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O Justiceiro de Mike El Nite foi criado em minha casa

[TEXTO E FOTOS] Amorim Abiassi Ferreira

A razão pela qual nunca vou escrever uma crítica sobre o novo disco de Mike El Nite, intitulado O Justiceiro e lançado pela Nos Discos, é por este ter sido criado no quarto adjacente ao meu. Esse quarto é o estúdio caseiro de DWARF e é uma das divisões da nossa casa torta, com tectos decorados e escadas decrepitas de entrada. Tendo acompanhado o processo de criação, é impossível não olhar para o projecto com carinho, memórias e uma perspectiva muito subjectiva deste álbum.

Quando ainda estudava nas Caldas da Rainha, não imaginava que um dia o tipo do “Mambo nº1” ia passar inúmeras noites no sofá da minha casa para completar um álbum. Por outro lado, perto da mesma altura, quando recebi as primeiras maquetes de um amigo, agora conhecido como DWARF, não imaginava que ele se tornasse o homem a cargo de fazer o som do primeiro LP de Mike El Nite acontecer. Falar de O Justiceiro sem mencionar ambos não faz sentido. O álbum é intrinsecamente fruto da colaboração entre Miguel Caixeiro e Zé Quintino.



A forma como o caminho deles se cruzou envolve um país pequeno, viver em Lisboa e uma ponta de destino. Rapper e produtor conheceram-se através de amigos em comum numa saída à noite, e o clique para discutir projectos foi instantâneo. A nossa casa na Estefânia está alugada há quase um ano, e foi escolhida para vir a tornar-se numa plataforma para futuros projectos. Na hora da decisão, um dos elementos cruciais era existir uma divisão com condições para tornar-se num quarto e estúdio caseiro.


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O sofá passou a ser a cama não oficial do Caixeiro. Sempre disponível para todas as sessões que se arrastavam para lá da hora de fecho do metro e quando as pernas não tinham coragem para pedalar de volta até Telheiras. O Justiceiro foi o primeiro disco criado nesta casa. Gravação, produção, mistura, master. Para isso acontecer, o estúdio sofreu todas as dores de crescimento inevitáveis. Adquirir microfone, compressor, monitores, fones, etc. Improvisar ideias para fixar lã rocha para garantir a qualidade do master final. “O Caixeiro quer samplar o genérico do [programa de televisão] ‘Horizontes da Memória’”, disse-me o Quintino. “Horizontes” acabaria por se tornar na música de introdução ao disco acompanhada pela voz de José Hermano Saraiva.

Quando se faz uma pausa da música para descansar a cabeça, há sérios momentos competitivos na sala. O jogo que mais eleva a pressão arterial chama-se “Duck Game”. Quatro patos têm de se aniquilar em rounds curtíssimos e frenéticos e um resultado garantido é um elevado grau de azia por parte do Caixeiro. Todos os frequentadores regulares da casa encaram os jogos vídeo como fonte infinita de lazer, entusiasmo e inspiração. Se sobrar alguma dúvida, a faixa “2P” torna claro o grau de paixão.


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Em outros breaks mais curtos, geralmente para fumar um cigarro, um loop do instrumental inacabado de “Água Fria” tocava enquanto se trocavam piadas na marquise e se absorvia um pouco de luz solar. Até hoje, nenhum vizinho pediu para se diversificar a playlist. Com sorte, também eles entendem que o esforço criativo requer repetição levada ao grau da exaustão. O meu quarto, adjacente ao estúdio da casa, tem a propriedade de reverberar todos os kicks e frequências graves. Em dias de sessão prolongada, acabei mesmo embalado pelo som de “Drones”.

A alimentação fez-se à base de comida de um take-away que serve generosas doses a 3,5€. Quem vive em Lisboa tem noção do milagre que isto é. Refreando a gula, a dose pode dar para duas refeições, garantindo o orçamento para o mês inteiro, passando o mínimo de tempo na cozinha. A sede matou-se numa sucessão de litrosas, entrando cheias e saindo vazias para o vidrão. Reciclar é fixe, okay?

L-Ali, Nofake e ProfJam passaram pela casa para trazerem a sua participação ao disco. Todos em dias diferentes, conforme o horário permitiu. O Caixeiro ia e voltava. Mas quando voltava, trazia com ele mais ideias para os beats, mais letras, ou um novo refrão. Enquanto o efeito ioiô acontecia, o Quintino afinava beats, preparando as próximas produções das faixas. Avançar, trocar opiniões, discordar, e avançar mais um pouco. Este processo repetiu-se numa sucessão de meses, quase um ano, às vezes divertido, às vezes espontâneo, muitas vezes frustrante.



No dia de deadline, tudo tinha de estar acertado na gravação do disco para este seguir até à editora. Para confirmar que tinham conseguido, entrámos no carro do Quintino para testar a gravação no leitor. O CD foi colocado, e esperámos. Finalmente tocou. Uns quantos gritos de celebração seguiram-se, e começámos a ziguezaguear pelos Anjos, a matar tempo até confirmar que as passagens entre faixas estavam com o timing certo. O barulho intermitente do pisca fez-se ouvir no silêncio até ser abafado pelas batidas iniciais de “T.U.G.A”. Sucesso, tudo está a soar ao que devia. O disco está pronto para ser enviado à editora. Está na hora de brindar com uma cerveja no Laboratório, e voltar para casa. Amanhã é dia de trabalho e há sempre mais para fazer.

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