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Publicado a: 08/05/2018

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[TEXTO] Vera Brito

Poucos terão conseguido humanizar os robôs como Janelle Monáe o tem feito. A cantora/actriz/compositora/produtora/modelo não esconde o seu fascínio por mundos futuros, dominados pela inteligência artificial, com linhas muito ténues a separar humanos de máquinas. Dirty Computer, o seu terceiro longa-duração, continua a utilizar a imagem de andróides enquanto representantes de todas minorias que não cabem nos formatos convencionais da sociedade. “They started calling us computers, people began vanishing and the cleaning began. You were dirty if you looked different. You were dirty if you refused to live the way they dictated. You were dirty if you showed any form of opposition at all. And if you were dirty, it was only a matter of time”. Este é o preâmbulo do vídeo, ou melhor da Emotion Picture, que serviu de apresentação a Dirty Computer. O cenário é futurista e sinistro. Existe uma classe superior que persegue e captura estes dirty computers para erradicar “bugs” de comportamento. Afinal, quais são esses bugs, esses desvios?

As primeiras faixas dão a resposta. “Crazy, Classic, Life”, “Take a Byte” e “Screwed” são janelas para uma vida desregrada, ousada e livre, uma possível “pursuit of happiness“, retirada a um dos discursos de Obama que Janelle Monáe consegue encaixar na pop luxuriante de Dirty Computer de forma orgânica. Este é talvez até um dos aspectos mais interessantes do disco, a maneira como aborda feridas sociais profundas com uma leveza purificante sem nunca lhes retirar seriedade. Prova de que a pop quando bem feita pode ser também assunto sério. “Crazy, Classic, Life”, que poderia perfeitamente ser apenas mais uma música que cheira a verão (e também o é), é sobretudo Janelle Monáe a reclamar a si o direito de ser “jovem, negra, selvagem e livre” numa América tacanha. “Take a Byte”, a maçã proibida do disco, trocadilho engenhoso que nos leva novamente à ideia de um dirty computer, tem a linha de baixo mais groovy e sexy que já ouvimos este ano, pela mão única de Thundercat, quatro minutos de pura lascívia que poderiam ajudar a resolver o problema da baixa natalidade por cá. Dirty Computer transpira sexo, aquilo que faz realmente o mundo girar, e em “Screwed” (faixa que arranca com um riff de guitarra que só pode ter saído da cabeça de Prince) o sexo assume o seu bom e mau sentido, colocando uma válida questão “Everything is sex/ Except sex, which is power/ You know power is just sex/ Now ask yourself who’s screwing you”.

Encontramos “Django Jane” a metade do disco e encontramos também uma Janelle Monáe guerreira e destemida, a assumir orgulhosamente as rédeas de uma revolução “We gonna start a motherfucking pussy riot/ Or we gonna have to put them on a pussy diet/ Look at that, I guarantee I got them quiet”. Women empowerment é um dos estandartes da americana, elevado bem alto nesta “Django Jane”, pelo seu rap forte e incisivo, onde até o seu timbre perde a inocência de faixas anteriores, num registo que confessamos que gostaríamos de encontrar mais vezes neste disco. “Pynk”, faixa completamente usurpada por Grimes, pega neste monólogo da vagina e dá-lhe toda a cor e textura, uma narrativa voluptuosa e bastante visual, acompanhada de um vídeo igualmente invulgar. Nestas duas faixas não é permitida a entrada a homens.

 



“Make Me Feel” é Prince do início ao fim, funky, sensual e suada. Um dos heróis de Janelle Monáe, que a própria confessou ter tido mão pesada em muitas das músicas de Dirty Computer, e que não chegou a ver a obra da pupila, mas que seguramente sorri orgulhosamente de qual seja o plano onde se encontre agora, quem sabe até ao lado de David Bowie, outro dos heróis da cantora, que espreita a cada esquina e a cada excentricidade dos vídeos que acompanham o disco. “I Got The Juice” tem batidas africanas quentes e tem também Pharrell Williams pela trela, aqui outra vez Janelle Monáe coloca as mulheres em completo controlo: “My juice is my religion, got juice between my thighs”.

E é quando nos aproximamos do final do álbum que ele ganha contornos mais confessionais, este é aliás o disco mais pessoal da americana, que tanto em The Electric Lady como em The ArchAndroid sempre se refugiou atrás de personagens e metáforas nas suas mensagens. “I Like That”, “Don’t Judge Me” e “So Afraid” revelam histórias da infância (“even back then with the tears in my eyes I always knew I was the shit”), trazem à superfície inseguranças (“I’m afraid that you just love my disguise”), confessam medos (“I’m afraid of it all, afraid of loving you”), o denominador comum? O amor, bicho que corrói, capaz de abalar qualquer certeza e de nos tornar irreconhecíveis a nós mesmos.

“Americans” encerra Dirty Computer com esperança, coros gloriosos, outro discurso motivacional de Obama e brilhos da pop sintetizada dos anos 80. Uma sátira acutilante a toda a intolerância, racismo e discriminação enraizados nesta América profunda. Uma América que mesmo a um oceano de distância enfrenta problemas que dizem respeito a todos nós. Uma América que Janelle Monáe recusa como sua, mas pela qual vale a pena lutar. Uma luta que talvez só os “dirty computers” terão coragem de travar.

 


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