pub

Publicado a: 21/12/2015

Kelela: Voz do futuro

Publicado a: 21/12/2015

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Nate Walton

 

Kelela marcou a produção de 2015 com a edição do EP Hallucinogen, trabalho que sucede à mixtape de apresentação Cut For Me, que já data de 2013. Este novo conjunto de canções, que documenta o encontro da cantora com alguns dos mais relevantes produtores do momento, é sem dúvida um dos marcos de futuro de um ano que soube desbravar novos territórios, como bem o demonstram outros trabalhos de excepção como Mutant de Arca, Garden of Delete de Oneohtrix Point Never, M3LL155X de FKA Twigs ou Art Angels de Grimes.

Apesar de ter nítidas ambições pop, Kelela não está propriamente interessada em atalhos: tem contrato com a marginal Warp, crucial selo por onde passa muita da modernidade electrónica, mas que é uma microscópica operação no magno esquema da música que move montanhas, playlists e tabelas de vendas; tem uma óbvia paixão por modelos incontornáveis como Björk, Drake ou Kanye West, mas nunca cede à tentação de mimetismo; quer escrever canções sobre amor e sexo, mas prefere usar as letras para questionar as próprias fundações da sua identidade e os mecanismos da sua insegurança. E para fazer tudo isso tem recrutado aliados de peso: neste EP voltou a trabalhar com os produtores Kingdom ou Nguzunguzu, mas beneficia também das ultra requisitadas assinaturas de Arca (produtor venezuelano que já imprimiu a sua singular visão em trabalhos de Kanye, FKA Twigs ou Björk) ou de DJ Dahi (que se pode encontrar nas fichas técnicas de trabalhos de Kendrick Lamar ou Drake).

Não se trata, no entanto, e Kelela faz questão de frisar isso em entrevistas, de simples compra de beats como quem entra numa loja Prada à procura de novos acessórios, mas de uma colaboração em idêntico plano criativo, com Kelela a conseguir resultados impossíveis de obter em modo solitário. À Complex, a cantora confidenciou algumas ideias sobre este processo: “Claro que escrever sozinha sentada ao meu computador pode ser uma experiência fantástica, mas há outro modo que tenho conseguido atingir – momentos em que se grava alguma coisa e logo de seguida se está aos saltos no estúdio. Atingi esse estado com Arca quando fizemos ‘A Message'”.


 


Hallucinogen é variado, ousa despir a voz de Kelela do habitual manto de efeitos com que se mascara, oferece em “Rewind” um tom festivo que é inédito na paleta emocional que a cantora habitualmente explora, cita a malograda Aaliyah, talvez uma das primeiras estetas a projectar futuro no então estafado modelo R&B, inspira-se em Weeknd, ele mesmo um cantor de ascendência etíope, e faz tudo isto sobre uma música que nunca oferece concessões à transparência pop, preferindo antes antecipar novos terrenos e práticas por via de uma fluída ideia de experimentação. Padrões rítmicos que ousam traduzir uma ideia de convulsão, como se o mundo fosse impossível de prever e os pés caminhassem sempre à beira de um qualquer abismo, e autênticos oceanos de texturas sintetizadas, quase sempre casadas com os efeitos com que se vai travestindo a voz de Kelela, como se às vezes não houvesse diferenças entre as máquinas e o resultado do seu próprio fôlego: tudo são argumentos digitais num drama de zeros e uns.

Kelela sabe perfeitamente para onde vai, é uma artista de corpo inteiro e com a cabeça no sítio. Só não está interessada em seguir pelos mesmos caminhos da maior parte da presente geração pop. E quem ganha com essa opção somos nós que ganhamos mais uma autora que ultrapassa em muito o tradicional papel de “mera” intérprete que tradicionalmente se reservava às mulheres no terreno do R&B. E tudo isto quase nos faz esquecer que Hallucinogen é apenas um EP. O “grand statement” de Kelela ainda não chegou. Talvez agora em 2016?

pub

Últimos da categoria: Ensaios

RBTV

Últimos artigos