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Publicado a: 25/01/2018

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[TEXTO] Diogo Pereira 

O hip hop instrumental atravessou um percurso longo e intrigante até ser respeitado e reconhecido, desde mera presença nos lados B dos singles de 12’’, até álbuns de hip hop cinematográfico (vulgo trip-hop) como Underground Vibes de DJ Cam, Strictly Turntablized de DJ Krush e Endtroducing de DJ Shadow surgirem como obras de arte unanimemente aplaudidas, cimentando a sua credibilidade junto do público e da crítica, e aproximando-o do universo da música eletrónica. Desde então, editoras como a Ninja Tune, a BBE, a Mush e a Plug Research têm dedicado boa parte do seu catálogo ao género, desde compilações soltas até obras conceptuais.

Em Portugal, o formato foi explorado em várias vertentes (inicialmente graças ao impulso da Loop:Recordings), desde o jazz-rap de Rocky Marsiano e as suas Pyramid Sessions ao romance de Sam The Kid e o seu Beats Vol.1 – Amor, passando pelas experiências noir de Armando Teixeira enquanto Bulllet, até, mais recentemente, aos álbuns conceptuais de David Bruno, 4400 OG e O Último Tango em Mafamude.

O álbum de hip hop instrumental serve e assume várias formas e funções, e, em termos latos, o género compreende três tipos: o concept album que conta uma história (como a história de amor dos pais de Samuel em Beats Vol.1 – Amor e os filmes de espionagem de Bulllet), o que não é narrativo mas é conceptualmente coeso e alude a uma época e estética específicas (The Pyramid Sessions), e o mero conjunto de instrumentais soltos, vulgo beat tape, normalmente com efeito chillout/lounge, como os álbuns de Laurent Daumail.

O novo álbum de Hugo Oliveira, produtor e emcee portuense mais conhecido por Minus & MRDolly, está mais próximo da última categoria. Não é tão diegético como Beats Vol.1 – Amor, O Último Tango em Mafamude, The Lost Tapes ou A Prince Among Thieves, ou tão conceptual como 4400 OG, Donuts ou Music To Make Love To Your Old Lady By, sendo mais semelhante a Petestrumentals, de Pete Rock, ou um dos beat tapes de Damu the Fudgemunk.

Man With a Plan, lançado na recém-criada Kids Alone, do Porto, começa com elementos familiares da sonoridade hip hop: um sussurro de saxofone e um suave Rhodes a embalar-nos os ouvidos, até entrar um ritmo familiar e viciante e um baixo de veludo que nos transporta imediatamente para uma era específica do movimento, e uma estética particular.

Essa era são os dourados anos 90, sobretudo a escola nova-iorquina da Costa Este, representada por nomes como Pete Rock, Large Professor, DJ Premier ou Diamond D. A mesma que enfatizou a importância do ritmo, do groove e da melodia acima de tudo, o amor à música negra, ao calor analógico em vez do frio digital, e o bom gosto e elegância como postulado maior da sua ética de trabalho.

Como seria de esperar, dada a época evocada, este disco serve-se da soul, do funk e do jazz como géneros de eleição para escavação de samples (embora haja um piscar de olhos ao disco, o que faz o álbum mais ambicioso do que parece à primeira vista). Ouvimos aqui saxofones, guitarras, trompetes, flautas e pianos, aos quais se juntam os sintetizadores de Minus, embora a música soe sempre orgânica e quente, nunca fria e digital.

E como tal, os ingredientes são os mesmos dessa era: batidas boom bap pesadas e crocantes, umas teclas de Rhodes aqui e ali, baixos profundos, espessos e fluidos, pianos jazzísticos (como os de Oscar Peterson e Ahmad Jamal que tanto foram usados na altura), doces flautas e riffs de guitarra funk, embalados por algum scratch (cortesia de DJ SPOT) e vozes de rappers da época, como Lord Finesse e Edo G.

Como qualquer disco ancorado nesses tempos, não esquece a importância do baixo: gordo, profundo e líquido, a escorrer das colunas como melaço. E esquece refrões ou melodias fáceis em favor de uma groove insistente, que introduz logo no início e sustenta ao longo de toda a faixa, despedindo-se graciosamente, como o solo de trompete que fecha “Morning Skate”.

Sendo tão evocativo dessa época, há aqui muitas presenças familiares ao ouvido do conhecedor de hip hop. Nota-se que Minus quis homenagear os seus heróis, por isso ouve-se nestes instrumentais alguns sons e breaks bem conhecidos, como o célebre clamor dos Mountain em “Long Red”, samplado por toda a gente desde Common aos nossos Corona, e aquele som de saxofone tão ubíquo (que parece Submission de Tyrone Washington) que se ouve ao longo de muitas faixas de hip hop dos 90s, usado por músicos tão díspares como Kenny Dope e Pete Rock.

O seu trabalho de corte e colagem evidencia um claro amor à música, como o solo de trompete que fecha “Morning Skate” e o vibrafone delicioso na transição de “Yugotochill” para “Burton Sunday”, bem como momentos de abençoada sonoplastia, como o saxofone longínquo e os efeitos aquáticos que se ouvem em “Bridges”, a fazer lembrar o que Preemo fez quando usou um som de percussão esquisito que parece um tambor de água para construir “Come Clean” de Jeru the Damaja.

Felizmente, este álbum é rico em boas ideias sonoras, e a paleta de emoções evocada é diversa, desde o desejo de fuga citado pelo próprio até à suave melancolia e à prazenteira descontração, mas o que domina é a tal wanderlust.

Menos intensa e agressiva do que a de Preemo e tão sensual e lenta como a de Pete Rock, a atmosfera geral é fumarenta, lânguida e nocturna, mais adequada ao sofá do piso lounge do que à pista de dança, o que situa Hugo Oliveira algures entre a sensibilidade old school de gente como Diamond D e Large Professor, emulada por produtores recentes como Damu the Fudgemunk, e o hip hop abstracto de DJ Cam e DJ Krush, que partilham o seu amor por melodias simples de jazz, sobretudo de piano. Este é um vinil que assenta bem na colecção de qualquer amante de hip hop instrumental, aninhado algures entre Petestrumentals, Supply For Demand, Underground Vibes, The Pyramid Sessions e 4400 OG. Man With a Plan encontra-se no meio de todas essas obras, por ser esteticamente coerente embora conceptualmente menos coeso.

Minus disse-nos que este álbum é uma viagem (como, aliás, o indicam os títulos das faixas, como “Bridges”, “Nowhere”, “Summer Madness” e “Fishing Boots / Camping”). Essa viagem é nostálgica e o seu destino é uma época específica do hip hop, em que o vinil era rei, o scratch e o silvo eram presenças familiares e o hardware tomava precedência sobre o software (a MPC em vez do PC, como dizia Samuel Mira), antes da eletrónica ter tomado conta das técnicas de produção e substituído o calor do analógico pelo frio do digital.

Man With a Plan é uma carta de amor a uma certa era do hip hop, chamada de era dourada, em que o boom bap dominava o éter, e as batidas eram elegantes, suaves e melífluas. É a música de produtores como Large Professor e DJ Premier que Minus emula, com simples e agradáveis melodias em cima de ritmos a tempo médio e baixos de veludo. Mas de todas as referências citadas, talvez a mais notória seja Pete Rock. É a sua elegância e sentido de groove que Minus partilha e homenageia (o que em 2018 é de louvar), com os seus loops de jazz minuciosamente cortados, breaks de recorte clássico, e as vozes de rappers dos noventas em scratch, e algumas das faixas aqui parecem as de Petestrumentals, porventura a sua obra gémea.

Sendo um disco instrumental, há uma ausência de vozes, excepto quando são usadas puramente como texturas, como em “Bridges”.

Desta vez, Hugo Oliveira pôs de parte o seu alter-ego de emcee, Minus, as colaborações vocais, e os seus versos humildes, melancólicos e intimistas em tom confessional dos seus primeiros dois álbuns, e focou-se na produção (o lado MRDolly) para nos oferecer um disco de puro hip hop instrumental, fiel a uma estética particular. Mas a música continua a mesma de Distracções (2012) e Árvores, Pássaros e Almofadas (2014): o mesmo boom bap elegante e subtil de J Dilla e Pete Rock.

Minus & MRDolly pertence a uma nova geração de produtores como Damu the Fudgemunk, que insistem em soar como se ainda estivessem nos anos 90, porque percebem que as batidas soavam melhor nessa altura. Não é certamente o primeiro a fazê-lo, mas fá-lo com inegável competência e aprumo.

Tal como os produtores que emula, não adorna muito a sua música, deixando-a respirar. Não comete o pecado de a ofuscar com demasiado espalhafato. E nenhuma das batidas excede os 3 minutos, o que mantém todos os beats interessantes e nunca monótonos. Nesse aspecto, Man With a Plan é um exercício de elegância, subtileza e minimalismo. Nada é supérfluo, nada está a mais. A falta de instrumentos e de músicos convidados não o torna um álbum tão especial como The Pyramid Sessions, e a sua produção não tem os toques cinematográficos de DJ Shadow, Blockhead ou RJD2, mas isso não lhe retira carisma.

Os álbuns de chillhop abundam no Bandcamp e no YouTube (resultado do boom da música independente e dos produtores de laptop, a fazerem música a partir dos seus quartos), mas este não é tão olvidável, pela época que evoca e o inegável bom gosto que evidencia na escolha e no tratamento das samples. É bom ver que numa era povoada de trap e outras sonoridades descartáveis ainda perdura um respeito pela velha escola vindo de um produtor da nova geração.

No final destes 26 minutos de hip hop instrumental, Man With a Plan confirma Hugo Oliveira como um músico de salutar bom gosto e um excelente produtor do rap lusitano, fazendo a ponte entre nomes mais anciãos como Sam The Kid e Rocky Marsiano e mais recentes como dB, e continuando o caminho por estes traçado.

É um gesto de amor a um tempo especial na história do hip hop (não fosse o álbum editado em vinil em vez de CD), que decerto comoverá e apelará a qualquer amante da cultura com bom gosto e discernimento, que gosta do seu boom bap de recorte mais clássico, e é avesso a sonoridades mais recentes. Nesse aspecto, é um álbum talhado para um certo público, com uma certa idade e um certo gosto. Mas é uma escuta tão agradável que não exclui ninguém disposto a mergulhar neste universo sonoro, e perceber porque é que estes tempos foram chamados de “era dourada”.

 


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