedento de confusão em pleno tabuleiro de uma plateia por esta altura em hora de ponta – os presentes não se deixaram intimidar pelo cenário longe de esgotar e concentraram forças na linha da frente. Resultado? Um cenário de puxa-empurra digno de um concerto de metal. E quanto maior a eficácia, mais exigente se mostrou o colectivo, como viria a acontecer, já no final, com “Lemon”, canção que trouxe a palco os Brockhampton, contando igualmente com a coreografia da já muito reconhecida e aplaudida Mette Towley, e onde se testemunhou uma nova cena de ”pancadaria”.

O desfile de êxitos foi uma constante no concerto dos N.E.R.D., quase como se de um concentrado vitamínico se tratasse. “Lapdance”, “Everyone Nose” (com direito a reprise, lá mais para o fim, numa dispensável mashup com a mais-do-que-gasta “Seven Nation Army”) e “Deep Down Body Thurst” foram alguns dos momentos mais celebrados, com muita energia à mistura, garantida por uma banda dividida entre bateria, teclados, guitarra e baixo, uma configuração que transportou muitas vezes o concerto para paisagens rock, onde todo o nervo e electricidade se fez sentir, muitas vezes em versões ligeiramente descoladas das originais, com Pharrell a fazer piscinas de um lado ao outro do palco, ora aos saltos feito louco ora arremessando os pés para diante em danças próximas das tradicionais russas.

Pharrell Williams carrega consigo uma poderosa colecção de obras musicais, tenha ela o selo dos The Neptunes (colectivo que partilha com Chad Hugo) ou a sua própria assinatura. Atente-se neste medley de luxo servido sensivelmente a meio do concerto: “Stir Fry”, “Drop It Like It’s Hot”, “Pass The Courvoisier” e “Apeshit”. Para além de visitarem várias épocas do hip hop, da viragem do milénio à actualidade, do boom bap ao trap, esta espécie de almanaque comprova ainda o extenso e fausto cardápio de artistas com os quais o músico e produtor já trabalhou, de Busta Rhymes a Snoop Dogg, dos Migos aos Carters. A reacção na plateia não podia ter sido outra: êxtase total.

Houve ainda espaço para servir uma surpresa ao público francês, por este ter “acolhido tão bem”, segundo Pharrell, o colectivo norte-americano. Luzes reduzidas, silêncio na sala e uma simples cama instrumental para receber o falsete de Williams na introdução de “Get Lucky”, canção dos franceses Daft Punk que a plateia abraçou como se fosse sua. O restante caminho foi percorrido à boleia do talento do músico norte-americano, não falhando uma única nota até ao refrão. Fabulosa prestação.

 



A noite a Kendrick Lamar pertencia, e este de tudo fez para corresponder com as expectativas e confiança depositadas. No final do espectáculo, enquanto passavam ao lado do majestoso Grande Arco de La Défense, dezenas comentavam e colocavam em rescaldo aquilo que presenciaram no interior da arena, fossem essas pessoas repetentes ou estreantes no contacto ao vivo com o prodígio de Compton. “O concerto de uma vida”, “um espectáculo inesquecível”, “o melhor do mundo” foram apenas algumas das frases proferidas por um público de sorriso estampado e alma preenchida.

Esta foi a segunda vez que a pessoa que assina estas linhas marcou presença na plateia de um concerto de Lamar – a estreia deu-se há dois anos no inesquecível concerto servido na MEO Arena, no âmbito do festival Super Bock Super Rock. Muita coisa mudou desde então. K.Dot lançou um novo álbum, o aclamado DAMN.., que invadiu os lugares cimeiros das várias listas que agruparam os melhores discos do ano passado, editou a também muito aplaudida banda sonora de Black Panther, que conta com os temas “All The Stars” e “King’s Dead”, entre outros, e colaborou em canções de outros artistas, como serve de exemplo “goosebumps”, de Travis Scott, uma das mais celebradas no alinhamento de sexta-feira à noite.

Nos entretantos, Kendrick Lamar arrecadou ainda um prémio Pullitzer, na categoria de música, com DAMN., um reconhecimento que seria mais do que suficiente para inflamar o ego de qualquer um. Mas este Lamar continua de pés bem assentes na terra, com uma contagiante simplicidade e uma modéstia de louvar. No concerto da passada sexta-feira, na U Arena, Lamar mostrou-se igual a si próprio, de calças largas e t-shirt também ela uns números acima do tamanho que seria o seu ideal, secundado por uma banda que marcou a sua posição nas laterais de palco, deixando o centro livre para o homem da noite deambular. Na cara, o mesmo sorriso que lhe vimos desenhado em Portugal, como alguém que sobe ao palco e debita as suas rimas com o maior dos prazeres, e em seu redor uma gigantesca empatia, qualidade inata de alguém que não precisa de muito para conquistar multidões.

O início do concerto é marcado por um vídeo, onde podemos ver o nosso herói a desenvolver técnicas de combate numa espécie de templo Shaolin. Lêem-se frases como “The Damn Legend of Kung Fu Kenny” ou “Kung Fu Kenny Studied the Mothafunckin’ Greats”, enquanto o seu mestre se desmultiplica em incentivos para o treino. Este é um Lamar de técnica aprimorada, um verdadeiro discípulo da palavra, dono de um invejável caderno de poesia e prosas, guerreiro Kung Fu capaz de desferir os mais diversos golpes em forma de palavra, aluno que não se contenta com o ensino básico, procurando sempre mais e criando o seu próprio estilo. “DNA.”, o primeiro tema a visitar os nossos ouvidos, é um excelente exemplo dessa evolução de Lamar. A forma como as rimas são construídas e organizadas foneticamente, a forma como são debitadas ao microfone e ainda a forma como o rapper faz a gestão da respiração entre estrofes leva a crer que houve muito treino por parte deste Kung Fu Kenny – ou Pullitzer Kenny, como nos foi possível ler em grande no ledwall montado à retaguarda do artista.

De microfone perpendicular ao corpo mas paralelo às ideias que partilha com um público em ebulição, Kenny dá voz a temas como “ELEMENT.”, “LOYALTY.” e “LOVE.”, também eles testemunhos da destreza adquirida nos campos do flow e da construção frásica, com o público a corresponder com acompanhamentos à letra, braços no ar e saltos. “Swimming Pools”, “Backseat Freestyle”, “Bitch, Don’t Kill My Vibe” e “m.A.A.d. city” marcam o regresso ao segundo álbum do artista, com estas a serem cantadas em uníssono. É incrível como estas quatro canções conseguem todas usufruir de introduções avassaladoras e versos ainda melhores, autênticas bombas para serem largadas a meio de um concerto.

“King Kunta” é a primeira de To Pimp a Butterfly a aterrar na audiência, com o anfitrião a fazer-se novamente valer da sua apurada técnica para o efeito e servindo o segundo verso, aquele que nos aparenta ser o mais complicado, com sublinhada excelência. O mesmo acontece em “Alright”, uma das maiores bandeiras do rapper de Compton, com produção de Pharrell Williams (lá está…), que teve direito a nova reacção efusiva na plateia, com uma boa parte do público a abraçar-se para saltar como um só, uniformemente, em jeito de celebração. Lamar volta a ser milimétrico na interpretação e é aqui, neste preciso momento, que se faz evidenciar a grande diferença deste concerto para o de Lisboa. A nível de mistura sonora, de claridade e separação entre instrumentos, de equilíbrio entre frequências, de inteligibilidade da voz, este espectáculo foi muito superior àquele que teve lugar na anteriormente denominada MEO Arena. Mas mesmo muito superior.

Do alinhamento fizeram ainda parte a já referida “goosebumps”, tema de Travis Scott no qual o rapper californiano participa, e, já no final, em tempo de encore, “All The Stars”, obviamente cantada a uma só voz por uma arena visivelmente deslumbrada com a prestação deste que é, muito provavelmente, o grande super guerreiro das rimas dos nossos tempos, um Deus que desce à terra e se dá ao luxo de vestir a mesma roupa que nós vestimos, de sentir como nós sentimos – “adorei a vossa companhia, prometo voltar”, garantiu já no final – e de expressar esses sentimentos como nós igualmente o fazemos – ainda reside na memória aquele momento, na MEO Arena, em que tirou o in-ear do ouvido para sentir um pavilhão em extrema e desmedida ebulição.

Em Paris, não chegou a remover a sua monição para tirar o pulso à audiência, mas saiu de palco com um sorriso de orelha a orelha, fotocópia dos sorrisos que, mais tarde, se multiplicariam a caminho dos transportes públicos. Que noite de sonho, esta, onde assumiram principal protagonismo os concertos dos N.E.R.D e de Kendrick Lamar, mas onde ainda houve espaço para brilharem os IAM (o colectivo francês terá direito a um texto em separado, a ser publicado no decorrer desta semana), os Brockhampton e as crews de dança Elite Squad e Ghetto Style, numa batalha dirigida por Vicelow, ex-Saïam Supa Crew, da qual saíram vencedores os Ghetto Style. Ainda custa a crer que isto tenha sido possível. Há por aí alguém que possa estalar os dedos?

 


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