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Publicado a: 14/08/2017

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[TEXTO] Rui Correia

Let Them Eat Chaos é uma exploração conceptual de Kate Tempest em formato spoken word e rap que fala dos maneirismos da sociedade numa das grandes cidades europeias, Londres, de onde é natural. A poetisa e rapper tem um dom para dar sentido pujante às suas palavras neste segundo álbum da sua carreira musical, recentemente nomeado para o Mercury Prize, que resulta de um autêntico livro conduzido musicalmente pela produção de Dan Carey, colaborador fiel à artista desde o seu disco de estreia Everybody Down, igualmente nomeado para o mais alto prémio de reconhecimento musical em Inglaterra.

Em “Picture a Vacuum”, faixa introdutória do disco, Kate Tempest guia-nos e envolve-nos na sua narrativa declamada com uma voz segura, abrindo novas portas da percepção, expandindo a consciência pelos vários cantos do universo até cairmos repentinamente num abismo chamado Londres.

 



“What am I to make of all this?” A pergunta leva-nos a uma observação num campo espacial cacofónico: a cidade Londrina é reflectida musicalmente em “Lionmouth Door Knocker” na forma de uma electrónica tensa e de ritmos cavalgantes – descrição musical que acompanha também grande parte do disco – , que têm tanto de desconfortável como de natural numa de muitas cidades alienadas que são alimentadas por baratas tontas a correr em movimentos repetidos diariamente pelo mesmo lamaçal de estranhos. “At any given moment/In the middle of a city/There’s a million epiphanies occurring”A narradora vai a pouco e pouco, de um espectro generalizado citadino até ao encontro de 7 pessoas específicas, acordadas às 4h18, moradores numa mesma rua londrina, sentindo a intrincada e complexa vida delas (o termo sonder explica esta experiência sensorial, que não possui tradução na língua portuguesa). Numa tentativa de humanização, Kate Tempest irrompe pelo monólogo dessas personagens, dedicando-lhes uma faixa a cada: pessoas entrelaçadas em ecos de desventuras, problemas de auto-confiança, indiferença, solidão e uma consequente falta de esperança, em histórias pormenorizadas numa prosa inquietante e vívida.

Num acto de pugilismo verbal, somos assaltados por memórias e visões que nos assombram a actualidade, como em “Europe is Lost”, o tema que engloba e condensa o conteúdo deste álbum editado no ano passado, em que a personagem de nome Esther, tortuosamente, depois de um longo dia exaustivo no trabalho, lança desenfreadas palavras como enxurradas de terra num dia tempestuoso a que não podemos fugir, confrontando o extremismo religioso com o patriotismo (“England! England! Patriotism!/And you wonder why kids want to die for religion?”), o capitalismo que transformou as pessoas em consumidoras (“It’s the BoredOfItAll generation/The product of product placement and manipulation”), narcísicas (“Saccharine ballads/and selfies, and selfies, and selfies/And here’s me outside the palace of ME!”), a ganância engolidora da pobreza que leva ao esquecimento premeditado (“’Cause it’s big business, baby, and its smile is hideous (…)Glass ceiling, no headroom/Half a generation live beneath the breadline/Oh, but it’s happy hour on the high street”) e à nossa previsível condenação (“I walk and I see it, this is all we deserve/The wrongs of our past have resurfaced (…)We are lost, we are lost, we are lost/And still nothing, will stop, nothing pauses”).

O papel de todos os monólogos – essenciais no seu todo – é provocar-nos ao pensamento, mas acima de tudo criar uma conexão, porque conscientemente revemo-nos nas dificuldades, nas dúvidas, nos sonhos e na impotência da mudança global (e pessoal). A causalidade invocada no disco – que está nomeado para o Mercury Prize 2017 – , a sofisticação da música e a clareza nas palavras de Kate Tempest fecham um disco intemporal e com esperança para a humanidade, porque ela é no fundo uma optimista ao escrever-nos nesta rudeza não firme de certeza. Dependente da vontade dos seus leitores e ouvintes para a revolução, fica a certeza de que é um disco obrigatório no apelo à mudança. Reaccionário por si só.

 


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