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Publicado a: 25/04/2016

Mike El Nite: “Com O Justiceiro quis fazer justiça ao trap e ao rap new school

Publicado a: 25/04/2016

[TEXTO] Bruno Martins [FOTOS] Direitos Reservados

O Justiceiro não dorme. Quer dizer: não dorme até tarde. Combinámos um encontro com Mike El Nite para as dez da manhã numa pastelaria da “sua” Zona T – Telheiras, em Lisboa – e lá estava ele à hora combinada. O Justiceiro também não falha. Gabardina preta, turtle neck também preta, calças pretas e ténis pretos. E lembramo-nos que justiceiro que se preze veste de preto e este trench coat que veste é como se fosse a sua toga.

Miguel Caixeiro, filho do final da década de 80 e crescido à frente de séries com traduções brasileiras Herbert Richards e zappings por muitos poucos canais, acrescenta um twist de modernidade ao estilo de justiceiro. Boné branco – o mesmo que usava quando fizemos a primeira entrevista para o Rimas e Batidas, há quase um ano quando editou Vaporetto Titano – e cabelo descolorado. “É a minha Bieber-phase”, diz meio a brincar. “Até acho que ele está a crescer bem. Agora que assumiu as rédeas do trabalho, agora que já não faz só que lhe mandam fazer. Não gosto de tudo, mas acho que agora tem coisas mais interessantes.”

O encontro com Mike El Nite, entre saudáveis croissants de centeio com sementes e sumos de laranja, acontece por ocasião do lançamento do seu primeiro disco, O Justiceiro – disponível para download gratuito no site da NOS Discos. Depois de uma mixtape – Trocadalhos do Carilho – e dois EPs – Rusga Para Concerto Em G Menor e Vaporetto Titano – chegou a altura de criar um trabalho mais consistente e sólido. Chamou DWARF para se sentar a seu lado e assumir a cadeira do produtor para o ajudar a criar os universos de justiça e solidariedade em formato trap-banger, que, no sábado, vai apresentar no Musicbox, em Lisboa.


 

O teu primeiro disco aparece depois de fazeres a experiência de uma mixtape e dois EP. O que é que sentes que ganhaste com essa experimentação? Além de te tirarem do anonimato, também marcam aquilo que ouvimos em O Justiceiro?

Claro que sim. Cada passo influencia sempre o próximo, se calhar não directamente. Mas dei por mim a olhar para os dois primeiros trabalhos e a perceber o que é que já tinha feito e me que espectro é que me movia. Queria dar um step it up, fazer algo conciso com 11 ou 12 temas com uma estética sólida – como o Vaporetto Titano tem na embalagem, na onda e até na produção. Vejo os discos como se fossem um livro, uma colecção de roupa, ou uma sequência de quadros na parede.

Já tinhas pensado na ideia do Justiceiro ou foi aparecendo à medida que foste construindo os temas?

Eu já tinha a ideia do nome do álbum. Funciono muito assim: tenho as ideias dos trabalhos antes de os começar. E está tudo ligado: o conceito vem do nome em português da série do Michael Knight. E é o meu disco de apresentação, aquele em que eu quero mostrar mesmo a essência do Justiceiro. A minha escrita, na altura da produção, andava à volta de mensagens essencialmente críticas, políticas, mas também quis fazer justiça ao trap – ou ao rap new school – muitas vezes atacado por uma cultura que, supostamente, não é preconceituosa e acaba por sê-lo em relação às coisas novas. Há muito trap a ser feito hoje com mensagem, não é só drogas e gajas – até porque isso também havia com o hip hop clássico. O Denzel Curry, por exemplo, faz trap completamente anti-sistema e agressivo. Era isso que queria injectar no que tenha feito.

Há uns dias, nas redes sociais, apanhei uma conversa em que alguém, ao ouvir a faixa “T.U.G.A”, dizia que eras fixe, mas muito americano. Mas O Justiceiro está carregado de referências bem portuguesas – novas e antigas.

Eu falo de coisas portuguesas e uso samples portugueses. Mas o hip hop não nasceu em Portugal, nem as MPCs são portuguesas. Os gajos do boom bap é que são portugueses? Tanto o trap como o boom bap são estilos americanos!

Mas tiveste a preocupação de ir buscar referências portuguesas? Os bombos que usas em “T.U.G.A.”, o sample do programa do José Hermano Saraiva, “Horizontes da Memória”; ou uma faixa dos Santamaria…

Quis mesmo integrar samples portugueses no trap. Por que é que há-de ser só boom bap com as guitarras e o fado? Os bombos são dos Tocá Rufar e o instrumental original do “Horizontes da Memória” veio do Method Madness, um produtor do bairro da Boavista. Pedi-lhe o beat, disse que o queria no meu disco, mas ele não encontrou o projecto. Tive que reconstruir tudo e pedi ao Dwarf: “quero trap com esta sample”. O genérico tem um ambiente brutal de cloud rap!


 

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“Eu sempre tive o lado interventivo. Mas houve uma altura em que eu só queria era discotecas e electrónica para a cabeça e não pensar nisso. Mais adulto, quis voltar a introduzir essas temáticas”


Tens muitas referências televisivas. E não digo isto só por causa do nome Mike El Nite e dos títulos O Justiceiro ou Vaporetto Titano.

Sim, cresci à frente de uma televisão. Via mesmo muitas horas de televisão na sala, a brincar. Absorvi muitas coisas.

E ainda ligas à televisão?

Quando estou a jantar em casa, com a minha mãe, vejo o noticiário. Os conteúdos televisivos também se estão a alimentar muito do que se passa na internet. Video killed the radio star, e agora the internet killed the TV star. Gosto muito de ir buscar conteúdos antigos que me remetam para a minha infância. Gosto de reviver essas coisas na minha cabeça e dar-lhe um toque daquilo que se passa na minha vida em adulto. Há muita coisa por explorar em Portugal a nível de sampling, além do fado e boom bap.

A estética d’O Justiceiro não remete só para a associação à série de televisão. Aquilo que escreves, as mensagens das faixas, também tem um papel de alerta.

Eu sempre tive o lado interventivo. O meu pai é completamente de esquerda: fez parte da Brigada Victor Jara, fez tours pela Europa Soviética. Os meus pais sempre me passaram valores sociais e de solidariedade e justiça social. Mas houve uma altura em que eu só queria era discotecas e electrónica para a cabeça e não pensar nisso. Mais adulto, quis voltar a introduzir essas temáticas. Gosto de dar um twist social às músicas – já o tinha feito no “F.E.N.A.”, “Mel & Cólicas” ou “Ride a Bike”. Quando fazes as coisas de forma repetida, acaba por se tornar secante e por isso quis diluir a mensagem interventiva numa estética sonora em que pudesses estar a curtir um granda banger, mas enquanto se diz qualquer coisa.

O teu pai orgulha-se daquilo que fizeste neste disco?

Ele já foi mais inconformado. Ainda não ouviu o disco, mas acho que tem perfeita noção que tanta esfrega que levei só podia ir por aqui!

E o Dwarf, o teu produtor? Como é que aparece?

Conheci-o através de um amigo comum, que por acaso foi o designer da capa do disco. Ele tinha uma banda chamada Lydia’s Sleep, que era uma espécie de math-rock… nunca tinha feito nada de hip hop, mas gostava muito da onda de Shlohmo. Encontrámos ali um meio caminho que agradasse aos dois: houve faixas em que tinha ideias muito fortes daquilo que queria e ele superou as expectativas. Noutras nem disse nada, porque ele sacava grandes beats enquanto eu jogava consola. Correu mesmo muito bem: nunca tive uma relação tão fluída com outro produtor.

Alguns dos convidados não são assim uma novidade tão grande, porque já fazem parte do universo que tens criado à tua volta. Mas explica-nos como é que aparecem o No Fake, o ProfJam, o L-Ali e o Kaixo.

Queria algumas participações, mas não em todas. Achava que faltavam, nos concertos, mais músicas a interpretar sozinho. Foram aparecendo à medida que apareciam as faixas. “Esta malha é mesmo a cara do L-Ali”, e falava com o Hélder. O Kaixo é um dos gajos que melhor está a trabalhar em Espanha. Conheci-o através de outro amigo em comum, entrei no disco dele e esta foi a paga: temos uma malha toda ao estilo Travis Scott e Young Thug, mas toda interventiva, mesmo à galego! O ProfJam, claro que o queria no álbum. Já estávamos para fazer uma malha juntos desde o “Mambo nº1”, só que aqui não queria nada muito egotrippin e punchlines. O Mário é muito profundo, falamos muito sobre coisas cósmicas e filosóficas e quis aproveitar isso. O No Fake já o conheço há uns dez anos – foi com ele que comecei a gravar a sério. Para mim, estará sempre presente nos meus releases. O número de convidados ficou por aqui porque o disco não pedia mais participações.

E “Santa Maria”? É das lembranças de veres o Big Show Sic ao sábado à noite e o Made In Portugal ao domingo?

E não só. O meu pai, além de ter feito parte da Brigada Victor Jara, nos anos 90 teve um projecto de música Pimba: Quinzinho de Portugal. A partir daí conheci uma data de gente desse universo musical. Os Santa Maria eram mais eurodance. Mais tarde, eu e os meus amigos fazíamos umas festas e vinham sempre ao de cima os hits dos anos 90, de quando éramos miúdos. Essa faixa sempre esteve presente e da mesma forma que já tinha tido ideia de samplar o “Kanimambo” [de João Maria Tudela], pensei o mesmo para Santa Maria. Mas samplámos mesmo à séria e, aliás, até tive que falar com eles para pedir autorização.

E eles, o que disseram?

Ainda estamos a tratar das coisas, mas gostaram! É das minhas malhas favoritas do disco. é um desafio grande pegar numa música megapop e torna-la em algo mais erudito… a geração anterior à nossa fartou-se de samplar coisas dos anos 50, 60, 70. A nossa geração vai samplar os anos 90 e outra que vem vai samplar os 2000.


 

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“Decidi prestar uma homenagem ao Almada Negreiros, também ao Mário Viegas, com um texto dedicado à cena do ódio, mas mais no lado do hating. Acordei um dia, olhei para comentários que faziam aos meus vídeos na Internet e escrevi tudo de seguida. Acho que foi a última vez que escrevi alguma coisa à mão.”


O Michael Knight também era um senhor romântico – lembro-me que ele tinha uma paixão pela Bonnie. “Santa Maria” e “2P” são o lado mais romântico do Mike El Nite?

Não decidi pôr duas músicas de amor no disco: elas apareceram naturalmente. Mas são temas que gosto de abordar. Ainda assim, “Santa Maria” é um caso de amor que não é propriamente com uma mulher – é uma personificação de uma parte da minha vida. E a “2P” é uma metáfora entre os jogos de computador e o amor. No mundo “nerd” não se faz muita justiça à parte amorosa. Os nerds não têm muitas músicas de amor – o amor que se tem por uma pessoa ou pelos videojogos é muito parecido: eu fico um dia todo a jogar um jogo e não me canso e quando gostas de uma pessoa também passas o dia todo com ela e não te cansas. Os nerds também têm direito a músicas de amor e se quiserem vou à Comic Con tocar para os meus grandas putos nerds!

A seguir a “Santa Maria” aparece “Cena do Ódio 3.0”, um tema à cappela, com uma interpretação vinda do âmago. Que tema é este?

“A Cena do Ódio” é um texto de Almada Negreiros, de 1915. Depois surgiu um vídeo do Mário Viegas a declamar esse poema que vi numa aula de português. Lembro-me que eu e o No Fake ficámos a olhar impressionados… é um texto com uma acidez muito grande, interpretado de forma incrível e que podia ter sido escrito ontem! Decidi prestar uma homenagem ao Almada, também ao Mário Viegas, com um texto dedicado à cena do ódio… mas mais no lado do hating. Acordei um dia, olhei para alguns comentários que faziam aos meus vídeos na Internet e escrevi tudo de seguida. Acho que foi a última vez que escrevi alguma coisa à mão.

E gravar o tema, como foi?

Eu não sou actor. A minha irmã é actriz e eu e tenho algumas ligações ao teatro. Mas tentei personificar a interpretação do Mário Viegas daquele texto. Respirar fundo para canalizar raiva, ódio e gritar. Quando acabei, senti que estava tudo fora do peito.

É uma faixa que pensas usar ao vivo?

Acho que não. Usei como intro, só. Mas creio quando as pessoas vão ver um concerto meu não esperam uma pausa tão grande para ouvir um gajo aos gritos. Pode ser usado como introdução ou interlúdio, mas o texto todo também é difícil de interpretar. No meio de um concerto, quebra um bocadinho aquilo que eu quero fazer ao vivo.

Sábado, dia 30, vai estar no Musicbox. Como estás a preparar a apresentação?

Vai ser um pouco diferente. Vamos ter um baterista – o Diogo Sousa, que toca com o Moullinex. Não é fácil um baterista tocar trap, mas ele é bom e o resultado é brutal. Já toquei no Porto, onde toquei muitas das músicas novas. Foi fixe porque as pessoas reagiram bem. Depois do Musicbox, vamos ver o que aparece… o meu sueño de niño deste ano era ir tocar ao SuperBock Super Rock no dia do Kendrick. Para mim era um privilégio estar no mesmo festival que um dos maiores artistas da nossa geração.


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