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Publicado a: 27/06/2016

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“We culture. Rap is the new rock and roll. Rappers are the new rock stars”, começa por ouvir-se no arranque do vídeo Famous, tradução visual da faixa com o mesmo nome que é um dos pontos altos de The Life of Pablo. De facto, é impossível não traçar um paralelo entre as relações que na década de 60 a arte pop estabeleceu com o universo do rock and roll (Andy Warhol / Velvet Underground ou Peter Blake / Beatles são dois exemplos notórios) e o diálogo intenso que criadores contemporâneos como Marina Abromovic ou George Condo têm estabelecido com artistas como Jay-Z ou Kanye West. Já não é apenas acerca de P Diddy procurar investir uns quantos milhões num Picasso enquanto percorre os stands das melhores galerias presentes no evento Art Basel em Miami, mas de uma relação simbiótica entre dois universos distintos, mas comunicantes.

No mais recente número da revista Tate Etc., pertença da organização britânica de museus com o mesmo nome, um artigo de Charlie Fox reflecte sobre a presença da gaiola / jaula (a palavra inglesa “cage” pode traduzir-se de ambas as maneiras) na arte evocando obras de Francis Bacon ou Louise Bourgeois para ir ao encontro de “um veículo fascinante para qualquer artista habitar, que fornece um espaço para qualquer tipo de problemas psicológicos serem exorcizados”. Fox poderia perfeitamente estar a falar da cama em vez da jaula. E a cama, na verdade, é ela mesmo uma espécie de prisão. E é essa a ideia que marca o vídeo que Kanye West estreou esta semana no Tidal, concebido para acompanhar (amplificar…?) o tema “Famous” que é um dos melhores temas de The Life of Pablo.

Tal como a jaula ou a gaiola, a cama também tem sido um espaço frequentemente abordado na arte, de Piero della Francesca e Vittorio Carpaccio a Robert Rauschenberg e Jeff Koons passando por Vincent Van Gogh ou Edvard Munch. E até Francis Bacon, apontado na Tate Etc. como um dos mestres a retratar a ideia de seclusão, isolamento e impotência oferecida pela jaula, pintou com frequência a cama, usando esse espaço / objecto para reflectir sobre alguns dos abismos da alma humana. “A cama”, explicou o curador Mario Codognato para uma peça da BBC sobre a exposição Sleepless: The Bed in History and Contemporary Art patente o ano passado no 21er Haus de Viena, “é um dos mais importantes objectos na vida de qualquer pessoa e o mais reproduzido objecto na história da arte. É onde as pessoas nascem, onde são concebidas, para onde vão quando estão doentes, onde – se não tiverem uma morte violenta – a maior parte das pessoas estará quando morrer. Alguns dos mais cruciais momentos da vida acontecem na cama. E por essa razão os artistas usaram a cama ao longo da história – de maneiras distintas”. Como Kanye West, agora, com Famous.

 


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O novo vídeo de Kanye West é inspirado numa pintura, de título Sleep, do pintor americano contemporâneo Vincent Desiderio, um artista que a EIL descreve como o criador de “pinturas eruditas de larga escala, plenas de meticulosos detalhes, imersas em iluminação dramática e marcadas por ondas de emoção”. Kanye, como não podia deixar de ser, estreou o vídeo para o tema “Famous” com a devida pompa e circunstância, no Forum de Los Angeles, na noite da passada sexta-feira, dia 24 de Junho. Como se estivesse a inaugurar uma nova exposição num qualquer museu ou galeria.

À Vanity Fair, um par de dias antes da estreia de Famous, o rapper explicou que esta obra foi envolta em extremos cuidados conceptuais: “Tivémos muita atenção e retirámos qualquer plano que pudesse ter algo sexual. O que vemos, ao invés disso, é um quadro emocional, quase religioso de corpos nus, vulneráveis, a descansar”. “Um quadro emocional, quase religioso”. De facto, além da inspiração directa da obra de Desiderio – que, até ao momento, não se percebe se esteve ou não directamente envolvido na concepção desta peça tal como, aliás, não se conhece exactamente a ficha artística por trás do vídeo (a notícia da Vanity Fair menciona aliás que o vídeo passou por várias mãos e foi meticulosamente remontado até Kanye obter o resultado desejado – será ele o autor mais directo, portanto…) – há que entender este filme como um auto-retrato tão real quanto os que Van Gogh e outros grandes mestres elaboraram ao longo da história da arte. West já tinha dito que a sua vida e a de Kim Kardashian “é como performance art”. Artistas como os por aqui já referenciados Robert Rauschenberg ou Andy Warhol procuraram muitas vezes com as suas obras confundir os limites da arte e da vida, desfazendo as barreiras através de esculturas ou de película (como a cama de Rauschenberg ou os filmes de Warhol) para dessa forma oferecerem uma mais funda visão de si próprios. Parece ser essa a intenção de Kanye West em Famous que ele descreve muito simplesmente como “um comentário sobre a fama – não é a favor nem contra nenhum dos retratados”. E quem são os retratados? George W. Bush; Donald Trump; Anna Wintour; Rihanna; Chris Brown; Taylor Swift; Kanye West; Kim Kardashian West; Ray J; Amber Rose; Caitlyn Jenner; Bill Cosby. Curiosamente, ou talvez não, todos têm páginas oficiais de Facebook. Excepto Kanye West, que prefere o Twitter como plataforma primária de comunicação com os seus fãs.

Para começar, uma distinção: Famous, o filme, não é um directo correspondente de “Famous”, o tema de The Life of Pablo: o vídeo agora estreado no Tidal tem quase 11 minutos de duração, mais do triplo da duração da versão da canção que encontramos no mais recente trabalho de Yeezy. Filmado como um objecto voyeurístico lo-fi, como se alguém tivesse entrado naquele quarto onde dormem naquela cama todas aquelas pessoas, Famous leva ao extremo a ideia de confundir arte e vida ao não deixar perceber imediatamente que pessoas ali são reais, de carne e osso, quais são bonecos de cera ou actores transformados por maquilhagem e máscaras. Kanye, como não podia deixar de ser, entra nesse jogo de sombras e confunde ainda mais as fronteiras entre o real e o encenado. “As figuras parecem tão reais… Mas também parecem tão ‘enceradas’?… Mas parecem demasiado reais para serem de cera? Têm que ser de cera? Ou talvez sejam feitas de massapão? O meu cérebro está a passaaaaaar-se”, terá dito Kanye na apresentação do vídeo, perante 8 mil pessoas, no Forum de Los Angeles, de acordo com a Bustle.

O pintor Vincent Desiderio, em entrevista à publicação Painting Perceptions, referiu que quando se pinta “está-se a construir um sensual espaço de possibilidades carregado psicologicamente. E pode-se construir esse espaço como uma prisão ou um observatório”, explicou o artista, concluindo que preferia a opção de observação à de prisão. Kanye faz isso mesmo, coloca-se numa neutra posição de observador, por trás da câmara, quando “invade” aquele espaço para espiar as pessoas / bonecos que dormem, confundindo-nos a percepção de uma forma muito subtil quando deixa entender que algumas daquelas figuras que provavelmente até pensaríamos serem bonecos de cera afinal estão animadas e até respiram…

 



Na cama há “vilões” e talvez Kanye seja mesmo o único herói. Durante uma recolha televisiva de donativos para as vítimas do Furacão Katrina em Nova Orleães, Kanye acusou George Bush de “não ligar aos negros”, embora hoje contraponha, na já citada entrevista à Vanity Fair, que num universo alternativo, talvez as coisas pudessem ser diferentes: “Talvez eu pudesse ser o seu amigo negro OJ Simpson no campo de golfe”. Donald Trump é outro dos vilões presentes – o candidato à presidência dos Estados Unidos tem polarizado o mundo (não apenas o seu país…) graças às suas controversas posições e ao discurso populista que, afinal de contas, parece fazer de Bush um corajoso progressista. Ou Bill Cosby, que West famosamente abordou no tweet em que escreveu “Bill Cosby Innocent”. Na verdade, ao colocar-se ali no meio de figuras como Taylor Swift (directamente abordada no tema em causa com a frase “I feel like me and Taylor might still have sex / Why? I made that bitch famous”), posicionando a sua mulher Kim ao lado do seu antigo companheiro Ray J com quem fez uma notória sex tape, colocando Rihanna e Chris Brown lado a lado, incluindo nesta composição Amber Rose, sua antiga parceira e recente foco de uma polémica nas redes, Kanye está a espelhar o lado menos glamouroso da fama, de certa forma até, ao retratar todas aquelas pessoas durante o sono, parece estar a investi-las de uma certa inocência e ao escolher aquela estética de filmagem “invasiva” parece até retratá-los como vítimas. Vítimas da fama. De vilões a vítimas, portanto. O sono como a câmara da inocência.

Depois de uma pausa em que se ouvem apenas as respirações das pessoas deitadas, a câmara muda e percebe-se a composição como uma pintura, filmada de cima (ou de frente, se em vez de deitadas numa cama, aquelas figuras estivessem penduradas numa parede). E Kanye parece dizer-nos que a fama é ela mesmo uma forma de arte, que os media são um museu moderno onde observamos estas obras de “performance arte”, reais, indistintas na rua ou na galeria, no quarto ou no museu. Mesmo no final deste filme, um excerto de “Father Stretch My Hands Pt. 1” em que Kanye canta: “Just want to feel liberated, I, I, I / I just want to feel liberated, I, I, I / If I ever instigated I’m sorry / Tell me who in here can relate, I, I, I”. Tudo dito.

Famous, o vídeo – como de resto “Famous”, a canção, e, claro, The Life of Pablo, o álbum – é uma das mais poderosas afirmações artísticas do ano, produto da mente de um génio que é, ele próprio o admite, um pouco louco. Ou talvez essa loucura seja apenas uma diferente forma de olhar para a vida e de pensar sobre ela. A verdade é que Kanye não vai permitir que 2016 lhe escape entre os dedos e esta é apenas mais uma indicação dessa sua vontade de fazer história. Ou de fazer arte, o que é, na verdade, a mesma coisa. E de reinventar as regras e trocar as voltas à indústria. Kanye só vai fazer o que Kanye quiser fazer. E isso, nos tempos que correm, é estranhamente reconfortante.

 


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