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Publicado a: 29/06/2018

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[TEXTO] Manuel Rodrigues 

Louis Prima quebrou recentemente um curioso recorde. O trompetista cantor e compositor jazz, falecido em Agosto de 1978, é actualmente, conforme noticiou o Stereogum, o detentor do maior intervalo temporal entre aparições na lista Billboard Hot 100. E tudo graças ao novíssimo álbum colaborativo de Kanye West e Kid Cudi, editado no início do mês com o selo G.O.O.D. Music, do qual podemos retirar o tema “4th Dimension”, responsável por catapultar Prima novamente para os topos da tabelas musicais, algo que já não acontecia desde 1961, altura em que o músico rasgou até aos lugares cimeiros com “Wonderland by Night”, ou seja, há 57 anos.

Esta continua a ser uma das maiores armas do sampling e, por conseguinte, do hip hop: a capacidade de dar uma nova vida a artistas mergulhados nos confins do esquecimento, resgatando a sua carreira para o presente, transportando a sua obra para as listas das músicas mais ouvidas a nível mundial e concedendo, em alguns casos, uma segunda hipótese de exposição mediática a quem nem sequer chegou a ter a primeira. Não é de louvar?

Se o hip hop tem o poder de ressuscitar músicos falecidos no sentido estrito e lato da palavra, também tem logicamente a capacidade de iniciar novos ciclos a artistas que se encontram activos, em pleno exercer de funções, como é o caso dos recentemente formados Kids See Ghosts, nome dado ao projecto (se é que lhe podemos chamar assim) de West e Cudi. Não se sabe ao certo se esta é uma ideia pontual ou uma conexão com os olhos postos no futuro, mas não deixa de ser o ponto de partida para algo, por mais que esse algo possa findar no exacto momento em que se fazem soar os últimos segundos da derradeira canção do disco, neste caso “Cudi Montage”, decorridos 24 minutos de escuta.

Em Kids See Ghosts, o álbum de estreia homónimo, os dois rappers embarcam numa curta e intensa odisseia através da qual enfrentam os seus próprios demónios, naquele que pode ser também um exercício de reflexão e aceitação. O tema de abertura, “Feel The Love”, pende nesse sentido. “Ainda sinto o amor”, apesar das declarações polémicas, no caso de West; “ainda sinto o amor”, apesar da falhada investida rock Speedin’ Bullet 2 Heaven, no caso de Cudi. A resposta de ambos surge sensivelmente a meio da música com onomatopeias de tiros ao mesmo tempo que as palavras “i still feel the love” se repetem à retaguarda.

“Fire” segue a mesma ordem de ideias. As palavras de Kanye (“i love all your shit talkin’” e “you ain’t got nothing better to do with yourself”) nos primeiros segundos são o prefácio para um conjunto de versos que espraiam num comportamento quase passivo-agressivo, onde reina, por um lado, a vontade de mandar tudo e todos à fava, por outro, a vitimização e o ressentimento. “Freeee (Ghost Town, Pt.2)” reforça esta ideia. O refrão “I don’t feel pain anymore / guess what, baby? I feel free” cantado por Kanye, parece ser, na verdade, uma extensão do pensamento desenvolvido em “I Thought About Killing You”: se na introdução do seu álbum Kanye lança o desafio “just say it out loud to see how it feels” (no seguimento da frase “people say ‘don’t say this don’t say that’”), em Kid See Ghosts responde com um despressurizante “i feel free”, recorrendo ao seu habitual inconformismo e à sua sublinhada aversão pelo politicamente correcto para se libertar de uma sociedade cada vez mais acorrentada a um poderoso livro normativo.

Em Sixth Sense, filme de terror de 1999, Cole Sear, o rapaz interpretado por Haley Joel Osment, tenta ao máximo combater a faculdade que lhe permite ver pessoas mortas (na origem da célebre frase “i see dead people!”) e estabelecer, de modo tenebroso e contra a sua vontade, contacto com elas (a dada altura do filme, vence esse medo e parte em auxílio dessas almas que, no final de contas, se encontram presas numa espécie de purgatório por questões terrenas não resolvidas). Em Kids See Ghosts a história é quase a mesma, como uma pequena grande diferença: West e Cudi estão a lutar contra os seus próprios demónios, aqueles que se revelam mais perigosos do que a mais mal-intencionada alma penada (no caso de Cudi, a depressão e o abuso de drogas pesadas; no de West, a bipolaridade e o consumo de opiáceos). “Reborn”, o antepenúltimo tema do álbum, soa a ressurreição, a bonança, ao erguer de corpo e mente depois de uma queda abrupta num perigoso abismo: o dos problemas mentais conjugados com o mundo das drogas. Este é um renascer das cinzas, o recomeço de um novo ciclo.

À excepção de K.T.S.E., de Teyana Taylor, todos os quatro álbuns produzidos por Kanye West (o seu inclusive) contam com um total de sete músicas, pois, segundo palavras do próprio, é a quantidade ideal para impressionar o ouvinte, para lhe captar a atenção antes que esta desapareça sem deixar rasto. Mas não nos fiquemos apenas por aqui quanto à simbologia. Para além de representar a totalidade, a perfeição, a espiritualidade e a intuição, o número sete representa também a conclusão cíclica e a renovação. Kids See Ghosts é o início de uma nova era. Não só no que diz respeito à colaboração entre os dois artistas, que enterram assim o machado de guerra desenterrado por altura da saída de Cudi da G.O.O.D. Music (acção que gerou um desentendimento entre os dois companheiros de editora), mas também no que está relacionado com os seus próprios fantasmas, não aqueles que, enquanto putos, imaginaram viver dentro dos guarda-fatos dos seus quartos, mas sim aqueles que habitam o cérebro de dois adultos de barba rija.

Alcançada esta ideia de renovação, não deixa de ser curioso o facto do álbum de Teyana Taylor, o último da série de cinco discos prometidos por Ye, ser o único que reúne um total de oito músicas, número que representa o equilíbrio cósmico, a ligação entre o físico e o espiritual, o divino e o terreno.

Kanye West não perdeu a sua dimensão sagrada, esteve simplesmente ocupado a espantar espíritos malignos.

 


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