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Publicado a: 20/05/2015

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[TEXTO] Inês Coutinho

 

Prolíficos mas atentos. Espirituais, mas práticos. Crianças da era digital. Estas seriam algumas das formulações que podíamos usar para descrever a vibração de Marie Dior, nome próprio Diogo Correia, e Mind Safari, ou João Melo. Estes dois artistas portugueses acabam de editar um split na AVNL Records, o selo fundado por RAP/RAP/RAP, Old Manual e Marie Dior que está a ajudar a trilhar os caminhos que interessa seguir na música de agora. Sim, publicações como a The FADER ou The Wire estão de olho nesta gente – mas não é por isso que eles são bons. É porque são bons.

Jordan 191 é o nome do EP, o primeiro de AERODJs, uma série de lançamentos partilhados com uma ideia simples: agregar um par de faixas de um par de produtores do círculo alargado da label e embrulhá-las num artwork/nomenclatura que herda directamente do universo da Fórmula 1.

A viagem abre com “As We Speak”, de Mind Safari. Um drone enche o ar (podia bem ser o motor de um avião – ou de um carro de fórmula um, claro) enquanto a voz pitched-down de Carl Jung discorre sobre o seu assunto favorito: como as visões (fantasias) são eventos psíquicos tão reais como as percepções mais imediatas (como ver um objeto tangível à nossa frente). “When you observe the stream of images within, you observe an aspect of the world – of the world within” é a frase que fecha a faixa, e a última verbalização do disco – não fosse a ulterior compulsão desta música essa mesmo, a de citar arquétipos e sensações e deixar as palavras para andanças mais explicáveis. Aqui, o mapa não é mesmo o território. Parecemos desde já receber uma espécie de lembrete que resume o espírito de Jordan 191: a pista de dança é sítio para se olhar mais para dentro do que para fora e por isso é que a experiência de clubbing nunca foi superficial – sofre apenas quando (demasiadas vezes) é analisada superficialmente. O mote está dado: estamos no mundo das ideias, fretados pelo veículo da AVNL.

“Cume” entra e sente-se na hora a neblina característica de Marie Dior. Congas digitais; baixo pulsante e omnipresente; bleeps num crescendo controlado de euforia. Tudo se sobrepõe nas proporções certas para originar um techno onírico, reminiscente de uma esperança perdida no update justo do trance dos 90s.

“V” é também faixa-assinatura, mas desta vez a voz é a de Mind Safari. Cruza Detroit e Chicago com ruelas portuguesas: sim, o jack pode ser deep e melancólico, as mesmas notas emocionais que um dia forçaram o nascimento das nossas trovas de amor ou o nosso folclore ou o nosso fado. Pads etéreos são o contraponto luminoso de um motivo de baixo misterioso como as visões abissais de Drexciya. Afinal, e atrevendo-me a assumir que o “V” do título é a notação romana do quinto império, o abismo que aqui podemos ouvir será talvez aquele que um dia separou os continentes, porque Lisboa e Detroit se calhar já foram vizinhas. As palmas e o hat, definidos e salientes no mix, lembram-nos que, de qualquer forma, temos de vir à tona respirar, porque somos só humanos. Uma voz de homem samplada lembra-nos disso mesmo.

Podiam ser stabs de rave clássica, se melhor organizadas, as de “Drog” – mas Marie Dior, nesta fase, não nos daria de barato um hook assim. Diogo Correia quer conduzir-nos pelos realms menos in-your-face da música de dança melódica. Não é de aleatoriedade que se trata, porque todos sabemos que o caos é só uma ordem não decifrada; este é um inesperado não-formulaico que nos mantém na pista, no melhor embalo de todos: aquele que nos faz disparar sinapses sincronizadas com as batidas do coração – todas em ritmo acelerado, como manda o techno mais escuro. E continua. Nove minutos de aproximação infinitesimal ao êxtase-rave de 2015.

É a isto que soa o nosso mundo interior, Diogo e João fizeram o favor do traduzir para música – é que a consciência colectiva de que Jung tanto falava pode bem ser explicada através de uma pista de dança cheia de corpos suados, como células a desintoxicar um corpo maior; e almas em expansão, até se descobrirem tão grandes (ou tão pequenas) que não têm remédio senão admitir que somos todos a mesma coisa.

 

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