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Publicado a: 11/02/2017

Moritz von Oswald e Rashad Becker no Maria Matos: zero ego, máximo ruído

Publicado a: 11/02/2017

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTOS] José Frade (Egeac)

É sempre importante quando a música levanta questões, coloca problemas e busca novos patamares. Importante porque não há avanços sem que isso aconteça. Importante ainda porque a música – toda a arte, na verdade – não pode limitar-se ao plano primário do prazer: inundar os olhos, os ouvidos e o corpo de beleza, de satisfação, de conforto é tão importante quanto submergir-nos em perguntas, transportar-nos aos limites, abalar certezas, retirar-nos, enfim, da tão badalada zona de conforto porque a arte deve também transportar-nos para zonas de desconforto e baralhar coordenadas históricas, morais, políticas, conceptuais.

De certa forma, a “performance” de Moritz von Oswald e Rashad Becker ontem no Teatro Maria Matos conseguiu fazer isso tudo: levantou questões, baralhou coordenadas, impôs até um certo desconforto. E por tudo isso foi incrível.

Um pouco de contexto: Moritz von Oswald é um decano da cena techno de Berlim, celebrado epicentro de modernidade. Parte das radicais aventuras Basic Channel, Moritz investigou a fundo a cultura techno, aproximou-se da estética dub com o projecto Rhythm & Sound que lhe forneceu válido lastro para as suas experiências com a espacialidade sónica e, na última década, tem explorado territórios crescentemente experimentais. Rashad Becker, engenheiro de referência no universo do mastering, tem igualmente afirmado uma crucial veia autoral, sobretudo através dos incontornáveis dois volumes de Traditional Music Of Notional Species editados pela Pan.

A colaboração destas duas verdadeiras sumidades no espectáculo que já percorreu certames como o Atonal de Berlim e que ontem abalou discretamente Lisboa é também a colaboração entre duas criativas formas de pensar o som e de agir sobre ele.

 


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Não há uma dimensão física na apresentação de Moritz e Rashad: o primeiro senta-se ao piano acústico e está ladeado por um histórico artefacto da electrónica, o cobiçado Synthi A da EMS, “ferramenta” de eleição para uma variada panóplia de músicos e bandas – de Klaus Schulze aos Pink Floyd, passando pelos Gong, Merzbow ou, mais recentemente, pelos Beak>. O Synthi funciona aqui como filtro e processador que transforma o piano num instrumento mutante, atonal, quase cibernético. E essa é a primeira questão que esta apresentação levanta: a execução algo maquinal de notas dispersas no piano acústico poderia, certamente, ser feita num qualquer emulador electrónico, num computador até, já que o importante é o processamento posterior dessas notas. Mas Moritz faz questão de captar a subtileza acústica do piano com múltiplos microfones que depois alimentam o Synthi. E ao fazê-lo impôe-nos uma série de questões que passam pela reinvenção da história e podem, no limite, levar-nos a considerações de ordem económica e política: esta música só é viável, como tanta outra arte, num contexto de financiamento público, em espaços, como o Teatro Maria Matos, onde o estado acaba por funcionar como facilitador de visões artísticas mais desafiantes. “Destruir” a identidade clássica do piano equivale a repensar a história, mas também a abalar as estruturas convencionais da arte “superior”, erudita, clássica. Não há virtuosismo e execução técnica complexa – Moritz usa apenas a mão direita… – mas não deixa de existir uma certa afronta, uma discreta coragem em abordar o instrumento dessa forma.

 


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Rashad Becker, por outro lado, passa a totalidade da única peça executada ao longo de cerca de uma hora de olhar concentrado sobre uma mesa onde se dispõe um emaranhado de sintetizadores modulares, sequenciadores, processadores de efeitos, tudo interligado como um ecossistema de pulsares eléctricos de onde irradia som.

Como a “performance” física de ambos os músicos é limitada ao mínimo necessário para gerar som, não se consegue perceber qual dos dois é responsável pelo quê, tirando o mais distinto som do piano que se percebe que é executado (e todos os significados da palavra se aplicam) por Moritz. Mas o que resulta depois da intervenção da máquina criada pela companhia de Tristram Cary e Peter Zinovieff e o que emana da mesa subtilmente comandada por Rashad Becker é uma incógnita já que só muito raramente a acção das mãos indica a origem de um novo som ou textura. E com isso, as personalidades individuais diluem-se no duo, primeiro, nas máquinas, depois, e no oceano sonoro total, ainda mais tarde. Imagino que projecções vídeo que revelassem quais as máquinas que cada um usa (a Synthi A estava de costas e era um mero rectângulo negro recortado pela luz e da mesa de Rashad só se vislumbravam cabos a erguerem-se das máquinas, invisíveis a partir da plateia – só uma rápida “investigação” pós concerto revelou o “arsenal” utilizado) acabassem por retirar parte da intencionalidade da peça: nas cabeças de von Oswald e Becker não será o que cada um faz que é importante, mas o resultado final.

E que resultado é esse? Parece haver uma clara intenção de cruzar mundos ou talvez até de construir um mundo novo – a música que ontem se ouviu no Maria Matos não encaixa na categoria “ambiental”, mesmo esta sendo tão ampla, apresenta subtis traços de techno e dub ainda que recuse qualquer estrutura rítmica que possa imprimir um carácter narrativo à peça, insere-se na longa tradição de experimentação electro-acústica erudita, tem algo de jazz no sentido em que vive do guião livre do improviso, mas acaba por parecer erguer-se acima de todos esses classificativos que neste caso poderiam ser redutores das preocupações conceptuais que certamente inquietam estes autores. Soa a música sem princípio e sem fim, apesar de ter claramente começado no mecânico percutir do piano e de ter terminado com texturas electrónicas em suspensão.

Nem Rashad Becker nem Moritz Von Oswald se dirigiram ao público e o final foi algo inusitado, com a saída de palco do engenheiro da Dubplates & Mastering a parecer não ser entendida pelo pianista que permaneceu sentado enquanto a cortina se cerrava apontando para o final do concerto. Mas até aí se adivinha uma clara intenção de ruptura com as tradições de “diálogo” entre artistas e público: ao imporem essa barreira, ao distanciarem-se da boca de palco, Becker e von Oswald parecem, enfim, retirar-se da equação apontando para a música como o factor realmente importante do concerto. Zero ego, máximo impacto do ruído gerado a quatro mãos.

 


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À falta de registos vídeo e áudio desta parceria, ficam aqui as mais recentes edições discográficas de Moritz von Oswald (em estreita colaboração com o lendário Juan Atkins) e Rashad Becker.

 

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