pub

Publicado a: 24/03/2017

GQOM: com quatro letras escrevemos magia negra

Publicado a: 24/03/2017

[TEXTO] Nuno Afonso [FOTOS] Direitos Reservados

A história da cultura popular encontra-se repleta de casos assim: micro-fenómenos locais que após uma intervenção (e valorização) externa, se tornam macro-fenómenos internacionais. Brian Jones, dos The Rolling Stones, fê-lo ao transportar o trance ancestral dos marroquinos Master Musicians of Jajouka em plena década de 60 para o mundo ocidental, tal como o alemão Wim Wenders cristalizou a música cubana de Buena Vista Social Club, três décadas depois. Mais recentemente celebraram-se os ritmos frenéticos de shangaan electro, grime ou do footwork. Por cá, a Príncipe Discos cunhou uma fonte inesgotável de novos nomes ligados ao kuduro ou tarraxa, elevando jovens artistas Marfox, Lilicox ou Nídia Minaj a uma dimensão absolutamente global. A história da GQOM (lê-se Gome) segue esta narrativa de descoberta tornada visão.

Com a mesma natureza crua do grime londrino, é nos subúrbios da cidade de Durban, África do Sul, que simples miúdos munidos de um laptop e software de edição musical se tornam numa nova geração de produtores de vanguarda. O espírito de experimentação vai de encontro à inquietação normal da idade e o resultado é uma expressão minimalista, escura, hipnótica e sem qualquer tipo de correntes estéticas. Estão lá os ecos das tradições zulu, filtradas pelo teor digital, enquanto os ritmos se apresentam tão indomáveis quanto efectivamente devem ser. Rudeboyz, Emo Kid ou Citizen Boy apresentam-se como os mais activos bastiões da GQOM.

Se é verdade que qualquer movimento tem o seu padrinho, então neste caso o DJ Nan Kolé é a figura mais próxima desse papel. Tropeçou na já longa, todavia obscura, actividade desta comunidade através de uma hashtag numa rede social (sinal dos tempos?). Seguiu-se a normal busca por mais e um consequente filão de ficheiros e vídeos que Kolé passou a pente fino nessa mesmo noite até ao sol raiar, segundo reza a história. Foi um momento de epifania, percebendo que toda uma nova e efervescente identidade cultural estava a existir à sombra. Chamando Lerato Phiri como colaborador ‘no terreno’, ambos entraram em contacto com os espaços e os intervenientes que tanto fascínio suscitaram. Os dados estavam portanto lançados para a posterior edição da compilação GQOM – The Sound Of Durban Vol.1 — e consigo toda a viagem que aí se iniciava.


15032768_745447272273252_239108740470775022_n


As digressões por festivais e clubes por todo o mundo aconteceram (passando inclusive pelo Musicbox, em Lisboa) e o que inicialmente arrancou como uma mostra apresenta-se hoje como uma plataforma sólida e activa de lançamentos específicos de muitos dos heróis de Durban. Dominowe tem dezanove anos e na aurora deste 2017 viu editado SiyaThakatha um intrigante 12 polegadas (entretanto já esgotado) que demonstra o carácter visceral que conquistou os ouvidos de patrões como Kode9 ou Mumdance.

Na condição de uma possível, e até legítima, descendência dos primórdios do dubstep, o som de GQOM é uma extensão desse universo que é a bass music. Ecoam fantasmas ancestrais na samplagem de vozes, dir-se-ia mística até, contudo estabelecem-se vias de evasão de uma certa paranóia urbana — saltam sons de armas de fogo, sirenes ou tráfego automóvel como sobreaviso. Sem o charme e sem o equipamento hi-fi que dominam as capitais europeias, Durban instala-se, sem realmente o esperar, no mapa da electrónica vanguardista, merecedora das melhores atenções e das mais profundas dissertações. De resto, não é a primeira vez que a cena musical sul-africana agita a música de dança internacional. Já em 2010 a label alemã Out Threre Records reuniu uma colecção irrepreensível de temas em redor da house local que, em pouco tempo, se tornou num clássico instantâneo e impossível de replicar com o mesmo brilho e chama. Ayobaness – The Sound Of South African House é ainda hoje um luxo auditivo, porém mais diverso e susceptível de êxito comercial quando comparado com a crew GQOM.

Tendo estes dois casos entre mãos, dá que pensar no que ainda poderá estar por escutar no submundo de uma África hoje, e sempre, em constante inovação, renovação, revolução. Independentemente da época ou do contexto histórico, a matéria abunda. A GQOM traz-nos à razão a importância desse berço da humanidade, uma certa trip antropológica onde as drum machines e os controladores MIDI apontam, como canetas de pena do século XXI, as visões e os delírios dos deuses. E claro, o nosso contentamento e honra em acompanhar este fascinante desbravamento de terreno.


pub

Últimos da categoria: Ensaios

RBTV

Últimos artigos