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Publicado a: 23/03/2018

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madvillain review

[TEXTO] Diogo Pereira 

Madvillainy começa como um típico álbum de MF DOOM, com elementos familiares para quem acompanha a obra do emcee mascarado. O skit “The Illest Villains” fala-nos, através de excertos de trailers de filmes de terror de antanho e desenhos animados, do regresso de “dois dos vilões mais temíveis da América”, “figuras históricas”, “possuidores de qualidades sobrenaturais”. São eles Madlib e MF DOOM, duas das figuras mais carismáticas e acarinhadas do hip hop alternativo, finalmente reunidos para colaborarem num dos discos mais memoráveis de sempre do rap.

Mas voltemos ao início. Daniel Dumile, nascido em Londres mas criado em Long Island, atravessou um percurso curioso e idiossincrático, marcado pela tragédia e a subsequente reinvenção: dois anos depois de lançar, com os K.M.D., em 1991, Mr. Hood, um álbum afiliado com a Daisy Age dos De La Soul e o seu 3 Feet High and Rising, perdeu o seu irmão mais novo, DJ Subroc, num acidente de viação. A tragédia mergulhou-o na depressão, e num estado de espírito sombrio e violento, e Dumile canalizou essas energias negativas num segundo álbum militante e agressivo, Black Bastards, cuja capa — que mostrava um cartoon afro-americano numa forca — e letras de gosto discutível (e uma agenda política clara) foram rejeitados pela Elektra, a sua editora de então.

Para melhor digerir e lidar com todo este infortúnio, DOOM, na altura Zev Love X, fugiu, refugiou-se no submundo, e saiu de lá com uma nova identidade (uma de várias que inventaria para si mesmo nos anos seguintes), inspirada no universo das bandas desenhadas de que tanto gostava: MF DOOM (assim mesmo, tudo em maiúsculas, como faz questão de nos alertar em “All Caps”), baseado no Dr. Doom do Quarteto Fantástico, super-herói (ou super-vilão) de máscara metálica, a criação de um alter-ego mascarado como gesto de catarse e reinvenção. O resultado foi Operation: Doomsday, álbum de estreia de 1999 que captou a atenção de amantes do hip hop underground, e foi imediatamente aclamada como obra de culto.

Quem gostou do que ouviu foi Madlib, que não era estranho a alter-egos e identidades alternativas, e álbuns conceptuais, tendo lançado outro clássico alternativo, e igualmente aclamado, The Unseen, sob o seu pseudónimo de voz alimentada a hélio, Quasimoto, em 2001.

Numa entrevista ao Los Angeles Times, manifestou publicamente o seu interesse em colaborar com duas figuras respeitadas do hip hop alternativo: DOOM e J Dilla (este último viria a ver a luz do dia no excelente Champion Sound, de 2003).

Egon, gerente da Stones Throw, ouviu o dito interesse, e decidiu pôr as coisas em marcha, enviando um CD com batidas do produtor californiano a um amigo comum em Atlanta, residência de DOOM na altura. Três semanas volvidas, a magia estava feita: o homem da máscara gostou do que ouviu, e não tardaram a colaborar os dois, em Los Angeles, no mítico Bomb Shelter, um abrigo de guerra abandonado convertido em estúdio, como nos conta Jeff Weiss, da Pitchfork, no seu artigo Searching for Tomorrow: The Story of Madlib and DOOM’s Madvillainy.

Parte do álbum foi produzido aí, e a outra numa viagem que Madlib fez ao Brasil, em 2002, a convite da Red Bull Music Academy, que incluiu, como não podia deixar de ser, uma generosa dose de tempo passado no crate digging, o que explica a presença de música brasileira no álbum, em “Raid”, “Curls” e “Rhinestone Cowboy”.

Muitas das batidas foram feitas nessa viagem, a partir do seu quarto de hotel em São Paulo (processo esse que foi acompanhado numa sessão fotográfica visível no site da Stones Throw), com equipamento minimalista: um gira-discos portátil, um leitor de cassetes e um SP-303 — equipamento barato, que dá ao álbum uma sonoridade lo-fi que é parte do seu encanto. De facto, as batidas aqui são, mais do que qualquer outra coisa, sujas — ouve-se o silvo do vinil em muitas delas.

 



Na mesma viagem, o produto inacabado foi roubado e escapuliu para a Internet, e o resultante sentimento de desilusão partilhado por ambos levou a que se separassem e trabalhassem em projectos diferentes. DOOM lançou Vaudeville Villain e Take Me To Your Leader, sob os pseudónimos de Viktor Vaughn e King Geedorah, respetivamente, e Madlib colaborou com Dilla em Champion Sound.

Mas voltaram a reunir-se, e o resto, como dizem, é história.

A dupla de Madlib, o loop digga, e DOOM, o super-vilão mascarado, não é propriamente um dueto improvável, visto que ambos os artistas sempre tiveram sensibilidades semelhantes, e habitaram mundos semelhantes, e foi nesses meios que se tornaram conhecidos. Mas a fusão dos seus talentos é tão original e inaudita que se tornou compreensivelmente inspiradora para muitos, desde Earl Sweatshirt a Tyler, The Creator.

Tematicamente, o álbum é solto. Como sempre, DOOM fala de tudo e mais alguma coisa, de tudo o que lhe vem à cabeça — as memórias de infância de “Curls”, as divagações filosóficas de “Shadows of Tomorrow”, tributo a Sun Ra, e o rap de intervenção anti-belicista “Strange Ways”. Mas não há aqui, verdadeiramente, assuntos a tratar nem mensagens a passar: DOOM tanto fala de desgostos amorosos em “Fancy Clown”, como exulta os benefícios da sua planta favorita em “America’s Most Blunted”, ou fala sobre os seus pares de ténis favoritos, em canções breves que não precisam de refrões, tão impressionante é o seu flow. Nota-se que está simplesmente a aceder à zona do seu cérebro que processa e armazena linguagem e a juntar palavras em rimas para se divertir.

 



E a sua imaginação é tão excêntrica e prodigiosa que a única coisa que o mantém ancorado ao presente e à realidade são as constantes referências à cultura popular, desde anúncios televisivos a marcas de cigarros e desenhos animados, além das ocasionais alusões mais eruditas, como a textos bíblicos ou literários.

Senhor de um estilo inconfundível, DOOM nem sempre rima em sintonia com a batida, mas é precisamente aí que reside o seu charme. Os seus versos são um conjunto de metáforas, comparações, personificações, trocadilhos, e demais associações linguísticas, num discurso livre e fluido que não obedece a qualquer constrangimento. E a admirável complexidade das suas rimas continua aqui em evidência, mais do que nunca.

Sendo Dumile um poeta e um boémio, o tom ao longo do álbum oscila entre a melancolia e o humor, nunca se levando a sério. DOOM introduz assuntos, associa tópicos, desvia a conversa, volta atrás, sem um fio lógico que una tudo isto. Mas isso não importa, desde que tudo rime.

Em puro modo de associação livre e fluxo de consciência, desinibido e liberto, DOOM normalmente começa uma estrofe por uma frase sacada aleatoriamente da sua cabeça, como um provérbio ou um dizer, à qual acrescenta rimas em catadupa até se fartar da mesma rima e passar à seguinte. E fá-lo com um impressionante domínio da língua e sempre sem esforço. As rimas fluem, escorreitas, sem que se ouçam os saltos e os desvios, parecendo que ele as cospe à mesma velocidade (e com a mesma experiência) que um dealer distribui cartas numa mesa de casino.

No meio disto tudo, vai acrescentando piadas, observações, vocativos em que fala com o ouvinte directamente, excertos de conversas imaginárias, anedotas, e momentos autobiográficos. O gozo, para quem está deste lado, está em ouvir um emcee experiente e imaginativo à solta no microfone.

 



O início de “Meat Grinder” é um bom exemplo disso:

Tripping off the beat kinda, dripping off the meat grinder
Heat niner, pimping, stripping, soft sweet minor
China was a neat signer, trouble with the script digits
Double dipped, bubble lipped, subtle lisp midget
Borderline schizo, sort of fine tits though
Pour the wine, whore to grind, quarter to nine, let’s go

Ou “Money Folder”:

Let he who is without sin cast the first stone
After you who’s last, it’s DOOM, he’s the worst known
That’ll have your boom blown or even thirst bone
Rock it to a worst clone, just don’t curse the throne

Ou “Curls”:

Villain get the money like curls
They just tryin’ to get a nut like squirrels in his mad world
Land of milk and honey with the swirls
Where reckless naked girls get necklaces of pearls

Às vezes parece que DOOM — que se descreve habilmente como “the clever nerd, the best emcee with no chain you ever heard” — está a exibir-se em modo battle, mas a verdade é que as suas letras transcendem isso, e reflectem nada mais do que um amor honesto pelas palavras e pela linguagem. E devem ser apreciadas e citadas enquanto tal. DOOM ama a rima tanto como a erva ou a cerveja.

 



Consta que a fuga do álbum antes de estar concluído levou DOOM a alterar o seu registo vocal, para um mais lento e relaxado, e ainda bem que o fez, porque seria inconcebível ouvirmos estas letras noutro registo que não neste “slowly, dopely, wandering, half asleep, in a heavy, bewildered daze”, citando “Laugharne”, o poema de Dylan Thomas samplado por Daedelus no seu “Loded”.

 



Aliás, não é por acaso que DOOM rima frequentemente fora de tempo, o que não o faz parecer amador, mas realça a qualidade fumarenta e onírica do álbum e o seu flow fora de rédea. Repletos de non sequiturs e transições esquisitas, os versos de Dumile começam a contar uma história, param a meio, regressam ao início e partem para outra, sem avisar o ouvinte. E todos parecem ter sido escritos partindo do simples gesto de dar uma passa num charro ou ingerir um cogumelo psicadélico.

Plenos de rimas internas e polissilábicas, organizadas em esquemas complexos, alguns destes versos são trava-línguas, de tão densos, repetitivos e aliterantes que são, e é por isso que dá tanto gozo cantá-los, sozinho ou acompanhado. Muitos deles são absurdos de um modo quase infantil, o que faz do lirismo de DOOM um claro exercício de forma a tomar precedência sobre o conteúdo. As palavras aqui atropelam-se, saltam buracos, entram no meio do verso seguinte, enrolam-se sobre si próprias e tudo o que é permitido a um artista cujo renome lhe deu autorização para fazer o que bem entender com elas.

 



Ao longo de 22 faixas e 46 minutos, DOOM leva-nos num desfile por uma multiplicidade de mecanismos literários e figuras de estilo, e uma série de associações semânticas insólitas que unem universos que jamais pensávamos poderem ser ligados. Como muito bem disse Mos Def, num vídeo que se tornou famoso, “he rhymes as weird as I feel”.

 



De facto, DOOM não soa como ninguém, e foi essa originalidade que gerou uma multidão de discípulos e admiradores.

E certamente não soa aqui como o puto dos tempos dos K.M.D., mas como um adulto a aproximar-se dos quarentas, com uma grave dependência em drogas. A sua voz é suave e arrastada, misto entre alguém que está a combater uma constipação e quem está manifestamente sedado.

Os mais curiosos poderão passar horas no Genius a tentar desemaranhar e decifrar o significado de todas estas teias, mas a verdade é que as letras são melhor apreciadas intuitivamente, até arranjarem maneira de se infiltrar na memória e nunca mais de lá sair.

DOOM entrega-nos todas estas rimas numa voz grave, saibrosa, arrastada, meio constipada, meio ébria e pedrada, mas que nunca soa monótona (talvez seja disparatado e fácil apelidá-lo de Tom Waits do rap, mas Dumile é igualmente carismático, e tem uma voz tão memorável e instantaneamente reconhecível). Acelera e abranda, sem nunca perder a confiança e o ritmo. A sua voz inconfundível é a mesma de Operation: Doomsday e Vaudeville Villain, mas aqui soa muito mais adulta e experiente, com um flow muito mais refinado e controlado. E a sua destreza com as palavras é a mesma.

Outro aspecto curioso, mencionado por Anthony Fantano do The Needle Drop, é como DOOM consegue falar sobre si próprio e ao mesmo tempo na terceira pessoa, como um narrador distanciado das suas próprias experiências, desligado da sua própria psique e vivência, contribuindo para mitificar ainda mais a sua persona artística. Como se fosse, de facto, um super-herói (ou neste caso, um super-vilão), e não um mero rapper ou um ser humano. Muito do rap vive do egoísmo, ou do ego tripping, se quisermos, e Madvillainy consegue dar a volta por cima e vencer esse cliché com um truque original, mantendo o foco nas letras em vez do ego do autor.

Não obstante o registo de DOOM se mantenha mais ou menos constante, o álbum também triunfa na criação de várias atmosferas e estados de espírito, desde a melancolia ponderativa de “Accordion” e “Great Day Today” ao hip hop mais agressivo e frontal de “Hardcore Hustle”. E não falta aqui humor, como no derradeiro hino pro-marijuana, “America’s Most Blunted”, um tributo aos poderes salvíficos da cannabis.

 



E não há faixas a destacar, porque cada uma delas é diferente, e revela algo fresco com cada nova escuta.

E é claro que não é preciso muitos convidados (além dos seus companheiros da Stones Throw Wildchild (dos Lootpack) e M.E.D.), tendo em conta a miríade de alter-egos de ambos os músicos, dois dos quais, Viktor Vaughn e Quasimoto, participam em duas faixas (“Fancy Clown” e “Shadows of Tomorrow”, respectivamente).

Madvillainy tem os seus momentos de intervenção e realismo, mas este não é um álbum de mensagem: o que está aqui em evidência são os dotes líricos de Dumile, e o bom e ecléctico gosto musical de Madlib.

Do acordeão de Daedelus à voz faseada de Steve Reich, do MPB de Osmar Milito e Quarteto Forma ao rock psicadélico de Fever Tree, sem esquecer bandas sonoras de filmes indianos e dos filmes eróticos de Russ Meyer, além de uma colecção de excertos de rap da era dourada, cortados em finíssimas fatias, não há género musical que não tenha sido samplado neste disco. Isto sem falar em discos humorísticos de spoken word e álbuns infantis da Disney, provando que Otis Jackson Jr. tanto é um meticuloso sonoplasta como alguém que se está a divertir e a partilhar a sua enorme colecção de música com o mundo.

Madlib (que se descreve como DJ primeiro, produtor depois, e emcee por último), conhecido pelo seu trabalho com os Lootpack, e acabado de lançar o seu Shades of Blue, colecção de reinterpretações do catálogo da Blue Note, bem como o seu álbum de estreia enquanto Quasimoto, e depois da sua afamada colaboração com J Dilla, Champion Sound, acusa aqui a sua vertente de DJ, pelo ecletismo dos samples. O seu estilo é anacrónico — porque vive de samples e do passado — e ao mesmo tempo futurista e inovador, porque mistura-as e trata-as de uma maneira que os produtores de antanho não faziam.

A produção, inteiramente a seu cargo (exceptuando o skit de abertura), privilegia melodias viciantes e ritmos propulsivos (e baixos muito gordos, lentos e melosos, de morrer e chorar por mais — o de “Meat Grinder” é delicioso), que revelam uma afinidade com o hip hop mais tradicional, mas também denota a liberdade e o improviso do jazz, combinando as sensibilidades clássicas de beatmakers como Pete Rock ou Primo com o sentido de humor de Prince Paul. A sua abordagem mistura o melhor do rap alternativo dos 90s com o experimentalismo do início de século, de editoras como a Definitive Jux e a sua própria Stones Throw.

A música de Madvillainy é ancorada na era dourada do boom bap, com batidas a tempo médio, e algumas escolhas mais óbvias de soul e funk, mas é dotada de um inegável vanguardismo, patente na escolha dos samples e em certos toques de abençoada sonoplastia, sem nunca menosprezar a importância do ritmo, da melodia e do groove.

Esse experimentalismo é também notório na estrutura das canções, todas elas curtas, e despidas de refrões, e repletas de interlúdios estranhos vindos do nada. No meio temos instrumentais, excertos de desenhos animados e efeitos sonoros de origem obscura.

De facto, só mesmo Madlib para usar no mesmo disco as experiências de voz faseada de Steve Reich, música indiana e a “incidental music” de séries policiais dos 70s. Afinal, foi ele quem disse que não há nenhum sample que não possa ser trabalhada.

 



O mais familiar que se ouve aqui é a soul de “Fancy Clown”, que podia ter sido usada pelos produtores supracitados, mas tudo o resto é original, com o audível silvo do vinil a acusar a origem obscura de muitas dos samples. Como disse Eric Henderson da Slant, este álbum, melhor que muitos outros, valida o mérito artístico da cultura do sampler.

Com efeito, a música aqui corre mais riscos (tem afinidades com o jazz, pelo seu experimentalismo e liberdade criativa), sendo mais interessante e variada do que o soul e smooth jazz dos álbuns a solo de DOOM (e a sua série de instrumentais Special Herbs), embora continue melódica e acessível, sem nunca esquecer a importância do boom bap (ouçam “Sickfit”, uma das melhores batidas de sempre, para perceberem).

E é extraordinária e surpreendentemente ecléctica (vale a pena passar um bom bocado no WhoSampled a conferir tudo), não fosse ter o dedo de Madlib, conhecido pelo seu apetite voraz de digger: o produtor de Oxnard saca de um arsenal imenso e vasto, desde as bandas sonoras até ao rock psicadélico e à electrónica vanguardista de Daedelus, além do habitual soul, jazz e funk, e entre xilofones, órgãos, saxofones, pianos, guitarras e congas, não há instrumento que não se oiça aqui. Este é um álbum para quem ama música, e gosta de som.

Os violinos plangentes de “Strange Ways”, o Rhodes melancólico de “Great Day”, o órgão festivo de “Curls”, o piano tropical de “Raid”, o baixo gordo e lânguido de “Meat Grinder”. Todo o álbum está repleto de sons excitantes e peculiares.

 


 


E ainda há tempo para um momento feminino de namoro com a soul, com Stacy Epps a flutuar graciosamente em cima de um loop etéreo e aquático de sintetizador dos 80s, em “Eye”.

 


 


O álbum termina deliciosamente, despedindo-se com o suave e veraneante “Great Day”, um livre improviso em cima de um doce e melancólico solo de Rhodes, adaptado do original de Stevie Wonder (e vale a pena ficar para ouvir “Rhinestone Cowboy”, em que DOOM explica parte da história do álbum).

 


 


O rap alternativo e underground sempre se dividiu entre a mensagem positiva da procura pela verdade e o amor, e simplesmente a preocupação em ser criativo e original, e esta obra pertence sem dúvida à segunda categoria. Embora firmemente ancorada no hip hop tradicional (pela sua sonoridade boom bap e importância dada ao liricismo), revela uma curiosidade e uma vontade de experimentar que são de louvar.

A crítica, como não podia deixar de ser, encheu-a de elogios (até Robert Christgau a encomiou, concedendo-lhe um generoso A MINUS), não apenas de publicações dedicadas ao género mas outras mais mainstream, como o The New Yorker e o The New York Times. E percebe-se porquê.

Madvillainy foi um casamento perfeito entre duas mentes brilhantes em sintonia, dois dos músicos mais experimentais do hip hop, e dois artistas no auge dos seus poderes criativos: Madlib já tinha construído a sua reputação com o seu alter-ego Quasimoto, o seu álbum de tributo à Blue Note Shades of Blue, e enquanto membro dos Lootpack. E DOOM tinha sido membro de uma banda de culto e já era senhor de uma carreira a solo respeitada.

Pode não ter tido a importância histórica de Illmatic, 3 Feet High and Rising ou Enter the Wu-Tang: 36 Chambers, mas não foi menos influente e memorável. É uma obra histórica do rap alternativo, e um monumento ao que se pode fazer com pura imaginação, criatividade, talento e esforço.

A grande virtude de Madvillainy está, sem dúvida, na imprevisibilidade de ambas as personagens, e de facto nunca sabemos que sons vão sair da cartola de Madlib, ou dos lábios de DOOM. E no dom de parecer meticulosamente construído, e ao mesmo tempo inteiramente improvisado. E por mais experimental que seja, permanece junto às raízes do hip hop, pela importância que dá às rimas e batidas acima de tudo o resto.

Não é um álbum conceptual, porque é demasiado solto e alucinado para isso. Mas foi feito para ser mitificado, a começar pela capa, que mostra o seu protagonista escondido atrás de uma máscara. Como se o próprio soubesse que estava a criar um objecto de culto quando o estava a fazer.

Se há álbum de rap dedicado inteiramente à forma, às rimas, à linguagem, é este. DOOM explora a maleabilidade das palavras até aos limites e encara-as em termos de ritmo, melodia, e musicalidade, como se também fossem música (no dizer de Sasha Frere-Jones do The New Yorker, este é um álbum que celebra a linguagem da música e a música da linguagem).

Ao contrário de tantos álbuns de rap, Madvillainy é despido de violência ou mensagem, ou qualquer intenção artística além de um proclamado amor à música como diversão acima de tudo. Profundamente viciante, depois de descoberto pela primeira vez fica no ouvido e exige escutas repetidas.

Sem ordem ou estrutura planeada, todo o álbum é muitíssimo difuso e muito pouco coeso, envolto numa névoa de marijuana. Unido por uma cola ténue de skits, interlúdios e instrumentais, e quase nenhum refrão ou hook discernível, flui como uma série de cortes rápidos e impressionistas, separados por vinhetas (Sam Samuelson, do AllMusic Guide, comparou-o a uma banda desenhada), e é essa espontaneidade que contribui para o seu charme. Todas as músicas parecem mais esboços inacabados do que canções cuidadosamente compostas, e é aí que reside o seu encanto. E o facto de não ter sequela (a não ser as remisturas de Madlib em 2008) imprime-lhe ainda mais um estatuto de obra prima e objecto de culto, único no tempo e na história do hip hop.

Capaz de convencer o mais acérrimo detrator do rap enquanto forma de arte, que o acusa de não ter mérito artístico, Madvillainy é inteiramente feito de criatividade musical e amor às palavras, e tem, pura e simplesmente, boa música e boas letras, pondo de parte quaisquer outras preocupações.

Completamente despido de valor comercial (pelo menos intencionalmente), o que está em foco aqui são as rimas e batidas, e é aí que o álbum e a dupla triunfam. A música não é pobre e repetitiva, pois está cheia de melodias e ritmos suculentos e crocantes (usando uma metáfora culinária), e as letras não são fáceis, mas sim complexas e densas. Entreguem este disco a um crítico de hip hop e verão um herege convertido.

Uma obra de culto e um dos álbuns mais celebrados e mitificados de sempre do hip hop, Madvillainy é hip hop experimental e vanguardista, numa época especial para o género (o início do milénio) em que era possível fazê-lo e vendê-lo, graças a editoras como a própria Stones Throw e a Definitive Jux.

E embora nunca tenha alcançado sucesso comercial, tornou-se um clássico underground, e não há fã de rap com bom gosto e discernimento que não o conheça e consiga citar.

Musicalmente inovador, corajosamente experimental, surpreendentemente ecléctico, irreprimivelmente criativo, e deliciosamente prazenteiro, com um replay value infinito, Madvillainy é não apenas uma obra de culto, mas um monumento ao rap alternativo e um dos momentos mais memoráveis e marcantes do hip hop norte-americano.

 


https://www.youtube.com/watch?v=41-ksQerUk8

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