“I’ll never be able to compete with Pee-wee’s Big Adventure. None of us can. We’re not talented enough. It’s too good. It’s why I never finished high school. Its why I cant go on.”
Quarenta discos finalizados e uma linguagem esculpida a partir de uma visão ímpar. Talvez um dia se entenda a real dimensão de um trabalho tão peculiar e extensivo como aquele que discretamente Lil Ugly Mane ofereceu. Esta suposição alicerça-se todavia a um tempo passado dado que Three Sided Tape foi apresentado como a pedrada final de uma carreira amplamente desconhecida. Não será um caso isolado é certo, mas custa a crer perante tamanha produtividade e criatividade este produtor não tenho ido muito além do culto quase nerd que só a internet permite. No exacto momento em que poderia ter expandido em audiência, o produtor Shawn Kemp opta por implodir esse alter-ego. Honestidade, estratégia de marketing ou erro crasso, só o tempo dará resposta. No entanto, e agora que o fim foi anunciado, é tempo de observar o que sobrou desse enorme espólio rap-para-além-do-rap.
Vértice final da trilogia Three Sided Tape, não será contudo crucial escutar os capítulos anteriores para entender a verdadeira natureza do belíssimo jogging rítmico que circula neste disco. Bastará permitir o flow original de uma obra genuinamente multifacetada e densa como esta. De resto, a investida pessoal perante o que ficou atrás tratará de dar o devido enquadramento (a existir algum, claro). Embora funcione oficialmente como forma de álbum, Third Side Of Tape assume-se mais como uma mix ou instalação sonora de material quase 100% composto e interpretado por Kemp ao longo dos últimos quinze anos. Denota-se a veia irremediavelmente melómana pela abertura musical que aqui se encontra e o gosto pela liberdade artística através da anarquia consciente (e inteligente) com que monta este bicho sonoro.
Dividido em seis longas faixas (os tais lados A e B de três faces de uma suposta cassete) é difícil, se não mesmo impossível, adivinhar o que sucede minuto após minuto. Claro que isto só poderá ser uma óptima notícia para quem se dispõe a afundar neste poço maravilhosamente envenenado de Lil Ugly Mane, mas será uma péssima premissa para quem chegar aqui apenas pelo rótulo do rap. Ainda que este cosmos parta – e se faça sustentar – desse ponto, o que depois se segue toca diversas sensibilidades. Techno, punk (escuta-se Descendents a dada altura), muzak, pop, black metal, grime, folk ou puro noise são paragens obrigatórias. Porém, e como em toda a real experiência da viagem, não são os destinos que importam mas sim o que surge entre e até eles. Aplicado a Third Side Of Tape, traduz-se no modo como se sai de um cenário para o outro, deixando um rasto de classe. Se em certas ocasiões recorre a um contínuo fluído e metamórfico cunhado por J Dilla ou DJ Screw, noutras a tónica non-sense aproxima-se aos exercícios de uns Negativland ou People Like Us. Seja em que registo for, salvaguarde-se a ideia de que esta colecção de pedaços criativos foi colada com um pé no Inferno e outro no Paraíso.
Imensamente expressivo, o trabalho de Lil Ugly Mane acarreta quase sempre um grau de loucura e de pequeno génio em iguais proporções. A eventualidade de se encontrar em Third Side Of Tape um qualquer clássico instantâneo que nunca chegou a rebentar como devia é enorme. E acrescente-se-ia que igualmente constante. Quantas identidades vivem na cabeça de Kemp? Quantas carreiras poderiam viver por lá? Provavelmente nunca iremos saber, mas grande parte da magia reside aí mesmo.