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Publicado a: 25/08/2016

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honor critica

 

[TEXTO] Rui Miguel Abreu

Honor Killed The Samurai, o novo álbum de Ka, sucessor de The Night’s Gambit, de 2013, é uma espécie de haiku: em parte, a tradicional forma de micro-poesia japonesa define-se pela sua concisão, claro, mas também por um apertado conjunto de regras que quase torna as palavras em peças de um complexo xadrez semântico, de uma profunda economia, mas também de alcance vasto.

Um haiku, de Basho, poeta japonês do século XVII:

old pond . . .
a frog leaps in
water’s sound

Beleza, contenção, riqueza visual… muito do que o haiku tradicional contém pode afinal de contas ter paralelo na arte de Ka que anunciou o seu mais recente álbum, Honor Killed The Samurai, como o resultado de um sério estudo da cultura japonesa. O disco é breve – apenas 10 temas numa era de registos expansivos – sem convidados, produzido pelo próprio Ka e de capa monocromática. Nem uma pincelada a mais do que o estritamente necessário. Como a caligrafia japonesa. Como o haiku. Como a vida do samurai.

Sobre os 10 beats que sustentam o discurso afiado e fundo de Ka: é óbvio que Kaseem Ryan estudou atentamente a arte sampladélica de RZA e Doom: loops significantes, que parecem subtraídos a bandas sonoras de obscuros filmes europeus, pianos e baixos bem definidos, melodias carregadas de drama e tensão. Curiosamente, as baterias surgem aqui de forma muito subtil, meras sombras, pontuações muito esparsas de um discurso que absorve toda a carga dramática implícita nos restantes instrumentos (ouça-se “Destined” ou “Illicit Fields”, por exemplo).

Os temas são igualmente servidos por intros samplados, vozes que estabelecem o ambiente temático de cada peça do álbum: “Not infrequently a marching soldier might be seen to halt, take his writing utensils from his belt, and compose an ode”, explica-se no início de “That Cold and Lonely”. Isto é Ka a impor o mote e a desenhar a moldura conceptual que atravessa Honor Killed The Samurai. Neste tema agora mesmo referenciado, sobre o pulsar minimal de um contrabaixo e ecomómicas notas de piano, Ka rima:

A phonetical verse praise good
But my genetic code vs. neighborhood
With no clear winner, I still appear thinner
Don’t howl like I’m holier than thou, a mere sinner

Como os samples que elege para servirem de cenário à sua acção poética, as palavras que Ka recita (seria errado escrever “cospe”…) são ponderadas, contidas, nem uma sílaba a mais, fora do lugar. A disciplina de contenção que parece ser comum a tantas correntes artísticas japonesas – da música ao design, da poesia ao cinema – inspira igualmente Ka que tem vindo a depurar a sua arte desde que se estreou em nome próprio em 2008 com Iron Woks, depois de uns primeiros passos falhados como parte dos Natural Elements que fizeram breve carreira nos anos 90 conseguindo uma inconsequente ligação à Tommy Boy (foram entretanto recuperados pela etiqueta que funciona como guardiã do lado menos celebrado da golden age, a Chopped Herring Records). Hoje, Ka rima como se cada palavra fosse preciosa, como se cada palavra fosse uma rara bala numa batalha que é preciso vencer. Não há por aqui rajadas verbais, antes calculados golpes de uma espada afiada que é o seu intelecto.

No presente, feito de festas nas penthouses das grandes cidades, de carros exóticos e cromados, de flows rápidos e de instrumentais trap, Ka é o homem que rima lentamente na escuridão dos becos mais recônditos da metrópole gigante, o homem que mantém uma chama moral bem acesa e que nos apresenta uma fórmula apurada até ao mais ínfimo pormenor, cada sílaba, cada sample o resultado de um estudo profundo e dedicado, longo e continuado. Ka não vai deixar que o mundo esqueça de onde vem e para onde deveria continuar a ir o hip hop. Ka é um haiku: um paradoxo significante, microscópico mas com poder transformativo. Submetam-se.

 


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