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Publicado a: 27/10/2017

GAS: A beleza do etéreo

Publicado a: 27/10/2017

[TEXTO] Diogo Pereira [FOTO] Direitos Reservados

Na descrição do terceiro álbum de Bersarin Quartett, pode ler-se, entre outras considerações sobre o mais humano e menos animal dos sentimentos:

“Melancholia is the only emotion in the vast spectrum of human states of mind which one can bear forever. And music is the obvious drug for all of us melancholia-addicts.”

Estas duas frases ajudam-nos a compreender melhor – ou, pelo menos, servem de ponto de partida para a descoberta da música de GAS – , o pseudónimo mais conhecido de Wolfgang Voigt, figura eminente do techno alemão, pois apontam duas noções essenciais: a importância da melancolia (a eterna e mais humana das emoções) e a ideia da música enquanto droga viciante e a forma mais rápida e imediata de acesso às emoções.

E pese embora o facto da melancolia não ser a única das emoções presentes na obra de GAS, será, certamente, uma das mais evocadas.

Mas voltemos ao início.

Esta música começa na juventude de Voigt e nas suas experiências com LSD na Königsforst, uma floresta perto de Colónia, a sua cidade-natal, e um dos mais importantes berços do techno alemão. O efeito foi sinestésico, já que, na estética de GAS, as cores e os visuais são tão importantes como os sons. Aliás, não é por acaso que as capas de cada um dos álbuns são fotografias detalhadas de folhas, troncos e ramos de árvores contra um céu de cores garridas (a capa de Zauberberg é porventura a mais violenta e sombria, de um vermelho carregadíssimo), com as letras G, A e S divididas pelo centro, num branco discreto. Imagens poderosas e memoráveis, que ilustram perfeitamente uma música que existe no mundo dos sonhos, das sensações e das emoções.

A música de Wolfgang Voigt enquanto GAS sempre foi onírica e cinematográfica, e sempre evocou sensações fortemente visuais, pelo que grande importância é dada a essa componente, como o atestam as fotografias impressionistas das árvores da floresta onde passou a sua juventude, a sua querida Königsforst, que ornam os artbooks das edições de luxo dos seus álbuns. A Natureza parece ser a óbvia inspiração, espaço que convida à evasão, longe do tumulto das cidades e da interação humana. E a floresta, como morada terrestre desta música, não surge por acaso: a densidade e as cores da sua folhagem, a humidade dos seus vapores, a riqueza da flora e fauna que alberga, a vastidão e o isolamento deste habitat, onde é possível perdermo-nos no tempo, fornecem uma metáfora perfeita para a música que acompanha, igualmente densa, ofegante, vaporosa, diáfana, colorida e intemporal.

Afinal de contas, que melhor habitat haverá para representar a música de Gas do que o bosque, rico em luz, cor e vida, para onde vamos quando nos queremos perder, tal como a personagem de Scarlett Johansson em Under the Skin.

O próprio autor não deixa dúvidas nas suas intenções:

“The aim is to bring the German forest to the disco”

Já na altura, como confessou recentemente em entrevista a Christopher Dooks, fantasiava combinar música electrónica mais moderna e hipnótica (como a do seu conterrâneo Klaus Schulze) com a música clássica mais solene de Wagner e Schönberg. Noção ecoada pelo próprio, em 1996, quando lhe pediram que definisse a sua música:

“GAS fantasizes about an amorphous, flowing sound body ranging somewhere between Schönberg and Kraftwerk, between bugle and bassdrum. GAS is Wagner in the guise of glam rock, Hansel and Gretel on acid. An endless march through the undergrowth, into the imaginary disco of a misty fantasy forest.”

Mas foi apenas em meados dos anos 90, depois de construir uma reputação como produtor de techno ácido e minimal, que decidiu dar vida às suas ideias e foi então que o projecto GAS nasceu, fruto de uma vontade há muito acalentada de fundir a música ambiente com o techno 4/4.

O primeiro EP sob o nome GAS, Modern, de 1995, é estilisticamente disperso, com faixas de ambient drone que tanto evocam os primeiros álbuns de Biosphere (“Stern”) como a Berlin-Schule de Edgar Froese e Klaus Schulze (“Heller”), ao lado de peças normalíssimas de techno orientadoas para a pista de dança, como “Klang”. No entanto, já deixa aí adivinhar traços da estética vindoura, nomeadamente a repetição e o minimalismo das composições.

“Heller” contém o silvo de vinil que viria a tornar-se uma presença ubíqua na sua inra, mas em lugar dos loops de Wagner ouvem-se bleeps e bloops de sintetizador muito mais próximos da kosmische Musik de Tangerine Dream, enquanto “Stern” arrasta os seus drones ao longo de seis minutos que bem podiam pertencer a um dos dois primeiros álbuns de Biosphere, na sua fase de ficção científica.

 




Mas foi no álbum de estreia, Gas, de 1996, que Voigt definiu e solidificou as coordenadas estéticas do projecto: aqui sim, já se ouvem os bombos techno e as trompas wagnerianas, o drone e os loops de cordas afogados em estática, em faixas longas e errantes, sem início nem fim.

Porquê GAS? Por um lado, devido ao efeito intoxicante, narcótico e, por vezes, eufórico, da música. Mas também pela natureza dispersa do som, e pela aparente ausência de forma ou estrutura das canções, sem começo ou fim discerníveis, dado que cada faixa parece começar a meio, após um breve fade-in, flutuar durante sete a dez minutos, e desaparecer no éter como se nunca tivesse existido. Aliás, muitos diriam que não estamos perante músicas, mas sim “paisagens sonoras”, termo cunhado a propósito, justamente, da música ambiente.

Essa amorfia também se nota nas fontes sonoras empregues. GAS não esconde o uso de samples, patente no silvo de vinil, presença ubíqua em muitas das faixas. Sabemos que há aqui excertos de música clássica alemã e Schlager, mas não há uma referência directa aos sons originais, tão camuflados que tornam impossível qualquer tentativa de os detectar. A intenção aqui é desconstruí-los, despindo-os do seu contexto original.

O uso de percussão é esparso: por vezes está completamente ausente, mas quando está presente, faz-se notar, consistindo no básico ritmo de techno 4/4, intenso, insistente, hipnotizante.

A partir daqui, vários loops de cordas e sopro entram e escutam-se em simultâneo, afogados em espessas camadas de estática, num vórtice sonoro onde nos perdemos irremediavelmente.

Há presenças constantes na sonoridade GAS, familiares ao universo da música eletrónica, sobretudo a ambiental: o eterno e austero drone, que fornece gravidade e densidade, às vezes emulando o som de uma grande cascata, o ocasional glitch (fazendo lembrar Oval, colega alemão da Mille Plateaux), o silvo do vinil, e a supracitada batida techno, tão clássica e óbvia, mas que aqui enobrece esta música, revestindo-a de um poder vertiginoso.

E, claro, os samples. Certas passagens evocam música clássica, em particular a de Wagner, sobretudo em Königsforst e Zauberberg, com os seus loops de cordas (ora românticas ora sinistras) imersos em vapor digital.

Todos esses ingredientes confluem numa neblina de mistério e sonho, antes de se dissiparem, e regressarem ao nada de onde vieram.

Mas não se trata apenas de um único loop, como a música de William Basinski, nem de uma única sensação (a melancolia). São vários sons, vários loops, que coexistem na mesma faixa, e transmitem uma miríade de emoções e tons, negros ou luminosos (a euforia, a tristeza, a saudade, a satisfação, o prazer, a alegria, o êxtase, a fantasia, a confusão, a angústia e muito mais), amiúde contraditórios, como a vida. A música de GAS oferece, de certa forma, tudo o que se sente quando se está vivo. As emoções de uma vida inteira (a mais comum delas todas talvez seja a de nos sentirmos pequenos perante a imensidão desta música e das realidades que evoca), destiladas e concentradas em faixas longas (nenhuma dura menos que sete minutos, de forma a alcançar o efeito pretendido), pesadas e meditativas que exigem paciência e total imersão por parte do ouvinte.

Fãs de ambient reconhecerão muito aqui, mas isto é mais do que Basinski. Não é Eno, e também não é The Caretaker.

Esta é uma música feita de contradições, situada algures entre o natural e o sintético, o analógico e o digital, o sombrio e o luminoso, o antigo e o moderno, o clássico e o contemporâneo, o efémero e o eterno. Mas nunca parece feia, incoerente ou deslocada.

A música é, de facto, vaporosa, apoiada sobretudo nos loops de cordas que entram e saem das faixas, flutuando em cima de camadas de estática, mas a sua fugacidade é apenas aparente, porque, na verdade, esta música é eterna.

Muitas das faixas (sem título, como não podia deixar de ser) são despidas de ritmo, e feitas inteiramente de textura, evocando artistas como Steve Roach que puseram de parte as batidas desde muito cedo, enquanto outras usam a transe do techno para amplificar ainda mais a qualidade hipnotizante da música.

Como toda a música ambiente de excelência, a música de GAS é de uma falsa simplicidade. Repetitiva e minimalista, insiste sobre si própria. Mas ao mesmo tempo, é muito mais do que isso, pelas sensações que evoca, para onde nos transporta, pela forma como manipula o tempo e o espaço. E GAS é o nome ideal para a caracterizar, não porque seja vápida ou efémera, mas porque, tal como um gás, envolve inteiramente o ouvinte, até o intoxicar.

GAS concretizou a proeza de combinar a solenidade da música clássica alemã e a intensidade do industrial com a leveza da música ambiente, de fundir o romantismo dos compositores alemães do século XIX com a modernidade do techno e o escapismo do ambient, de uma forma que nenhum dos seus colegas do ambient techno conseguiu, numa música eterna e assombrosa, de uma beleza inefável. Nesse sentido, ouvi-lo é também olhar para o passado e o futuro da música alemã.

O ambient nunca foi um universo estranho ao techno germânico, que conta nomes como Marsen Jules ou Bersarin Quartett nas suas hostes, mas Wolfgang Voigt foi muito mais longe do que qualquer um dos seus contemporâneos.

Zauberberg, de 1997, o primeiro álbum a adoptar a floresta como motivo visual (que a partir daqui acompanha toda a obra), é o mais soturno, pejado de momentos de dissonância e atonalidade, como a segunda faixa (porventura a mais sinistra de todas), cujos loops lembram o lado mais paranóico de Geogaddi. É talvez o único álbum em que GAS entrou sem freios no mundo do dark ambient.

“Zauberberg 4” e “Zauberberg 5” são o mais parecido com The Caretaker, com os seus sopros de big band vintage e o silvo de vinil muitíssimo proeminente, enquanto a sexta faixa entra em território industrial, com uma das batidas mais intensas de toda a discografia, semelhante a Coil ou Lustmord.

 



É também neste álbum, uma declaração de intenções e modelo estético para os álbuns vindouros, que GAS introduz a forma como usa o clássico kick: coloca-o em fundo, em volume baixo, para que soe distante e abafado, não fazendo dele o foco da música, ao contrário do techno tradicional.

Curiosamente, no fim de tanta dissonância, Zauberberg acaba com uma longa faixa de serenidade ambiental à Steve Roach, com Wolfgang Voigt a anunciar que a sua intenção não é perturbar-nos, bem como a dar-nos uma pista para o que estava para vir.

Algo interessante também acontece neste álbum, que não se verifica tanto nos subsequentes: a intensidade aumenta progressivamente, antes de se despedir com calma na última faixa.

Königsforst, de 1999, adere de perto à fórmula introduzida pelo seu antecessor, começando plenamente em modo industrial/dark ambient.

Desta vez as batidas assumem maior destaque, e saem do fundo para formar um som mais denso e encorpado, mais techno do que ambient, num álbum que consegue ser ainda mais negro e minimal que o seu antecessor, e que se aproxima com frequência do trance.

“Königsforst 3”, porventura a faixa mais negra de toda a discografia, é como assistir a um longo e lento cortejo fúnebre numa tundra deserta, e faz lembrar momentos tão minimalistas e lúgubres de dark ambient como “Ixaxaar” de Lustmord.

 



É também aqui que se ouve uma melodia suave que vai surgindo nalgumas faixas, como um raio de luz no meio das trevas.

Königsforst possui também dois dos momentos mais belos de toda a discografia: o primeiro, a inesquecível quinta faixa, com um loop de sopro wagneriano quase militar a anunciar aquilo que parece ser o fim do mundo, ou o choro de mil carpideiras; o segundo, que fecha o álbum, um conjunto de microloops de violinos que nos embalam e preparam para um sono profundo e revigorante.

 




Pop, de 2000, considerada a sua obra-prima, e o mais doce, relaxante e agradável de todos os álbuns, marca uma viragem notória na sonoridade e estética GAS, com melodias mais acessíveis (fazendo jus ao título), e menos do som subaquático presente em obras anteriores.

O mais ambient e menos techno de todos, com uma evidente ausência de batidas (tirando o martelar da terceira e últimas faixas) e ênfase absoluta nas texturas, aproxima-se firmemente de território Steve Roach.

É também aqui que figuram outros dois momentos inesquecíveis, entre os quais a faixa de abertura, que começa com um loop de ruído branco a imitar água a correr (som que se repete ao longo do álbum), ao qual se junta uma melodia plangente de acordeão e microloops de cordas distantes.

 



Depois de Pop, Voigt entrou num hiato de 17 anos (como se já não tivesse mais nada a dizer artisticamente enquanto GAS), durante o qual editou duas compilações/retrospectivas da sua obra: Nah und Fern, em 2008, que reúne os quatro álbuns (sem os dois EPs), e GAS BOX, luxuoso monólito lançado em Outubro do ano passado, que junta Zauberberg (1997), Königsforst (1999) e Pop (2000) com o EP Oktember (1999), deixando de fora Modern (1995) e o álbum homónimo (1996), por não se encaixar na estética do projecto. A caixa inclui cópias em vinil e CD, e ainda um livro de fotografias de ramos de árvores da sua querida Königsforst com diferentes filtros de luz e cor, que atestam a qualidade visual e sinestésica desta música. Mais do que uma antologia, isto é, uma compilação de obras passadas reunidas num só disco, GAS BOX é a visão de Wolfgang Voigt concretizada, um monumento à sua força criativa, o derradeiro acompanhamento físico e visual a uma música de dimensões siderais.

Mas Voigt não estagnou. Entretanto, fundou a Kompakt, uma das editoras mais resilientes da electrónica alemã, e lançou uma vasta obra de techno ácido e minimal sob uma miríade de pseudónimos, como Mike Ink, Wassermann e Vinyl Countdown, que colocou o techno alemão no mapa da cena electrónica mundial, tendo Colónia como um dos seus epicentros.

Narkopop, o mais recente álbum, lançado em Abril deste ano, marca o fim de um jejum de dezassete anos, e apresenta novamente uma diferença de sonoridade, com um som mais polido, embora mantenha a clássica estética GAS, completa com percussão militar, uma reverberação de encher qualquer sala e o épico fade out a fechar o disco.

O regresso de GAS abre com uma faixa que poderia perfeitamente pertencer a Tomorrow’s Harvest de Boards of Canada, ou à banda sonora de Mulholland Drive de Angelo Badalamenti (aliás, talvez este seja o mais cinematográfico de todos os seus álbuns), com a paranóia e densidade dos seus drones. No entanto, cedo entra no familiar território do ambient pop, e passamos a ouvir Vangelis. Ambas as tonalidades podem ouvir-se ao longo do álbum, com momentos sinistros como “Narkopop 8” ao lado de outros de beleza romântica como “Narkopop 7”. E como o próprio nome do álbum indica, há aqui muitos momentos narcóticos.

Os críticos notaram uma evolução e refinamento do som, e uma maior atenção ao detalhe, e este é de facto mais clássico e austero que Pop, com passagens de cordas mais longas reminiscentes das que ouvimos em Zauberberg ou Königsforst, pronto a ser tocado ao vivo com uma orquestra, como é apanágio de tantos auteurs de eletrónica. E ouvimos aqui sons que nunca ouvimos antes, como o dedilhar de harpa e o piano quase impercetível de “Narkopop 6”.

Todas as faixas de Gas parecem combinar em si a sensação de êxtase do techno com a calma e a evasão do ambient. Aliás, não é por acaso que cada álbum tem esta coisa maravilhosa em comum, de terminar com um momento de tranquilidade absoluta, de calma após a tempestade, que nos devolve a um profundo estado de serenidade ainda maior que aquele de onde viemos quando as começámos a ouvir.

GAS misturou um dos sons primevos do techno – o bombo – com um elemento clássico da estética ambient – o drone. E o resultado é música de uma inegável beleza, que nos faz sonhar e nos afecta de uma maneira que não conseguimos explicar ou descrever.

Podemos assim dizer que cumpre o propósito de captar e exprimir sonoramente o indizível. E fá-lo com elegância e mestria.

Há faixas mais memoráveis que outras, mas umas merecem destaque absoluto, em particular a sétima faixa de Pop, odisseia de um quarto de hora que fecha o conjunto dos quatro primeiros álbuns. Uma batida techno forte e pulsante que nos invade os sentidos, envolta num drone insistente, agressivo, enorme e assombroso, com qualquer coisa de ondas do mar, emerge-nos numa névoa durante quase 15 minutos, e abandona-nos perto do fim, deixando-nos num estado de transe absoluto, rendidos à beleza avassaladora.

 



Mas todas elas cumprem o seu destino, e quem as ouve sai indubitavelmente enriquecido. Emocionalmente, culturalmente, humanamente.

É extremamente difícil descrever esta música de uma forma que faça jus à sua beleza. Alguma faz-nos abanar a cabeça e dançar, outra faz-nos querer fechar os olhos e fugir (mental ou fisicamente). Mas é importante constatar as reacções que evoca em quem a ouve.

Estas são apenas algumas das muitas sensações sentidas por quem ouve esta música, tiradas de críticas e comentários no YouTube (um importante repositório para quem não consegue obter esta música de outro modo):

“I’ve just spent the last few hours locked in my toilet in the dark with this track on repeat: no regrets”

“Like riding an elevator through space”

“It’s like an ancient forest made music about being an ancient forest

“The end of the world”

“A daycare for dreamers”

“The universe in a bottle”

“It’s like a window to look through with much to see”

“Such a beautiful and intense experience”

“Untitled 7 will be the death of me. I mean, on an artistic level, can musical construction even get any more beautiful, complex and complete than this? Melancholy, confusion, euphoria and an eerie creeping feeling of anguish all wrapped into one. Like someone else said: it perfectly defines what the end of the world would sound and feel like”

“Gas is Basinski’s techno bad brother

“Sounds like your neighbors are having an awesome party that you weren’t invited to, but instead of turning sour you just enjoy the reverberations that are gently penetrating the door”

“It’s like listening to blood flow through a human”

“An outdoor rave, heard floating through the air from a neighboring village”

“Untitled 2 perfectly captures the feeling of walking through the eerie, mysterious, dark and yet beautiful back streets of Central London at around 3 am”

Como se vê, além de alimentar a alma, estimula a imaginação, elevando quem a ouve a patamares mais altos, fazendo-nos sentir coisas nunca antes sentidas.

Naturalmente que é uma tarefa ingrata descrever música tão abstracta, e cada melómano sente algo diferente quando a ouve, mas seria um desprimor não oferecer algumas tentativas.

Esta música convida-nos para outros mundos, oníricos e surreais. Recebe-nos e embala-nos nos seus braços, apenas para nos transportar a outras realidades. Ouvi-la é entrar num estado mental alternativo de transe e sair de lá com todos os nossos pecados perdoados.

“Zauberberg 1”, de uma beleza impossível, é como passear nas nuvens, de mãos dadas com a nossa avó.

“Zauberberg 2”, é como caminhar num campo após uma batalha, atónito pela neblina e o cheiro a cadáveres.

“Zauberberg 7” é como beijar o amor das nossas vidas à chuva, num dia de Verão.

“Königsforst 5” é como ouvir um concerto de Wagner debaixo de água.

“Königsforst 6” é como acordar, sair de casa e ver os céus todos pintados de roxo.

“Gas 1” é como estar deitado no chão de uma floresta, no meio de um tapete de folhas, bafejado por uma brisa suave, a olhar para o céu filtrado pelo emaranhar dos ramos.

“Pop 3” é como nadar numa lagoa pouco funda, e olhar para os peixes à nossa volta.

“Pop 4”, com o seu bater de sinos, é como assistir a uma rave dentro de uma igreja, e ser convertido a uma nova religião.

“Narkopop 3” é como regressar aos tempos embrionários e passar um dia inteiro dentro de uma bolsa amniótica, escutando o bater do coração das nossas mães.

“Narkopop 7” é como assistir ao nascer do sol numa cama de hospital, depois de uma cirurgia de vida ou morte.

Ouvir GAS pode ser uma das grandes experiências de vida humanas. A suspensão do tempo, a vastidão do espaço, a multiplicidade de emoções e sensações vividas em simultâneo, a evasão do sonho, a transe eufórica da dança. Tudo isto aguarda quem entra neste mundo.

É possível ouvir as várias influências de Voigt, desde o noise ao ambient, passando pelo post-rock e o neo-clássico, mas o músico alemão urde-as todas numa música que é dele e apenas dele.

Não é tão minimalista como a de Aphex Twin em SAW II, relaxante como a de Steve Roach, acessível como a de Boards of Canada ou cingida a uma única emoção, como a de Leyland Kirby. É tudo isso, e muito mais que isso. No seu ecletismo reside a sua força.

A beleza de GAS está na forma como conjuga todos os elementos clássicos que compõem a música electrónica (a batida, o drone, a sample, o loop) em harmonia, sem que estejam dispostos em nenhuma ordem particular, em faixas que estão em constante mutação, com nuances subtis impossíveis de discernir, como um organismo autotrófico, com um metabolismo próprio. Há melodia e ritmo, mas também há dissonância e textura.

Feitos para serem ouvidos numa aparelhagem audiófila a alto volume, os álbuns de GAS envolvem qualquer sala com os seus drones e densas muralhas de harmónicos.

Exercícios em textura, primazia da forma e do efeito sob o conteúdo, as faixas de GAS revelam como a música ambiente pode manipular o tempo e o espaço, fazendo-nos esquecer de ambos.

Profundamente física e impossivelmente lírica, a música de GAS leva-nos sempre numa viagem. Às vezes essa viagem é interior, como aos tempos embrionários de estar preso dentro de um saco amniótico, outras vezes é exterior, como ficar à deriva no Espaço. Mas o destino dessa viagem, como afirmou Mark Richardson na sua crítica a Narkopop, depende sempre do ouvinte, o mais importante elemento da equação. É sempre um desafio para os sentidos captar e absorver todos os elementos de uma música tão rica, mas ouvi-la é sem dúvida uma experiência de vida assombrosa, lindíssima, eufórica e inesquecível. E a paleta de emoções é extraordinariamente variada: somos capazes de sentir melancolia, euforia e tranquilidade na mesma faixa, sem saber bem porquê.

Muito mais poderia ser dito, mas não se trata de falar, trata-se de ouvir, sentir e viajar. Mergulhem, ouçam, regressem à superfície, e respirem. Desejamo-vos uma boa viagem.

 


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