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Publicado a: 13/03/2017

Moses Boyd: o baterista no coração do renascimento do jazz britânico

Publicado a: 13/03/2017

[ENTREVISTA] Ricardo Miguel Vieira, em Londres [FOTO] Dan Medhurst

 

São tímidos os raios de Sol que escapam das nuvens cinzentas penduradas sobre Peckham numa sexta-feira amena e pós-aulas. O cenário na agitada Rye Lane é vívido, devendo muito aos grupos de adolescentes em uniformes semelhantes que riem e conversam enquanto marcham pelos passeios pontuados por bancas de rua enfeitadas com peixe e fruta e carne e produtos das mais diversas regiões do globo, de África às Caraíbas, da Ásia ao Médio Oriente. É uma pulsação fervilhante que Moses Boyd, o prodígio do jazz britânico com quem me vou encontrar, conhece como a palma das suas mãos. O jovem baterista, compositor, produtor e fundador da Exodus Records é proveniente de Catford, uns sete quilómetros mais a sul, mas uma generosa fatia dos seus anos de formação, enquanto homem e músico, passaram-se aqui, nesta zona de Londres onde cabe o mundo inteiro.

Talvez Boyd, há uns anos, ainda miúdo, também deambulasse cima e baixo por esta mesma avenida com os seus colegas de turma, provavelmente de baquetas em punho depois de mais uma aula de música na sua escola secundária. Porventura estaria longe de imaginar, naqueles verdes anos, que aos 20 e poucos de idade se desdobraria em gigs e colaborações regulares com reputados artistas da cidade. Menos ainda, presumo, que teria na estante do estúdio um MOBO ou um Gilles Peterson, galardões de excelência por estas bandas. Mas acima de tudo, Boyd estaria a milhas de se projectar como um dos pivôs do renascimento do jazz britânico.

 



“Este é um período fantástico, mas também muito atarefado”, começa por dizer quando nos sentamos à mesa do salão sombrio da Rye Wax, icónica loja de discos que se esconde num beco entalado por prédios antigos e degradados. Entre goles no seu white coffee, Boyd revela que esta foi uma semana de trabalho non-stop no estúdio e que na agenda estava apontado que hoje seria a sua tão aguardada folga. Ao invés, este tem sido um dia para cumprir com obrigações junto dos media, pelo que, intrigado, pergunto onde é que arranja tempo para se reencontrar consigo mesmo e desligar do universo da música. “Tenho de ser uma pessoa muito organizada e simplesmente manter tudo o que há para fazer sob controlo. Sou líder de uma banda, tenho álbuns para lançar, espectáculos para apresentar, por isso tudo passa por estruturar os dias, isso é essencial para mim. Depois estas transformações [ao longo da carreira] são inevitáveis e eu sinto-me bem a acompanhá-las.”

A atenção em torno de Moses Boyd por estes dias é inerente à sua actuação, em breve, num dos eventos mais excitantes do planeta, a convenção de artes globais SXSW. No seguimento de uma parceria entre a Jazz re:Freshed e a British Underground, Boyd e a sua banda Exodus figuram num cartaz exclusivo a artistas da nova vaga do jazz contemporâneo britânico, incluindo os conjuntos Yussef Kamaal, Native Dancer, United Vibrations e ainda os convidados especiais GoGo Penguin e Sarathy Korwar. Pelo sorriso contagiante de Boyd, o showcase dedicado ao jazz contemporâneo do Reino Unido no palco Outernational assinala, por si só, uma conquista colectiva que também se vai fazendo sentir do outro lado do Atlântico. “As pessoas têm enviado mensagens a dizer que estão muito empolgadas para assistir aos espectáculos de todo este alinhamento.”

As actuações estão marcadas para o próximo dia 15, dentro de poucos dias, mas nem por isso se lê na expressão de Boyd um sinal de stress ou ansiedade. Muito pelo contrário, a sua personalidade transparece segurança, até um absoluto domínio dos desafios que se avizinham. “Procuro oferecer a mesma energia e respeito em todos os meus espectáculos, mas compreendo a magnitude do SXSW”, explica. “É um showcase muito importante, estou consciente que esta é uma oportunidade muito boa para fazer algo por mim e pela scene em geral. A beleza desta viagem até ao SXSW é que as bandas participantes têm todas uma voz individual e única. Espero por isso que os holofotes brilhem sobre todos, até porque a cena está muito saudável nesta altura.

Fiel a uma rigorosa ética de trabalho, Boyd passou boa parte das últimas semanas no estúdio, ora em sessões dedicadas aos seus próprios projectos, ora àqueles de companheiros de música – “Só este mês fiz três sessões para EPs ou álbuns de outros músicos”.

 



No que toca a discos, 2017 está a ganhar forma como um dos anos mais proveitosos para Boyd. Por exemplo, no final do ano estará disponível na Gearbox Records o sucessor de Dem Ones, o LP colaborativo com o saxofonista Binker Golding com que o duo arrecadou o MOBO 2015 Best Jazz Act. Há também um terceiro EP de Moses Boyd Exodus a caminho, sucessor de Footsteps of Our Fathers, de 2015, e Space and Time, do ano passado. Mas o projecto mais aguardado do presente ano é o álbum de estreia de Boyd e da banda aos seus comandos. “Algumas das faixas estão gravadas desde há um par de anos”, conta. “Naquela época encontrava-me num espaço e tempo muito particulares, com outra vibe, e andava a explorar sons e conceitos diferentes. Não foi um período tão intenso como agora, o que pode ser uma bênção ou uma maldição.”

“[Neste disco] estou sempre a flutuar sobre duas zonas temporais diferentes – o antes e o agora. Acredito no processo de captação o mais fiel possível do momento criativo em que me encontro, e em daí aprender algo. Pode dar-se escutar uma faixa mais antiga e pensar, ‘hum, se calhar podia ter feito algo diferente aqui’, mas sou contra alterações ao que já foi gravado. Quando termino algo, muito raramente volto atrás e repenso o que foi feito, porque ali está documentado um momento que já passou. Então sinto que o melhor é adicionar alguma coisa nova às minhas músicas agora que sei um pouco mais sobre o processo de produção, em vez de voltar atrás e concertar alguma coisa já finalizada. O que sinto é que não podemos remendar o que já foi feito.”

O processo de constante aprendizagem de Boyd cruzou-se algures no tempo com uma eclética vaga de colaborações com produtores e músicos que navegam por sonoridades distintas. Entre essas parcerias estão Little Simz, Zara MacFarlane, Ed Motta, Soweto Kinch e até, mais recentemente, Sampha, isto para nomear apenas alguns nomes que, no fundo, formam um impressionante grupo de experientes inventores de música urbana que influenciam as produções de Boyd. “Eu não tinha a informação que tenho agora quando escrevi os meus primeiros dois EPs”, reflecte Moses Boyd. “E se observasses um gráfico da progressão [sonora] desde Footsteps of Our Fathers ao meu mais recente single, ‘Rye Lane Shuffle’, e depois o meu novo álbum e EP, então perceberias o quanto aprendi com estas pessoas. ‘Rye Lane Shuffle’ foi crucial porque me permitiu trabalhar com pessoas como Four Tet e Floating Points. Depois destas colaborações, acabei por ser introduzido ao universo da música electrónica, o que me abriu portas para pessoas diferentes, com ideias próprias e colecções de música únicas que acabaram por informar as minhas produções.”

 



Rye Lane Shuffle”, lançado no ano passado, foi eleita faixa do ano por Gilles Peterson. É um compêndio de tarolas e pratos contagiantes ritmados por devaneios serpenteantes de saxofone e um incrível magnetismo para as pistas de dança. É uma espécie de som-modelo das explorações carismáticas de Boyd na bateria e nos aparatos electrónicos, sempre na companhia de uma banda profundamente sincronizada com as visões deste artista da fronteira sul de Londres. A faixa foi misturada por Four Tet e Floating Points, dois renomados mentores de Boyd (de acordo com a descrição na entrada oficial do single no YouTube), mas a produção foi inteiramente desenhada pela baterista, que tem procurado, sempre que possível, guiar todos os aspectos de produção das suas faixas – desde a gravação à produção à mistura. Sobressai por aqui um postura mãos-na-massa, um compromisso pessoal que permite aproximar-se ao máximo dos conceitos que esboça na mente. “Comecei a tocar bateria na escola secundária, tinha uns 13 ou 14 anos. Ao mesmo tempo, tinha uma disciplina de produção musical. Foi uma época de experiências para mim, de entender como a bateria e a produção funcionavam entre si. Foi então que no momento de lançar a minha música cá para fora senti uma sinergia imediata entre a percussão e a produção. Misturei os meus primeiros EPs sozinho e ainda tratei dos efeitos e da pós-produção. Para mim, criar música sempre passou por ter uma composição, uma mistura, um som, e que tudo isto se cruzasse e funcionasse. É algo em que procuro evoluir, tanto quanto na bateria e na produção. Procuro adicionar a uma só faixa o máximo de elementos que me interessam, até porque muitas delas têm mais que ver com a qualidade da produção do que com a harmonia ou complexidade que apresentam. Por isso, à medida que cresço, faço música e conheço pessoas, esta evolução só se poderá tornar maior e mais incrível.”

Esta mentalidade é aparentemente transversal a uma geração de artistas jazz, a maioria proveniente de Londres, que está a alavancar a scene de modo inovador e inesperado. Além de serem especialistas num instrumento, muitos destes músicos, à semelhança de Boyd, são produtores e DJs que abraçaram o acesso alargado a ferramentas de produção e mergulharam no oceano de referências infinitas que são as plataformas digitais como o YouTube ou o SoundCloud.

O corrupio de experimentação livre, de misturar o tradicionalismo jazz com uma disparidade de referências de todo o mundo para construir uma composição ímpar, tem sido o carburante da reemergência da cena jazz no Reino Unido. Neste debate há que ter em conta o intrincado caldeirão cultural e social de Londres, metrópole onde brota uma multiplicidade de paisagens sónicas que Boyd e os seus pares vão absorvendo pelo menos desde cedo. “Quando era miúdo escutava rádios pirata, Roll Deep, Wiley, Dizzee Rascal, que, se reparares, não eram estrelas naquela época. Ao mesmo tempo, também ouvia Miles Davis. Felizmente nasci numa boa época e num lugar onde encontrei todas estas influências, então quando comecei a criar música só tinha de ser honesto comigo próprio. Sou um baterista, toco música improvisada que é muito informada pelo jazz, mas também mergulho em grime, garage, dubstep, reggae, afrobeat… Londres é um lugar muito especial nesse sentido. Depois o meu pai é de Dominica e a minha mãe da Jamaica, o que também conta. Além disso, somos da zona de Peckham, um lugar como existem poucos, algo que só dei valor quando comecei a embarcar em tournées e a viajar. Tenho o mundo inteiro à minha porta e isso é transportado para a minha música.”

Na verdade, não é só no Reino Unido que os ecos do jazz experimental estão a mudar. Este “reavivar” está em progressão há já algum tempo na longínqua costa oeste norte-americana. É de assinalar que, por estes dias, quando se busca o momento decisivo para esta reviravolta no jazz, há uma propensão para se apontar coordenadas para To Pimp A Butterfly, o disco de uma geração de Kendrick Lamar. Não são poucas as críticas e reflexões – e até aferições dos fãs – que revêem neste álbum uma espécie de revitalização do jazz e do funk, ao ponto de abrir novos caminhos rumo à reintrodução destes géneros na esfera pop. Mas esta transição de status não aconteceu da noite para o dia. Pelo contrário, está em fermentação em Los Angeles há pelo menos uma década, com experimentalistas como Flying Lotus, Kamasi Washington, Thundercat, Terrance Martin ou clubes icónicos como o Low End Theory a esticarem os limites de um genro que já não está circunspecto a outras eras e contextos sociais e culturais.

Agora que este renascimento atravessa o seu próprio momento de ouro no Reino Unido, pergunto se Boyd encontra diferenças significativas entre as cenas de Los Angeles e Londres. “Penso que não são assim tão diferentes. L.A. é muito diferente enquanto cidade, mas se escutares artistas como Thundercat ou Kamasi percebes que têm o mesmo ethos: uma sonoridade muito ligada à comunidade. Eles também cresceram juntos e conhecem-se socialmente, tal como acontece comigo e a minha banda, factor que considero muito importante. Conheço os meus instrumentistas há anos, cresci com o baixista e o trombonista muito antes de formarmos a banda. Diria talvez que os contextos de L.A. e Londres são diferentes. L.A. é solarengo e também tem os seus eventos negativos a acontecer, mas aquele clima social não é igual ao de Londres, o que semeia sonoridades diferentes. Mas há uma proximidade no sentido em que ambas as scenes apresentam uma infusão de vários registos – L.A. tem o hip hop da West Coast e a arte de pessoas como Reggie Andrews e Ice Cube. Eu cresci com Roll Deep e grime e Bob Marley, que sei que incluí no meu jazz. Ou seja, Los Angeles, ao fim e ao cabo, até se aproxima de Londres.”

Quando a conversa se acerca do fim, persiste um fio de luz natural que escapa pelas poucas janelas da Rye Wax e ilumina o salão pontilhado por meia dúzia de pessoas. O white coffee de Boyd está agora frio, mas pressinto que ainda havia muito que gostaria de contar sobre a sua própria jornada neste novo jazz britânico, a qual tem experimentado com um entusiasmo honesto, simples e positivo. Porém, ressalta na estória de Boyd o reconhecimento de um talento que só podia explodir quando nutrido por uma palpitante veia do-it-yourself . E a persistência desse sentimento, dessa postura autónoma e independente, têm-se revelado a mais importante das lições na carreira de Moses Boyd. “Pertenço à segunda geração de nativos das Caraíbas, pelo que sempre fui incentivado a ser uma pessoa por si só firme. Isto para dizer que sou um grande apreciador de colaborações e que não digo que nunca trabalharei com uma editora [de maior alcance]. Mas o meu objectivo é construir a minha própria visão e que esta se concretize. Fico feliz por estar numa posição em que tenho o meu próprio nicho e marca. E, se tudo correr bem, isto só vai crescer mais e mais daqui em diante.”

 


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*Artigo originalmente publicado em A Nation of Billions. Traduzido e adaptado por Ricardo Miguel Vieira.

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