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Publicado a: 27/04/2017

Kendrick Lamar: Com um grande talento vem uma grande exigência

Publicado a: 27/04/2017

So the next time I talk about money, hoes, clothes

God and history all in the same sentence

Just know I meant it, and you felt it cause you too are searching for answers

I’m not the next pop star, I’m not the next socially aware rapper

I am a human mothafuckin’ being

(“Ab-Soul’s Outro”, Section 80, 2011)

[PRIMEIRA PARTE]

[TEXTO] Francisco Noronha [FOTO] Direitos Reservados

Em Outubro de 2012, na Malásia, perdidos numa enorme loja de revistas a vasculhar as secções de cinema e música, vislumbrávamos, na XXL, o grande destaque dado a um rapaz chamado Kendrick Lamar (KL). Na verdade, por essa altura, já havíamos ficado impressionados com Section 80 (2011), mas foi essa peça que nos levou a recentrar a atenção sobre o trabalho de Lamar (como se vê, o trabalho jornalístico continua, hélas!, a ser fundamental para nos informarmos e compreendermos o que se vai passando). Em 2012, estávamos todos, portanto, muito longe de imaginar o unanimismo em volta do rapaz de Compton no ano de 2017, a tal ponto intenso que sempre que, numa conversa, alguém objecta ou sublinha determinado aspecto negativo ou menos bom na música do californiano, os interlocutores invariavelmente dirigem a mesma ansiosa pergunta: “mas tu não gostas de Kendrick Lamar?!”.

Não, não gostamos. Na verdade, temos para nós que Kendrick Lamar é o mais importante rapper na história do hip hop (a que conhecemos até hoje, bem entendido): politicamente (nem Tupac conseguiu a mobilização que Lamar hoje capitaliza), mediaticamente (quem gostava de hip hop passou a amar o californiano, quem não gostava, idem) e, claro, musicalmente. E fê-lo na medida em que, ao mesmo tempo que criava uma linha própria (ainda que não tão distintiva ou “autoral” como a de Drake ou de Chance The Rapper, por exemplo) fortemente enraizada na tradição da música negra (e não apenas pelo efeito “mediador” do sampling, i.é, To Pimp A Butterfly é um álbum verdadeiramente jazzístico, coisa diferente de álbuns que meramente “soam a” jazz pelos samples que utilizam), elevou a complexidade técnico-formal da construção rimática, criou mil e um flows que passaram a coexististir na mesma canção  (tanto aplica os flows acelerados, densos e cheios de aliterações hoje na berra, como depois recupera a cadência mais lenta e perceptível, “picada”, de finais dos anos 80/anos 90 e fá-la soar bem, como acontece em “Humble.”), fez do instrumento vocal um arsenal de possibilidades criativas (nomeada mas não exclusivamente, cantando muito e bem) e injectou poesia e erudição às letras sem deixar cair a linguagem popular e os slangs locais (os de Compton, desde logo).

 



Drake, como escrevemos há pouco tempo, foi, depois de Timbaland e dos The Neptunes, um dos grandes responsáveis pela transformação do hip-hop na “nova pop”; Lamar, embora por razões distintas – biografia fascinante, bigger than life mesmo; o modo como a relata através de uma escrita fabulosa; a musicalidade tremenda, culta e complexa; o poder de mobilização política num tempo em que personagens sórdidas como Trump, Le Pen, Putin ou Erdogan comandam o mundo –, é igualmente culpado, já não por essa “hip-hopização” da música pop (se, do ponto de vista musical, o californiano transcende fronteiras, nunca teve, porém, qualquer interesse em fazer música “pop” como convencionalmente se entende o termo), mas pela transversalidade do consumo de hip-hop, que, na sua figura, passou a atrair públicos que, até então, não apreciavam – ou repudiavam mesmo – a música um dia criada por Flash, Kool Herc e Bambaataa. Da electrónica à pop, do rock ao fado, da world music ao indie, quantos consumidores destes géneros, qualquer que seja a geração, não ouvem e partilham hoje nas redes sociais o novo álbum de Lamar? Poucos, muito poucos.

Portanto, “gostar” de KL, para nós, é dizer pouco: é insignificante, irrisório. O que a maioria, porém, não consegue compreender é que a admiração, por maior que seja, pode – mais: deve – conviver com o sentido crítico, campo que temos para nós – na música, no cinema, na pintura, no futebol – como irredutível. É esta incapacidade que explica que, nos últimos anos, se tenha gerado um unanimismo desinformado e acrítico em torno de Lamar, artista que, escrevendo bem ou mal, fazendo boas ou más canções, parece sempre beneficiar de um permanente e intocável estado de graça.

Sobre Gisela João e os seus recentes concertos nos Coliseus de Porto e Lisboa escreveu Nuno Pacheco, recentemente, o seguinte: “Os que hoje a aplaudem a qualquer passo ou piscar de olhos, embevecidos e acríticos, serão os primeiros a virar-lhe as costas quando a “moda” que a pretexto dela inventaram se esgotar”. São palavras que valem, numa generosa parte, para Lamar. “When shit hit the fan, is you still a fan?”, perguntava o californiano em “Mortal Man”. Ora, quando a shit hit the fan, nós também somos – sobretudo aí – fãs. E é também um pouco isso que o rosto desconfiado de Lamar na poderosa capa de DAMN. pede, que o olhemos sempre com a máxima exigência e sem consensos acéfalos: “Vocês aí todos que me idolatram… quem são vocês, o que esperam de mim?”.

O unanimismo é a tal ponto impressionante que, mesmo quando Lamar manifesta algum daqueles tiques ou posturas que, no passado, afastaria qualquer ouvinte menos conhecedor de uma canção de hip-hop, um enorme véu cai sobre o palco e todos assobiam para o lado. Veja-se uma faixa como “Humble”, em muitos momentos carregada do braggadocio mais fútil e ostentatório (e, não raras vezes, sexista, misógino, etc.): se fosse outro rapper qualquer, sobretudo um famoso por letras ostentatórias e/ou misóginas, a dizer “If I quit your BM, I still ride Mercedes (…) / If I quit this season, I still be the greatest”, “Get the fuck off my dick, that ain’t right / I make a play fucking up your whole life” ou “If I kill a nigga, it won’t be the alcohol / I’m the realest nigga after all, bitch, be humble”, seria aplaudido da mesma forma? Ou seria aplaudido sequer – obviamente com excepção dos ouvintes incondicionais de hip-hop – por um refrão como aquele em que Kendrick exige (mas ele ainda sente mesmo necessidade disto?!…) reconhecimento e reverência de todos os “lil’ bitch” (artistas, ouvintes)? Seriam versos com entrada directa para quotes de Instagram? Ou seriam só versos ostentatórios e egocêntricos típicos desses rappers que “acham sempre que são os maiores”? E quão discutível é, no campo do género, um verso como “I’m so fuckin’ sick and tired of the Photoshop / Show me somethin’ natural like afro on Richard Pryor / Show me somethin’ natural like ass with some stretch marks / Still will take you down right on your mama’s couch in Polo socks”? Quão subjugador pode ser o gesto de exigir a uma mulher um corpo “natural” (o que quer que isso seja) quando ela, e apenas ela, é que deve decidir o que bem quer fazer com o seu corpo? Quem é Kendrick Lamar, ou qualquer homem, para julgar o facto de uma mulher eventualmente querer maquilhar-se e engalanar-se como entender? Repare-se: o que nos move nesta análise nem é tanto o próprio Lamar, que é humano e beneficia de todas as contradições a isso associadas, mas o público acrítico que o segue.

 



Fechar os olhos a estas questões (aqui apenas exemplificativamente lançadas) significa suspender o juízo crítico, desistir da lucidez em prol de um “deixar-se ir” por razão nenhuma senão adulação cega ou, então, pela tal peer pressure que Lamar tantas vezes problematiza na sua música. São as mesmas razões que explicam que haja gente, como já vimos por aí, que, de cada vez que Lamar envereda pelo braggadocio, afirme a pés juntos que o americano não está, na verdade, a fazer braggadocio, mas a criticar, afinal, os que fazem… braggadocio (!). O que acaba por revelar, reflexamente, um certo complexo daqueles que se dizem seus admiradores incondicionais: então mas KL, afinal, não “pode” fazer braggadocio puro e duro?… Claro que esta discussão não faz qualquer sentido para quem for apreciador dos rappers que iremos aqui mencionar (Future, Gucci Mane, Fetty Wap, etc.), mas, quanto a esses leitores (esses e os que entendem que o que é dito em absolutamente nada releva mas sim a forma e o flow com que se diz, posição da qual não podíamos estar mais distantes), podem passar à frente estas linhas e ir directos para a segunda parte deste artigo (crítica ao álbum).

Pois bem, surpresa: KL faz – sempre fez, pois há vida antes de Section 80 e, até, de Overly Dedicated, mais precisamente quatro mixtapesbraggadocio e ego trippin’ gratuitos, e, se isso não retira brilho àquilo em que se tornou, tem um valor em si, naturalmente sujeito a apreciação. Sobre isto, uma palavra: não vemos, nunca vimos, valor artístico num rapper que faz das suas canções arrazoados sobre o quão melhor do que todos os outros é ou de como domina o “game”. Mas que “game“?! Não há aqui “jogo” nenhum, senhores! Há música, arte, talento e emoções, e há quem saiba e quem não saiba o que fazer com isso. Ponto.  Saia isso da boca de Kendrick Lamar ou de Ludacris, de Chuck D ou de Lil Wayne, de J. Cole ou de Lil Uzi Vert, o valor, em si, é exactamente o mesmo. Alguém daria o crédito que dá a Rubens, Kandinsky ou Rothko, ou a Scorsese, Tarkovsky ou Godard, se o grande feito das suas obras tivesse sido pintar quadros ou realizar filmes em que se auto-vangloriavam da sua arte e mencionavam os carros e jóias que esta lhes tinha permitido adquirir? Estapafúrdio só de imaginar.  As grandes obras não se fazem “meta-artisticamente”, dizendo aos outros como ela é grandiosa; elas falam por si, e cabe aos outros (e não ao seu criador) ajuizá-las e enquadrá-las criticamente em diálogo com a história.

O leitor que entenda que a comparação é “exagerada” ainda não percebeu que ele próprio, ao assim proceder mentalmente, está, mesmo que inconscientemente, a colocar a música e, no caso, o hip-hop como uma arte inferior à de Rothko ou de Godard. Ora, não é o nosso caso, daí a exigência (estética, intelectual, emocional) ser rigorosamente a mesma. Pela mesma ordem de razões, o leitor também não encontrará por aqui – e não é por esquecimento – qualquer referência aos alegados “disses” em DAMN. a Big Sean ou Drake. E agora nem precisamos de sair da música: quão estranho é imaginar Tom Waits e Leonard Cohen a dirigirem “disses” mutuamente e a serem apreciados por isso mesmo? Se o jogo do “quem tem a pilinha maior?” é co-natural ao hip-hop, o ouvinte tem, porém, a liberdade, a escolha, de entrar mais ou menos no jogo, e, acima de tudo, de manter o sentido crítico sobre as suas regras e a forma de “pontuar”.

Dir-se-á que o ego trippin’ e o braggadocio, enfim, o espírito competitivo, sempre fizeram parte, intrinsecamente, do rap (embora haja o ego trippin’ de Future e o dos De La Soul, uma galáxia a separá-los). Claro que sim, mas, novamente, podemos escolher o que comemos, e as doses em que comemos. Nesse sentido, é, uma vez mais, surpreendente que, quando o homem de Compton lança uma canção como “Heart Part IV”, “Element.” ou “God.”, braggadocio até ao osso, infantil até ao osso (eu sou o melhor, eu sou o rei, eu tenho, faço e aconteço), todos aplaudam sem hesitações (suspendamos por um momento, para a análise que aqui que se pretende, a vertente sónica e a performance vocal). Novamente: a aclamação de um verso como “Fuck is you talkin’ to? / Aye, do you know who you talkin’ to? (…) I kill ‘em with kindness / Or I kill ‘em with diamonds / Or I put up like fifteen hundred / Get yo’ ass killed by the finest” (“God.”) seria a mesma se proferido por um Gucci Mane? Ou por um 50 Cent então no pico da popularidade e, consequentemente, da condenação moral? Temos todos o aval para ser um bocadinho ostentatórios e misóginos se o cavalo de Tróia for KL mas já não se for Fetty Wap?

 



Todavia, e esticando (problematizando) a reflexão, duas notas. A primeira para dizer que bragaddocios há muitos, com mais ou menos talento. O de Lamar é, apesar de tudo, singular no modo como funde, por vezes de modo efectivamente genial, o discurso auto-engrandecedor com considerações político-sociais profundas (completamente ausentes, evidentemente, de rappers versados em braggadocio puro). Em segundo lugar, esse feito de Lamar (de atrair para si públicos de hip-hop que não apreciariam braggadocio noutros rappers e, até, de públicos completamente alheios ao hip-hop justamente por, entre outras coisas, o associarem ao braggadocio) bem pode, afinal, demonstrar a sua grandeza, o seu poder transformador: se o braggadocio também é (quase) sempre, reflexamente, uma forma de defesa (ou, até, de “contra-ataque”, sobretudo para quem cresceu num mar de miséria e segregação), essa afirmação individual extremada perante um mundo que não o reconhece como igual (esse “extremismo”, por vezes, é necessário para reequilibrar a balança), com tudo o que de vulnerabilidade e fragilidade encerra, acaba por ser profundamente libertador e, reitere-se, transformador. Que Lamar consiga que cada um dos seus ouvintes possa (re)descobrir, através de um grito como “My left stroke just went viral!”, uma qualquer força, auto-estima, orgulho em si, não é de somenos. Não é mesmo.

O unanimismo é também a tal ponto vigoroso que os ortodoxos do boom bap aceitam até fazer umas tréguas temporárias e interromper a sua diatribe contra os instrumentais de pendor trap que a música de Kendrick possa ter – teria o instrumental “DNA” (de gosto duvidoso e descontextualizado da sonoridade global do álbum) a aceitação que tem se viesse de um Lil Yachty ou de um Young Thug (refiro-me, obviamente, aos ouvintes em geral, e não àqueles que são, à partida, fãs dos rappers referidos)? Finalmente, e como as últimas semanas o demonstraram à saciedade, o unanimismo é de tal forma voraz que, poucas horas depois do disco sair, já as redes sociais – e, mais grave, jornais sérios e respectivos críticos – ditavam a sua sentença sobre a genialidade de Lamar e a “obra-prima” que DAMN. constituiria. Como se verá na segunda parte deste artigo, o problema nem está na classificação qualitativa (de que nos aproximamos), mas no que de sôfrego e irreflectido a ausência de tempo para maturar uma ideia séria sobre um disco representa nos tempos actuais.

 


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