pub

Publicado a: 17/07/2015

Halloween: “O meu maior medo? Tenho medo de Deus”

Publicado a: 17/07/2015

[FOTOS] Pedro Soares

 

Combinámos um encontro no Largo do Camões para o fim da tarde. Uma daquelas tardes de Verão, com vento quente e luz laranja já meio difusa, que aquece o corpo e nos cola as mãos à pele. Tão quente que nem sequer havia gelo para juntar à bebida que pedi para fazer tempo num quiosque. Que se lixe, vai mesmo assim. Sentei-me e esperei. Cá do alto, ao pé da estátua do velho poeta, olhei lá para o fundo, para a boca do metropolitano, para a massa que circula àquela hora. Turistas, de mochila virada para a frente, à procura de uma casa de fados para jantar. Jovens de férias a passear, a conversar, talvez à espera que comecem os movimentos típicos da noite – mesmo sendo só uma terça-feira.

Pelo meio daquela massa de gente descontraída, vejo um acelerar de passo, a furar a multidão. Meio cambaleante. Os meus olhos já não vêem muito, mas percebo que vem vestido de escuro. Não vem montado em nenhuma vassoura: esta “Bruxa” calça os seus velhos All Star. Blazer, camisa cor-de-vinho e óculos Wayfarer na cara. “A malta está ali sentada. Vamos para lá?”, pergunta-me Allen Halloween depois de me cumprimentar, sorridente. A ideia era ficar um pouco à conversa por causa do seu novo e muito esperado disco: Híbrido. Depois do lançamento na internet – YouTube’s e redes sociais – o rapper disponibiliza agora o CD em formato físico. O terceiro da discografia que começou há quase dez anos, quando lançou, em 2006, Projecto Mary Witch. Em 2011 regressou com as histórias da sua Árvore Kriminal – lançamento bomba que deixou boquiaberta a nação “hip hop tuga” e o planeta hipstério que passou a dizer “não gosto muito de hip hop, mas gosto do Halloween” e “vou ver ‘a bruxa’ à ZDB”.

Esta é uma conversa entre cervejinhas, bifanas – as mesmas que deixaram Anthony Bourdain a salivar – e os manos “Kriminals” de Halloween: Lucyfer, rapper do colectivo ODC Gang e Mentes Criminosas; e Psydin Atómiko. Companheiros de muito rap e de muitas aventuras com Allen. “Eu sou o fã número zero do Allen! Melhor rapper da tuga!”, grita Psydin, várias vezes, ao longo da entrevista. A “bruxa” pouco reage, senão com um sorriso.

Allen não é gangster nem quer ser gangster. Nesta primeira entrevista que faz desde que lançou Híbrido, conversamos sobre tudo: o que andou a fazer desde Árvore Kriminal, da família, dos amigos, medos, tentações, das suas parábolas de religião e fé, do regresso a Odivelas depois da temporada a viver no Cais do Sodré. De ser ou não ser bandido e, apesar de não ser “comentador de hip hop português”, também nos dá as suas ideias.


 

Passaram-se três anos desde o teu segundo disco, Árvore Kriminal. Entre alguns concertos e gravar um novo disco, como passaste esse tempo?

No período entre um álbum e o outro… normalmente faço um filho! (risos) Já tenho três álbuns e três filhos! Mas tirando essa parte, vou fazendo música, vou lançando temas, mesmo ainda antes do disco estar pronto. É como ter uma coisa guardada que não dá para guardar, não dá para agarrar e por isso lanço cá para fora! O ideal para cada artista seria ir mandando músicas cá para fora, mas temos de guardar aquelas 12 e no fim mandar um álbum. Depois há também os concertos: se não puser nada na rua, entre um álbum e outro, não dou concertos! E, graças a Deus, eu vivo da música, então as pessoas têm que estar a ouvir a minha música.

E estes 12 temas de Híbrido vêm de onde? Retratam algum período específico da tua vida?

O Projecto Mary Witch nasceu do período em que eu morava em Odivelas e passava a vida na Azinhaga do Barruncho. O Árvore Kriminal é dos tempos em que morava aqui na Rua Nova do Carvalho, no Cais do Sodré. Este Híbrido é o Allen que está de volta a Odivelas. Mostra um Allen mais crescido. Os discos não fogem muito à minha vida e qualquer pessoa que me conheça consegue identificar que é um álbum de regresso às origens, mas não de regresso ao gueto, porque não estou no gueto. Mas é o regresso a Odivelas, à mesma rotina. Para mim aproxima-se mais do primeiro álbum…

Mesmo aproximando-se mais do primeiro, achas que Híbrido reflecte mais algumas memórias do que a tua vida presente?

Não. É um disco que reflecte o Allen mais crescido. Muitas músicas do disco contam as histórias de personagens, mas que têm muito de mim, apesar de me colocar um pouco de lado, a ver as coisas e a escrevê-las.


 


No primeiro tema, “Bandido Velho”, dizes: “Às vezes digo aos miúdos tudo aquilo que eu sofri, mas ninguém presta atenção. Ninguém ouve”. Mostra que esse teu crescimento passa por transmitir algum ensinamento aos mais novos?

Claro que sim. É como estava a dizer: sou eu ao lado da acção a mostrar como são as coisas. E a mensagem da música é um bocado essa. As pessoas não querem saber o que é que eu passei, o que senti. Acho mesmo que não. Vou dar um exemplo: imagina o maior bandido daqui desta zona, que pode ter feito tudo e mais alguma coisa. Passado cinco anos, quando chega aqui depois de estar de cana, os putos não querem saber quem ele é. Se fala muito leva duas chapadas e acabou. “Bandido Velho” fala disso: as pessoas não querem saber o que é que tu passaste. Mas, de certa forma, quando passas alguma mensagem a alguém, plantas sempre alguma coisa na cabeça dele.

Mas sentes que tens esse papel de plantar coisas na cabeça dos mais novos?

Não sinto. Acho que qualquer um tem a obrigação de dizer a verdade. Se sabes que no fim desta estrada está um precipício e tu estás a voltar desse precipício, se fores uma pessoa minimamente boa vais avisar: “ó companheiro: olha que ali está um precipício”. Mas não o vou agarrar: se quiser ir, vai!

Discordo de ti num aspecto: dizes que as pessoas não querem saber o que fizeste, o que sentiste. Pelo contrário: acho que as pessoas têm-se agarrado à tua música precisamente pelas histórias que contas, sem moralismos.

Isso para mim não é nada de especial. Eu leio a bíblia, leio o Sermão do Monte e não vejo Jesus Cristo a dizer: “não faças isto, nem aquilo…” Jesus faz parábolas. E eu também acho que faço parábolas. Não gosto muito da história de ser um professor até porque nem tenho idade para essas coisas. Ainda estou a descobrir-me.

Mas não deixas de ser um bom contador de histórias.

Não é bem contador de histórias. O contador de histórias é alguém que não viveu a história; eu prefiro criar uma história para se perceber do que estou a falar. É a diferença da parábola. Qualquer gajo com imaginação conta uma história, mas a parábola tem de ser criada com sabedoria para quem ouve poder tirar um ensinamento.


 


Sempre cantaste e escreveste sobre religião e a importância de Deus na tua vida. Este Híbrido aprofunda mais ainda essa relação?

Acho que sim. Eu sei da Verdade desde os meus 13 anos, mas eu andei pelo mundo a ver se era mesmo verdade. E hoje (risos)… já tenho certeza absoluta dessa Verdade! Quero deixar o meu testemunho. Qualquer pessoa que ouve a minha música, do primeiro ao último álbum, encontra testemunhos e, a partir daí… que tirem as suas próprias conclusões.

O disco parece assentar em duas premissas: histórias de Crime e de Fé. É um dos “híbridos” do disco?

Crime e fé? Não, [a palavra] híbrido está relacionada com as correntes musicais do som. Um dos sons que identifica mais o disco é “O Rei da Ala”: tem rap e tem grunge. Só guitarra e voz, mesmo tocada por mim – não é sample. Híbrido é a mistura de “seres diferentes” que não se reproduzem mais.

Explica-nos um pouco mais a sonoridade que procuraste para este disco. Quiseste ter uma estética mais simples para que sobressaíssem a tua voz e as tuas parábolas, como dizes?

Isso só começando a olhar para o álbum… é algo em que nunca pensei. Quem ouve tem uma outra visão. Deixa-me tentar explicar: hoje, quando alguém começa a fazer música, parece que tem a necessidade de preencher três minutos de canção. Mas, com os anos de música que tenho, já não sinto que tenha de o fazer. Até acho que as músicas mais poderosas são as de 40 segundos, com mais 40 segundos, com refrão, solo e está feito. É aí que tenho de concentrar tudo o que tenho para dizer. Depois há as músicas em que quero mesmo rappar, do primeiro ao último minuto e é isso que exploro. Sabes que um talibã pode ouvir a tua música, não a perceber, mas mesmo assim gostar? Às vezes ouço algo que não entendo a língua, mas gosto da música. Tenho que explorar a musicalidade.


allen_halloween_2_pedro_soares

“Jesus faz parábolas. E eu também acho que faço parábolas. Não gosto muito da história de ser um professor até porque nem tenho idade para essas coisas. Ainda estou a descobrir-me.”

 


Estás a falar de uma possível teatralidade nas tuas canções?

Não, da musicalidade. Há aquelas gajas lá do Islão que um gajo às vezes ouve a cantar, que não percebe nada, mas que tem muito sentimento e deixa-me emocionado. É como um fado: um inglês ouve fado e percebe lá o que está ali a ser dito. Tem sentimento e aquilo toca.

Já te aconteceu teres pessoas que não entendem o que estás a dizer, mas que confessam que o que cantas deixa marca?

Para te dizer a verdade, acho que a maioria das pessoas não percebe nada do que eu digo (risos). Há muitos gajos que passam e dizem que gostam, mas não percebem o que estão a ouvir. Dizem que percebem, mas não percebem nada. Acho que a maioria é assim.

E como te sentes com isso?

Depende. Se for uma pessoa que tentou perceber e não percebeu, se calhar fico triste. Mas se for uma pessoa que ouviu e quis perceber, fico contente: há gajos que pensam que a música é para toda a gente, que vai servir para ganhar bué dinheiro e todos curtirem. Até acho esse tipo de música um bocado morta: bate dois anos e nunca mais ninguém a ouve. Depois há a música que só ao fim de dois anos é que a consegues perceber! A mim já me aconteceu isso! Sei lá, eu ouvia, quando era puto: “Eh, Kota Silva, o rapaz até nem tem a culpa…” [dos Kussundulola] e só passado uns anos é que percebi que o “Kota Silva” é o Cavaco Silva! Quando ouves uma música e curtes logo de repente vai saber-te bem durante o Verão, mas depois fica esquecida.

Sentes que estás a deixar as heranças com a tua música?

Nós estamos em 2015 e a maioria dos sons que tocamos nos concertos é do Projecto Mary Witch… Em Lisboa vamos tocando uma vez por ano, mas quando vais à terrinha querem ouvir esses sons antigos. É música feita em 2006 e que continuam a curtir.

É uma opção tua tocar menos por Lisboa?

Lisboa tem muitos artistas e eu não gosto da sensação de estar no palco e ver as pessoas como se me estivessem a testar, a ver se não falho. Depois no fim batem palmas, como quem diz: “sim senhor, não falhaste”. Prefiro tocar lá fora: ganho mais dinheiro e o pessoal vai curtir mesmo à séria. Aqui há muita banda a aparecer, depois um é pintor, outro é fotógrafo… ninguém se desfaz por aquilo que eu faço.

Com o Árvore Kriminal conseguiste sair do chamado circuito underground. Houve mais gente a ouvir esse segundo disco do que o Projecto Mary Witch; houve muita imprensa a nomeá-lo disco do ano e um dos melhores discos de hip hop português de sempre. Mas achas que te sentes mais confortável nisto a que chamam o underground?

O underground tem muito que ver com a vida. Não vale a pena quereres ir para o underground se não vens de lá. Se és um puto que vem de Lisboa, que não tem ou teve dificuldades nenhumas na vida, que frequenta as melhores esplanadas… quê, vão sair da faculdade e vão tocar underground? Não tem muito que ver, pois não? Depois há muita gente que só é underground mas porque não tem capacidade de sair de lá e fazer outro tipo de música, por isso o Árvore Kriminal também foi uma prova para mim. Como músico, às vezes queres provar a ti próprio que consegues mudar. Eu também tenho esse “sentimento”, porque a minha vida não é 100 por cento underground.


 


Na faixa “Fantas” dizes, no fim: “Não sou nenhum gangster. Os gangsters querem grandes casas, grandes carro, muito ouro, muitas mulheres. Eu só quero viver”. Achas que te vêem como gangster?

Aqui nenhum de nós é gangster. Mas acho que os gangsters, de certa forma, até têm medo de nós. Vou dar um exemplo: a gente morava no Bairro dos Cágados, onde existem gangsters, desses pesados, máfia da noite e o caralho. Mas, de certa forma, eles tinham medo de nós, porque éramos os putos que paravam ali no bairro e se metíamos uma coisa na cabeça íamos até eles para a fazer! (risos) Os gangsters, esses que vês na rua com um granda carrão e tal respeitam a malta que vêem que é da street, gajos que cresceram nos bairros. É isso que me considero: um sobrevivente! Se tiver que ser, mano, não interessa quem tu és! Se tens 20 homens a trabalhar para ti, às vezes até pode ser inconsequente. Lembras-te do Scarface? O Tony Montana foi inconsequente (risos)! Até um carocho num bairro é assim, um sobrevivente: tu até podes ser o maior gangster do bairro, de quem toda a gente tem medo, mas se ele sabe que tu tens um quilo lá no cubículo… os dele vão lá, mano! (risos)

Mas vêem-te como gangster?

Alguns putos vêem. E quem não me conhece bem também pode ver, porque há os supostos gangsters que a nós não nos podem fazer nada. Podem nem gostar de nós. Podem tentar fazer qualquer coisa, mas não. Se calhar há momentos em que tem de se ser.


allen_halloween_3_pedro_soares
“Não vale a pena quereres ir para o underground se não vens de lá. Se és um puto que vem de Lisboa, que não tem ou teve dificuldades nenhumas na vida, que frequenta as melhores esplanadas… quê, vão sair da faculdade e vão tocar underground?”

 


Confessa lá: quais são os medos da “Bruxa”?

Tenho medo de Deus. Não é cliché: é o que sinto. Quando faço alguma coisa de mal, que sei que não devia e que Deus não aprovou, normalmente depois vou ter de pagar. E quando isso acontece percebo logo: “isto foi por aquilo que eu fiz…” É certinho! Deus até te pode perdoar, mas tens que pagar! Sabes a história do Rei David? Do castelo dele viu uma gaja toda boa: teve uma cena com ela, mandou o marido dela para a frente de combate e ele morreu. O rei David arrependeu-se e pediu perdão, mas mesmo assim, teve de pagar: o filho dele morreu, o filho que teve com ela morreu… e não se revoltou com Deus! Não basta chorar para Deus te perdoar. Tens de pagar.

És um homem de tentações?

Pá, ya… acho que qualquer rapper é um homem de tentações (risos). Nos concertos, e tal. Quando tens mulher, és rapper… se não tens cuidado… (risos)!

Uma curiosidade final sobre as tuas histórias de beefs no hip hop português: os beefs são coisas do passado? Já lá vai esse tempo?

Eu não sou comentador de hip hop tuga. Não me interessa. A música que os outros fazem a mim não me interessa. E em termos de beef, a mim ninguém me pode acusar de nada: em toda a minha carreira tenho um som de beef. Se reparares nos outros têm sempre um som ou uma boca para este ou para aquele…

Mas não é algo que vai esmorecendo? A malta cresceu, ficou mais velha…

O beef agora é diferente. Hoje há um beef mais “intelectual” que é cortar as pernas a certas pessoas que fazem rap, meter o mercado para ti e para os teus, para aqueles que gostam da tua ideologia. Hoje já não é provocar este ou aquele da rua porque esses já sabem as consequências de pegar num microfone e falar de certas coisas… não quero falar de nomes, mas há gajos no rap que já foram apanhados em discotecas e levaram na cara e levaram bem. Agora corta-se as pernas, mas é guerra onde não entro. E falo contigo não como rapper, mas como homem de god: eu vou ali, faço a minha cena; vou ao gueto também estou bem; vou acolá e tudo na mesma. Não os conheço. Essa malta que continua nessa ideologia também vai pagando por aquilo que faz. Um gajo não é burro: vês um puto que começou a cantar ontem e já toca aqui e já toca ali… (ri-se) é um balão! O beef é esse: bloquear o acesso às pessoas para se orientarem. Quem é bom – e Deus me perdoa – tem sempre as portas abertas. Humildade à parte, eu não me sinto um gajo do hip hop português: esse tempo já passou! Era a mesma coisa que o Bob Marley fizesse reggae e andar-se a beefar com a malta que faz reggae hoje em dia!

Mas recebes muitos convites para fazer parcerias?

(risos) Eu recebo mensagens! Mas o que digo é o que digo desde o início: eu estou é com os meus Kriminals… Eu gosto de música do tempo antes do featuring! Nunca viste o Kurt [Cobain] a fazer featuring com o Eddie Vedder!

pub

Últimos da categoria: Biblioteca

RBTV

Últimos artigos