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Publicado a: 23/01/2017

Krautrock: Made in Germany

Publicado a: 23/01/2017

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados

 

Quando a Segunda Guerra Mundial terminou em 1945, o território alemão foi ocupado e dividido entre os aliados e a então União Soviética, criando-se zonas administrativas controladas pelos exércitos francês, inglês, americano e soviético. Na zona ocidental da Alemanha, a presença norte-americana fazia-se sentir de forma particular. Tal como Hollywood nos ensinou, a ocupação conduzida pelos sobrinhos do Tio Sam nunca foi meramente administrativa ou militar – para que a sua presença se fizesse realmente sentir, além de tanques os americanos posicionavam estrategicamente máquinas de Coca-Cola, Cadillacs desproporcionados para as escalas europeias e antenas de rádio que propagavam essa invencível arma secreta – o rock and roll! Os efeitos de tal presença sobre a identidade da geração que emergiu depois da rendição nazi foram profundos e dramáticos.

No arranque da década de 60, a identidade musical alemã dividia-se em dois extremos: por um lado os inócuos cantores populares que na televisão davam a ideia de uma felicidade forçada, por outro o exemplo extraordinário do compositor Karlheinz Stockhausen, cuja música circulava pelos mesmos meios académicos que haveriam de incendiar a realidade política e social das capitais europeias antes do final da década. O compositor alemão esteve na Califórnia onde deu palestras sobre música experimental a audiências que incluíam gente como Jerry Garcia dos Grateful Dead ou Grace Slick dos Jefferson Airplane e, como explica Julian Cope no seu seminal livro Krautrocksampler (Head Heritage, 1995), «ao invés de desprezar a nova música, Stockhausen foi visto num concerto dos Jefferson Airplane no Filmore West e terá dito que a música o “arrasou completamente”». Os jovens músicos alemães estavam atentos: o mesmo compositor sério que simbolicamente tinha “destruído” o hino alemão na sua famosa obra Hymnen irritando tanto a esquerda intelectual como a direita conservadora abraçava também as possibilidades da experiência psicadélica. Holger Czukay, aluno de Stockhausen e ele próprio professor, mostrava obras do seu mestre a alunos em 1968. Um deles, Michael Karoli, respondeu na mesma moeda e tocou uma gravação de «I Am The Walrus» dos Beatles numa aula. Czukay, até aí imerso no universo erudito, teve uma revelação, e juntamente com Irmin Schmidt e Michael Karoli formou uma banda de rock – os influentes Can que haveriam de visitar Lisboa no final da década seguinte.

 


[KRAUT É UMA PALAVRA FEIA]

A história é sempre escrita pelos vencedores e por isso não é de espantar que a imprensa inglesa tenha recuperado a palavra «kraut» – usada na Segunda Guerra Mundial para identificar pejorativamente os inimigos alemães – quando chegou a hora de nomear uma nova geração de bandas cujos álbuns começavam a ser distribuídos no mercado inglês, sobretudo pela então atenta Virgin. Julian Cope, no já citado livro Krautrocksampler, explica que o género que engloba bandas como os Can, Kraftwerk, Neu!, Faust ou Amon Düül II é «um fenómeno britânico subjectivo». Esta ideia parece ser reforçada pelo aparecimento quase simultâneo do documentário Krautrock – The Rebirth of Germany (dirigido por Ben Whalley para a BBC 4 e estreado no final de 2009) e pelo livro que a igualmente inglesa Black Dog Publishing acaba de colocar no mercado – Krautrock – Cosmic Rock and It’s Legacy, uma compilação de ensaios sobre o fenómeno do rock alemão e de perfis sobre as suas mais importantes bandas (ver caixa). As reedições abundantes das principais obras dos arquitectos do krautrock – discos de projectos como Cluster e Harmonia com Brian Eno voltaram a estar disponíveis em vinil e, claro, parte significativa da discografia dos Kraftwerk acaba de ser relançada – significam apenas que continua a haver público para as ouvir, facto a que não será alheia a influência decisiva que a música exploratória dos mestres alemães do período 68-77 tem exercido sobre sucessivas gerações de músicos: dos Stereolab aos Mars Volta e dos Wilco aos Tortoise e Radiohead há uma linha que agora se alarga também aos Portishead, aos Beak> (banda de Geoff Barrow, também do grupo de Beth Gibbons), aos Subway, Fujiya & Miyagi ou Emeralds. O krautrock não é, portanto, uma simples memória.

Na complexa batalha pela construção de uma identidade radicalmente liberta do passado vergonhoso da nação alemã, uma nova geração de bandas cruzou visões políticas radicais alimentadas pelo fervor estudantil do Maio de 68 com a música libertária enunciada pelos negros americanos no free-jazz, com as experiências de imersão no ruído efectuadas por grupos como os Velvet Underground, com a expansão psicadélica das consciências e, claro, com as possibilidades electrónicas exploradas primeiro por compositores eruditos como Stockhausen e rapidamente adoptadas pelas bandas de rock com os olhos colocados no Cosmos.

 


[KRAFTWERK E A AUTOESTRADA DO FUTURO]

Tal como Holger Czukay dos Can, também Ralf Hutter e Florian Schneider estudaram com Stockhausen. Quando a indústria discográfica alemã percebeu que havia público para a nova sonoridade que se desenhava no final dos anos 60 – e que levou ao aparecimento de labels especializadas como a Ohr ou a Brain – uma estranha permeabilidade à experimentação abriu espaço em catálogos mais conservadores para aventuras radicalmente experimentais. Foi o caso dos Organization que editaram Tonefloat em 1970 na circunspecta RCA alemã. Com a mistura de flauta e percussão procurava-se uma nova linguagem, distintamente alemã e substancialmente diferente do rock. A mudança de nome para Kraftwerk e a transferência para a igualmente improvável PolyGram em nada contribuíram para amansar a visão de Hutter e Schneider que no tema «Vom Himmel Hoch» já recorriam à electrónica e a gravações de bombardeamentos para sacudir as consciências.

Mas foi em 1974 que Autobahn realizou inteiramente a visão dos Kraftwerk. Já com Wolfgang Flur a bordo e com o influente engenheiro de som Konrad Plank aos comandos da mesa de mistura, os Kraftwerk pareciam ter encontrado a chave mais desconcertantemente simples para o corte com o passado: a ideia de movimento, movimento em direcção ao… futuro. Autobahn celebrava as vias de comunicação, acusava os anos passados a ouvir rádios americanas com a citação a «Fun, Fun, Fun» dos Beach Boys e celebrava as novas sonoridades electrónicas produzidas pelos novíssimos sintetizadores. Na autobiografia I Was a Robot (Sanctuary Publishing, 2000), Wolfgang Flür recorda o momento em que Ralf Hutter lhe mostrou, orgulhoso, o seu primeiro Minimoog, «que naquele tempo custava tanto como um Volkswagen», primeira ferramenta na construção de uma visão singular de futuro que, em 1975, levou o famoso crítico norte-americano Lester Bangs a responder à pergunta «Para onde é que vai o rock?» lançada pelo seu editor com a certeira frase «está a ser dominado pelos alemães e pelas máquinas». Bangs tinha acabado de ouvir Autobahn.

Os álbuns seguintes dos Kraftwerk – Radio-Activity (75), Trans Europe Express (77), The Man Machine (78) ou Computer World (1981) – prosseguiram a visão celebratória de um futuro crescentemente tecnológico com uma música profundamente influente que teve igualmente a capacidade de ultrapassar as margens da década de 70 que, pelo menos criativamente, se revelaram praticamente inultrapassáveis para outros membros da sua geração.

Na música dos Kraftwerk, mas também dos Can, Amon Düül II (que tocaram no Dramático de Cascais, em 1977), Floh de Cologne, Guru Guru, Faust, Neu!, Embryo, Popol Vuh, Ash Ra Tempel ou Tangerine Dream – entre tantas outras grandes bandas alemãs da década de 70 – existem coordenadas tão vastas e tão dispersas que identificá-las com um único termo – krautrock – pode até parecer um erro grosseiro. Mas a verdade é que no meio de todos esses freak-outs, dos gritos, do feedback, dos drones, do pulsar mecânico e das ambiências electrónicas existia um claro e comum desejo de superação. Sobretudo da história e do injusto legado com que todos foram confrontados. E por desejar tanto o futuro, uma música assim nunca se conformaria em ficar encerrada no passado.

 


 

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Texto originalmente publicado na revista Blitz.

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